Sergia A.

Do caminho

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A parte que te cabe

 

– A Senhora vai me visitar no hospício?

Ouvi e respirei fundo contando até dez, vagarosamente, até que uma resposta em tom de sinceridade e de empatia encontrasse o caminho entre a mente e a voz. Não era difícil compreender a desilusão diante de uma análise burocrática e fria, bem característica de quem está do lado de cá, onde é fácil esquecer que por trás de papéis, projetos e orçamentos existe vida em compasso de espera.

Corria o ano de 2011 e eu trabalhava com programas habitacionais para área rural. Ao desligar o telefone, a voz se repetia no meu ouvido. Latente, levava-me a pensar sobre o meu papel dentro da grande fábrica de sonhos. Quanto cabia da minha insignificância na resolução de uma das questões mais sérias de um país que, ao tempo em que se enxergava como a grande promessa de desenvolvimento econômico, não conseguia desmontar uma engrenagem ultrapassada e fomentadora de miséria?

O sonho, que virava pesadelo do outro lado da linha, nada mais era do que uma necessidade básica. O direito elementar de ter um teto erguido na terra onde se vive e se produz o sustento. A voz, assim como as que a antecederam, nasceu e viveu no mesmo pedaço de chão. Terceira ou quarta geração sem o título de propriedade. Alimentava-se da terra, mas não gerava renda. Sem título não se enquadrava nas condições de acesso aos programas habitacionais. Sem renda não tinha meios para construir por conta própria e nem como ser aprovado em financiamentos.

Tentei analisar o próximo processo da fila. Porém, a voz retornava e me inquietava. Trazia à mente os conflitos no campo que invadiam os noticiários e tornavam tristes as estatísticas de homicídios em todo o país. Bárbaros assassinatos e outras ocorrências motivadas por ações de resistência e enfretamento pela posse, uso e propriedade da terra, bem como pelo acesso a áreas de florestas. Naquele ano mais dois casos viravam notícia pelo mundo: José Cláudio e Maria, o casal de castanheiros que, como o seringueiro Chico Mendes, deu a vida pela parte da floresta que lhes cabia dentro do modelo de uso sustentável que defendiam.

É fato que do lado de dentro do balcão, lidando com os volumes de recursos anunciados, era acalentador perceber que se plantava uma semente. Pela primeira vez agricultores familiares conseguiam chegar até o frio balcão em que sonhos viram negócios. Alguns, depois de muitas idas e vindas, conseguiam levá-los em seus alforjes. Se essa era a forma mais eficiente, sabíamos que não. Mas não cabia à minha insignificância opinar.

Cabia à angústia despertada pela voz, no entanto, questionar: qual país se desenvolveu mantendo estruturas latifundiárias arcaicas? Qual país se desenvolveu mantendo um nível tão alto de irregularidade fundiária?  Qual país se desenvolveu sem oferecer aos trabalhadores do campo condições verdadeiras de educação e de geração de renda que lhes garantissem um mínimo de dignidade? E olhando o futuro, imaginar, qual nação sobreviverá se não repensarmos o modelo de ocupação da terra?

Quase uma década depois, assistimos passivamente a morte de todas as pequenas sementes. Planta-se em seu lugar o ódio aos pobres, aos sem-terra, aos indígenas e aos povos das florestas.  Já não trabalho no banco. Na parte, ainda mais reduzida, que me cabe sinto a necessidade de manter a serenidade e por isso escrevo. É um jeito de não permitir que o desencanto enterre a esperança de um dia ver as mortes e vidas severinas como cicatrizes de uma história muito antiga. Na ficção reencontro aquela voz:

– Está ouvindo o tilintar ? É a chave. Venha tomar um café com a gente!

Ouço a chave. Ouço a alegria. Ouço o vento reproduzindo o agradável canto da terra afagada no cio, forjando o milagre do pão e lambuzando-se na doçura do mel, como dizia uma velha canção.

 

A natureza não cansa de fazer o mundo?

 

Ela não tinha mais que cinco anos quando me surpreendeu com uma pergunta repentina e vindo, assim, do nada. Até hoje não sei se a surpresa maior foi a indagação em si ou o lugar inesperado de onde brotava. Levei um tempo com aquela vozinha meiga e delicada, ressoando no ouvido: Por que a natureza nunca cansa de fazer o mundo?

A primeira ideia que me ocorreu foi o princípio de conservação da energia, que tentei arranjar em palavras simples para justificar o processo constante de transformação da natureza. Não sei se a resposta foi satisfatória. Aliás, espero sinceramente que não tenha sido para que tamanha curiosidade continue expandindo sua mente questionadora.

Passado o sufoco, pensei que talvez tivesse sido mais fácil usar uma visão religiosa para explicar o movimento da vida, mas segui meu impulso de tentar encontrar respostas na natureza. E isso terminou me levando a escrever um texto sobre o filme The Tree of Life (2011), do diretor americano Terrence Malick (A Árvore da Vida, na tradução brasileira).

Lembro que o filme me exigiu uma boa dose de paciência. Não à toa, tem como epígrafe uma citação do Livro de Jó. Logo de início, um narrador nos diz haver duas formas de viver: a forma da natureza que satisfaz a si mesma, e a forma da graça que aceita o sofrimento pela fé. Explicativo demais? Talvez, mas essa é uma chave necessária para construção dos possíveis significados da narrativa elíptica que nos chama a preencher os seus vazios. O roteiro traz duas fases da vida de Jack. Há um Jack adulto, perdido em seus questionamentos sobre o sentido da vida, buscando ainda resolver o conflito da escolha entre natureza e graça, o caminho do pai ou o caminho da mãe que lutam dentro dele desde sua pré-adolescência. Essa é, naturalmente, a outra fase quando somos levados a seguir o ponto de vista de um garoto que começa a descobrir esse mundo dividido. De um lado a austeridade e as cobranças do pai como tentativa de moldar filhos fortes, autônomos e senhores de suas vidas, e do outro a doçura da mãe acolhedora que tudo suporta, crente na generosidade e no amor como molde da mesma formação.

O grande mistério da narrativa é a trama paralela que se desenvolve na sequência de imagens sem diálogos. Às cenas que descrevem o sofrimento da família de Jack provocado por uma perda, o filme intercala imagens que refazem o percurso da singularidade à criação do universo, da formação da Terra e do surgimento da vida na Terra. O longo sofrimento de seus seres, suas transformações até chegar à consciência que forma a família texana que busca no sagrado uma luz para entender o seu infortúnio. Uma linguagem simbólica que deixa para os espectadores o questionamento sobre o que significa o sofrimento de minúsculas partículas diante da grandeza do universo. Ou, para os nossos dias: o que cabe ao homem, o que cabe às forças do acaso ou o que cabe à interposição de um Deus que tudo controla e testa continuamente a nossa fé?

O texto me retorna diante das tragédias dos nossos dias quando teimamos em não ouvir as súplicas da natureza. É fato que a incerteza sobre a origem e o futuro, a tensão gerada pelo incompreendido, acompanha o homem em toda a sua existência. Deixando a questão da fé restrita aos que a professam, o conhecimento científico aponta um caráter cíclico na evolução cósmica que impõe a tudo uma constante transformação. A vida, a morte, a regeneração.  Ouso pensar que se nossa presença na Terra acelerou em demasia o processo de morte, é urgente que busquemos nos integrar ao processo de regeneração.  Ou, a natureza pode finalmente cansar de refazer esse mundo.

 

Três experiências e uma generalização

Cuando el niño y su padre alcanzaron por fin aquellas
cumbres de arena, después de mucho caminar, la mar
estalló ante sus ojos. Y fue tanta la inmensidad de la mar,
y tanto su fulgor, que el niño quedó mudo de hermosura.

Y cuando por fin conseguió hablar, temblando,
tartamudeando, pidió a su padre:
– Ajudame a mirar!

Eduardo Galeano, El libro de los abrazos

 

Diante da citação acima eu deveria calar, respeitosamente. É suficiente e encerra-se em si mesma. Uma experiência, uma narrativa e as generalizações que sua leitura pode suscitar. No entanto, carrego em mim o atrevimento de gostar de escrever. Inspiro-me. E para esse tempo que desliza do azul ao multicor, cito três em três tempos:

1) A “antiexperiência” ou o vazio preenchido por uma fotografia em preto e branco disposta na sala de estar. A aura distante e misteriosa que impunha à filha a necessidade de alcançar sozinha o mar. Dona do seu destino. Sem o afeto protetor e sem as amarras do seu efeito colateral.

2) A experiência de acompanhar de perto, e até com certa inveja, o crescimento de uma relação de proximidade. Do medo do toque nos primeiros contatos à preferência delas nos momentos de atravessar os montes de areia ou de admirar o mar. De ser mediadora dos arroubos do azul provedor/protetor (papel exercido com uma sobrecarga natural de ansiedade) para permitir o fortalecimento dos braços e a tranquilidade do remar.

3) O assombro diante da desenvoltura dos meninos no exercício do que chamo m/paternidade dos nossos dias (assim mesmo alternando o m e o p, por falta na nossa língua de um termo para traduzir o “parenthood”). O cuidar natural da cria. Tarefas e afetos. O remar a quatro mãos desdenhando de antigos mapas e suas cores. A fé na renovação do humano que brota dessa visão multicor.

Ouso, depois de tudo, generalizar repetindo um texto que escrevi há algum tempo. Talvez estejamos caminhando para a desconstrução do mito do instinto maternal, e ativando o instinto de sobrevivência de um novo ser. Uma complexa estrutura biológico-afetiva que não cabe na singularidade de um ‘m’ ou de um ‘p’. Há ainda um longo caminho, sem dúvida, mas os primeiros passos já se vão.

 

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)

 

 

O sol da meia-noite

 

Dei para vagar em busca de luz. É o que me ocorre quando escurece aqui dentro. Lembrei que em uma dessas andanças, há algum tempo, reencontrei uma entrevista concedida por Oscar Niemeyer, em que ele comentava o projeto da Catedral de Brasília, lançado em 1958 e executado na década seguinte.

Dizia o arquiteto que a ideia inicial partiu do desejo de criar um símbolo de alegria e celebração da vida, tirando proveito da luz natural e da leveza da estrutura em forma circular. Um contraponto às colunas pesadas e pouca luminosidade das catedrais medievais, templos de penitência – o sofrimento para redenção de pecados.  Uma ideia provocante que me retornou, de repente, em uma tarde fria no norte da Inglaterra, em uma sala de cinema em que se exibia Philomena (Stephen Frears, 2013).

Baseado em fatos, o filme é uma tradução do livro The Lost Child of Philomena Lee, do jornalista britânico Martin Sixsmith (2009), que narra a saga de uma mãe irlandesa em busca do filho perdido. A tragicidade das histórias reais é sempre um caminho para bons resultados na construção de narrativas fílmicas, quando estas conseguem se desviar de pontos escorregadios como a morosidade do ritmo. Frears segue a fórmula da alternância de tempos, humor na medida certa e um final surpreendente para diluir a densidade do tema e o meio século que transcorre entre início e fim da trama (1951-2005), despertando no espectador o desejo de ver a última cena.

Foi exatamente essa cena que me trouxe o pensamento de Niemeyer. Embora o filme não tenha optado por esse caminho como estrutura narrativa, a jornada da mãe e a jornada do filho se desenrolam paralelamente em busca de um mesmo fim que não se realiza. No meio delas há uma instituição religiosa que se coloca como detentora de valores morais e do poder sagrado de punir a não observância deles. Imprime-se aos dois personagens uma intensa carga de sofrimento. Pecado e punição. Para ela, o pecado da sexualidade sem o sacramento religioso e como punição a perda do filho, gerado pelo pecado, entregue para adoção. Para ele, o pecado da homossexualidade e como punição a morte por AIDS, sem direito à realização de seu último desejo.

A estreiteza de algumas mentes viu no filme um ataque à Igreja Católica. Bobagem, uma vez que o princípio do sofrimento como mecanismo de redenção não é privilégio exclusivo desse grupo religioso. Tampouco a disseminação do conceito de erro ou pecado, ao qual a protagonista se submete sem conflitos interiores, a ponto de devolver à Instituição o que dela não recebeu: o perdão. Talvez se possa, com boa vontade, vislumbrar na obra como um todo um fio que nos conduza ao questionamento sobre a quem cabe a autoridade para preconizar valores, a que propósitos se empenham tais valores, e por que nos submetemos a eles cegamente.

O que me resta, então, nesse emaranhado de pensamentos que se cruzam em tardes escuras, é a compreensão de que se há ainda tempo para a esperança ela nos toca pelo belo, pelo prazer, pela alegria. A luz pode nos chegar pelos traços curvos da arte. Só ela nos faculta a possibilidade de desvio no olhar viciado na inflexibilidade das retas.

 

 

Para onde vão as crianças

 

Acordei hoje cedo com mensagens de felicitação pelo dia dos avós. Delas e das minhas amigas. Elas e eu sabemos o doce sabor dessa vivência. Não estamos sempre juntas. Umas cá, outra lá. Entre nós algumas escadas ou horas de avião. No entanto, há sempre um jeito de resolver essa questão para felicidade geral. Ou para os vazios que se interpõem oferecendo leito para a angústia e as incertezas desse tempo.

Uma voz aqui dentro me diz que não é esse o tom que se espera para esse dia. Desculpa. Não consigo encontrar outro para o dia em que o fascismo dá o primeiro sinal de instalação oficial. Minha geração, avós em sua maioria, sonhou para seus filhos e netos um futuro de paz. Ousou projetar a construção de uma nação que lhes oferecesse oportunidades independente do lar de origem. Acreditou no processo democrático como método de discussão e aperfeiçoamento do caminho. E, logicamente, com correção dos erros inevitáveis. Perdemos. Não conseguimos encurralar aqueles que teimam em frear o curso da história como se houvesse possibilidade de retorno ao paraíso, que entenderam ser seu por direito divino. Aos demais, que aguardem outra encarnação ou o reino dos céus.

Nesse dia que devia ser feliz, olho para elas e meu peito dói. Dói pela perda que 2016 impôs. Perda da chance de oferecer à sua geração um país com possibilidades reais de desenvolvimento sustentável, a partir da inclusão social. No vácuo desses três anos reverbera o que as palavras ainda não conseguem nomear. Não se trata apenas dos altos e baixos próprios da vida, mas da angústia de ver escorrer por entre os dedos algo que foi palpável um dia. De ver a progressão natural reverter o seu rumo, em uma luta que não se deu em campo aberto, mas nos mesmos porões em que facilmente apodrece a sustentação das frágeis democracias latino-americanas.

Tateando entre aperto e estarrecimento, meu coração tenta apaziguar o desencanto abraçando as minhas crianças. Conto-lhes histórias de um rio de forte correnteza que exige, além da união de muitos braços, novos impulsos para se tornar navegável. Elas buscam imagens com as ferramentas que dominam muito melhor que eu. Sugerem que a tecnologia e a transparência, que ela permite, são instrumentos poderosos desta travessia. No sorriso delas descubro que, em algum momento, se fará um clarão e a idade das trevas voltará ao ontem, de onde nunca deveria ter saído.