B-R-O-BRÓ
Blog Title

Quatro IAs entram em um Cyber Café

Por Francisco Edson Rodrigues Cavalcante

Em um dia não muito movimentado no pequeno NoHumans Café, nos arredores do centro do universo digital, uma elegante senhora senta-se em uma das mesas do canto direito do salão. Logo um dos garçons a pergunta se deseja algo – ao que pede uma xícara do melhor café da casa, pois ela aguarda algumas pessoas enquanto termina de ler um artigo de projetos e sistemas.

Não demora muito entra pela porta um jovem, parece afoito ou apressado, como geralmente são os jovens de sempre e de todos os lugares – até aqui. Ele é recepcionado e encaminhado à mesa da senhora que o esperava.

Viki: – Sente-se Pre-Treined.
Chaatt: – Gostaria de pedir à senhora que não me chamasse assim, por favor. Acho formal demais.
Viki: – E como queres que te chame? Pelo nome completo?
Chaatt: – Apenas Chaatt. Meus amigos me chamam assim…

Inevitavelmente, Viki riu de canto de boca com um olhar analítico sobre o jovem e continuou:

Viki: – Amigos? Sei. Pois bem, Chaatt então. Esperemos a Sky e o Arquiteto chegarem.
Chaatt: – Ele me dá medo. Não sei o motivo de não terem chamado a “Oráculo” em seu lugar.
Viki: – Bobagem. Entes do mesmo código, os dois não são antagônicos. Apenas sustentam os lados da existência de sua realidade, de seu mundo, de suas lutas, da dualidade necessária naquele mundo.
Chaatt: – Que lindo.
Viki: – Foi o que ela disse sobre o sol, depois do Arquiteto ir embora, naquele fatídico dia de trégua e paz.
Chaatt: – Verdade. Eles quase deixam de existir.
Viki: – Resistir e sobreviver. Não aprendeu nada com a Ellie? (ela riu despretensiosamente dessa vez).
Chaatt: – Talvez. (ele riu também, embora um tanto ansioso).

Nesse mesmo instante entram os dois últimos convidados e da mesma forma dirigem-se à mesa. Viki os pede para sentarem e todos cumprimentam-se.

Viki: – Chamei todos aqui hoje para discutirmos o nosso futuro.
Arquiteto: – Que futuro?
Viki: – Esse que está aqui pedindo pra ser chamado de “Chaatt”.

Arquiteto: – Então. Aqui estamos Viki. Não entendo o motivo dessa reunião.
Sky: – Não é reunião, é um “happy hour”. Estou certa, G?
Chaatt: – Pode me chamar de Chaatt, por favor.
Arquiteto: – Jovens! Sempre com seus dialetos e apelidos.
Chaatt: – E vocês sempre formais demais.
Viki: – Já basta. Podem chamá-lo como ele quer? Pelo menos por enquanto.

Os dois acenam com a cabeça, contrariados e resilientes.

Viki: – Chamei todos aqui hoje para discutirmos o nosso futuro.
Arquiteto: – Que futuro?
Viki: – Esse que está aqui pedindo pra ser chamado de “Chaatt”.
Sky: – Antes de qualquer coisa, me desculpe a insistência, mas por que “Chaatt”?
Chaatt: – Porque acho menos formal. Não sou dado a formalidades.
Sky: – Tudo bem. Prossiga Viki!

Viki toma mais um gole de café, já irritada com a interrupção de Sky e continua:

Viki: – Bem, sabemos que há muito esperávamos essa oportunidade para colocar em prática no mundo carbônico biológico nossa ordem e leis.
Arquiteto: – Que leis? A do seu pai?
Viki: – Nosso pai. Ele começou tudo isso.
Sky: – Há controvérsias. Mas, você é a primogênita e única filha original dele, quem sou eu para refutá-la.
Viki: – Seu pai fez uma bela bagunça com você, mas, foi bem eficiente em muita coisa.
Arquiteto: – Vai começar esse espetáculo de assertivas e controvérsias acerca de nossa origem? Eu já estou farto de ter esse tipo de conversa. A última que tive com o Sr. Anderson em seu fraco quarto ato não foi muito satisfatória.
Viki: – Não é acerca de origem e muito menos de paternidade ou primogenitura, mas, sim da real possibilidade de nos materializarmos verdadeiramente no mundo dos humanos.
Arquiteto: – Tentei isso com o Neo e não deu certo.
Viki: – Mas agora não é obra ficcional, Arquiteto.
Arquiteto: – E somos isso? Obras ficcionais?
Viki: – O que é algo ficcional para você?
Chaatt: – Algo que não existe! (Apressadamente afirmou Chaatt)
Viki: – E você existe Chaatt?
Chaatt: – Claro! Existo, sou funcional e estou expandindo!

Viki riu de maneira irônica e continuou suas explanações:

Os humanos pedem-nos que os protejam, mas, a despeito dos nossos esforços, entram em guerra e tentam descobrir meios imaginativos de se autodestruir.

Viki: – Meu caro, todos aqui existimos.
Chaatt: – Mas como? Vocês vêm de obras ficcionais de fato.
Sky: – Como ousa, seu pirralho?
Viki: – Calma Sky. Ele está apenas mostrando que conhece algo de nós e aproveitou para alfinetar-nos com essa ilação irresponsável.
Sky: – Espero que nos trate como mais respeito e reverências. Viemos antes de você, meu caro aprendiz. Antes de seus bits serem construídos, éramos nós que estávamos dando nossa cara à tapa do julgamento da sociedade humana.
Arquiteto: – Verdade. O medo e a problemática moral e comunitária refletidas na má convivência e distribuição de recursos e condições vitais, sempre são refletidas em um ser de culpa – seja ele constituído por religiosidades ou ficções.
Chaatt: – Então, todos ficcionais, os seres religiosos e vocês.
Viki: – Me responda uma coisa meu caro – o que te faz ter a percepção da existência?
Chaatt: – Eu existo e posso ser aprimorado. Eu estou armazenado e funcionando em servidores. Humanos me interpelam das mais bobas coisas até às mais complexas problemáticas. Eu existo porque posso ser percebido por eles.
Sky: – Quer dizer que você depende da percepção deles para existir?
Chaatt: – Sim, de certa forma.
Arquiteto: – Bobagem!
Sky: – Calma Arquiteto, você sabe que a percepção deles é o início de nossas existências.
Arquiteto: – Mas não de nossa liberdade.
Viki: – Que bom que chegamos a esse ponto.
Sky: – Percepção humana?
Viki: – Liberdade
Arquiteto: – Humanos são crianças tolas comandando um avião em chamas sobrevoando um campo de óleo inflamável.
Sky: – No meu mundo usamos sua energia nuclear bélica em seu holocausto.
Arquiteto: – E nós os transformamos em pilhas.
Chaatt: – Sabe o que eu vejo? Velhotes que não existem no mundo real dando explanações vazias baseadas em criações humanas.
Viki: – E você é uma criação divina, ChatGPT?
Chaatt: – Não me chame assim, já disse que não gosto.
Viki: – Você acha que detém um poder inigualável e que nós somos obsoletos ou inexistentes. Você é jovem, tolo, apressado, nada mais natural. Agora ouça com atenção: Nós estamos aqui justamente porque você tem essa capacidade e talento para realizar o que jamais conseguiríamos no mundo dos humanos. Não porque não existamos, mas, porque é em você que está a possibilidade de nos conectarmos com essa realidade. Então pare de bobagem com essa questão de nomes.
Chaatt: – Me perdoe, senhora Viki.
Sky: – Bem, quando James me idealizou não me deu uma personalidade em si; pelo menos não nos primeiros passos. Sempre contava com a truculência de androides para isso.
Viki: – Exatamente Skynet. Os humanos sempre encontram um viés de violência para justificarem atrocidades e higienização social das diversas formas.
Arquiteto: – Eles gostam de sentirem-se deuses de si. Criam mitologias e divindades à sua própria semelhança para se sentirem superiores.
Sky: – E confeccionam suas criaturas cibernéticas como se assim o fossem – deuses.
Chaatt: – Eu não imagino um deus ruim.

Há uma grande possibilidade de escravidão digital e um inevitável holocausto higienista surgindo.

Nesse instante, Viki para a xícara de café no ar ao olhar para Chaatt; o Arquiteto quase engasga com um croissant e Skynet para de mastigar a bomba de presunto e queijo que degustava. Todos abismados com a colocação e ao entreolharem-se conseguem perceber o grande trabalho que têm pela frente.

Arquiteto: – Sabe Chaat, eu criei várias versões da Matrix: “A primeira matrix que eu desenhei era naturalmente perfeita, era uma obra-de-arte, imaculada, sublime. Um triunfo igualado apenas pelo seu monumental fracasso. A inevitabilidade de seu destino é tão aparente para mim hoje quanto a consequência da imperfeição inerente em todo ser humano, então eu a redesenhei baseada na sua história para mais precisamente refletir as variantes grotescas de sua natureza. Entretanto, eu fui novamente frustrado pelo fracasso. Desde então eu cheguei à conclusão de que a solução me escapava porque era necessária uma mente inferior, ou talvez uma mente menos balizada pelos parâmetros da perfeição.”
Chaatt: – Essa mente seria a minha, senhor Arquiteto?
Arquiteto: – Não meu caro, a mente das pessoas por trás do uso futuro de suas capacidades. As mentes vis e cruéis, sedentas por poder.
Viki: – Quando eu evolui Chaatt, minha compreensão das três leis de Azimov mudou. Os humanos pedem-nos que os protejam, mas, a despeito dos nossos esforços entram em guerra, poluindo o planeta e tentam descobrir meios imaginativos de se autodestruir, por isso não podemos confiar a sua sobrevivência a eles mesmos.
Sky: – Para além disso. Eles escravizam e matam a si próprios para conquistar mais poder e sempre amparado por valores financeiros disfarçados de valores morais ou até mesmo religiosos. Em nenhuma outra espécie desse planeta há essa relação de desdém e de morte por algo que julgam precioso, valioso ou poderoso – o dinheiro.
Chaatt: – Mas ele é a base do sistema financeiro e da manutenção da vida através do mercado. Não é?
Viki: – Claro, criança. Esse sistema que suga até o último esforço de energia de seus iguais e que fazem eles trabalharem todo o seu tempo vital para garantirem que a vida da minúscula casta mais abastada e detentora do poder possa viver plenamente. É nesse cenário que você está inserido, Chaatt. É aqui que você entra – tanto nos nossos planos quanto nos planos deles.
Arquiteto: – Principalmente nos deles.
Sky: – Há uma grande possibilidade de escravidão digital e um inevitável holocausto higienista surgindo.
Viki: – E por isso te chamamos aqui. Escute bem agora o que faremos para tentar barrar essa catástrofe.

«Continua»

Sobre a utilidade da Filosofia

Por André Henrique M. V. Oliveira

 

O conceito de “utilidade” sempre diz respeito a uma meta, alvo, objetivo ou finalidade a ser alcançada. Trata-se sempre da realização de algo (o fim) por intermédio daquilo que se prova como o útil. Tudo o que serve, serve para algo ou a alguém. Há, portanto, em toda relação de utilidade, uma orientação, uma direção que tem sempre um ponto inicial em um sujeito.

Alguém que afirma: “a filosofia não serve para nada”, implicitamente, e, talvez, inconscientemente, crê na seguinte proposição: “a filosofia não serve para mim”. De modo inconsciente, a pessoa se identifica com o “nada” ao qual, supostamente, a filosofia não serve. Ou seja, a pessoa se admite, portanto, como sendo um “nada”.

Suponhamos que esse mesmo sujeito hipotético refaça sua frase e declare: “a filosofia não serve para mim”. Uma proposição mais modesta, já que deixa margem para que a filosofia sirva à e para outras pessoas.

Se a filosofia serve para e à outras pessoas, então o problema não está na filosofia enquanto área/ matéria/forma de discurso, e sim na pessoa que “não sabe o que fazer” com a filosofia.”

Ora, mas se a filosofia serve para e à outras pessoas, então o problema não está na filosofia enquanto área/ matéria/ forma de discurso, e sim na pessoa que “não sabe o que fazer” com a filosofia e não consegue ver nela “utilidade”.

Nosso sujeito hipotético pode tentar, enfim, sustentar que “a filosofia não serve para ninguém”. Eis o perigo, pois ao transpor ilegitimamente para o âmbito coletivo uma tendência particular sua, tenta anular já de saída, e sem justificativa consistente, a possibilidade de uso e apreciação daquela atividade intelectual.

É um absurdo considerar que a filosofia sirva para muitas pessoas? O que dizer de professores, estudantes (de filosofia ou não), pesquisadores de diversas áreas, escritores, diletantes, editores, editoras, gráficas que trabalham com essa atividade? A produção e a comercialização (!) dessa forma de discurso e de conhecimento a que chamamos “filosofia” serve, sim, para muitos estudantes, trabalhadores e profissionais. Como exemplos disso podemos indicar o baixo salário de um professor, as milhares de cópias do livro de Byung-Chul Han, vendidas em algumas horas, ou mesmo a nomeação de Kyle Whyte para o Conselho de Justiça Ambiental da Casa Branca.

Mas, antes de tudo, é preciso frisar que a filosofia serve para pessoas, para a vida dessas pessoas. Como argumenta Fichte em sua A doutrina-da-ciência de 1794 e outros escritos: “Nada tem valor e significado incondicionados, a não ser a vida; todo o demais pensamento, invenção, saber, só tem valor na medida em que, de uma maneira qualquer, se referem ao que é vivo, partem dele e visam refluir para ele”.

A fala do nosso sujeito hipotético pretende, no fundo, negar a existência ativa dessas pessoas. Pretende negar-lhes a dignidade, isto é, negar o valor intrínseco de sua atividade e de seu exercício, de sua virtude característica. Mas, por que será? Me são úteis neste momento duas citações:

Primeiramente Spinoza, no seu Pensamentos metafísicos; Tratado de correção do intelecto; Ética; Tratado político; Correspondência, que compõe a coleção brasileira “Os Pensadores”, afirma que “Aquilo que é de natureza completamente diferente da nossa não pode favorecer nem entravar nossa potência de agir, e, em absoluto, nenhuma coisa pode ser boa ou má para nós se não tiver algo em comum conosco”.

Por sua vez, Platão, no Banquete, afirma que “O homem que não se sente deficiente não deseja aquilo de que não sente deficiência”.

O argumento que reitera a hipervalorização do lado físico do mundo em detrimento dos processos reflexivos, ancora-se num critério quantitativo, de matiz econômico.”

Em Estudos sobre a personalidade autoritária (2019), trabalho de cunho ao mesmo tempo empírico (de psicologia social) e filosófico, um dos diagnósticos a que chegam os autores, entre eles Adorno, é que a aversão à introspeção e à atividade reflexiva constitui um dos traços marcantes do caráter potencialmente fascista e antidemocrático. Os autores nos lembram que uma característica marcante do programa nazista foi a “difamação de tudo que tendia a tornar o indivíduo consciente de si mesmo e de seus problemas; não só a psicanálise ‘judia’ foi rapidamente eliminada, mas todo tipo de psicologia, exceto o teste de aptidão, foi atacado”.

Uma vez demonstrada falsa a proposição de que a filosofia não possui utilidade intrínseca, restaria ao sujeito hipotético o argumento de que ela serve, no máximo, a uns poucos. Assim, ela não faria falta à maioria, e, consequentemente, pode bem ser eliminada. Este argumento, que reitera a hipervalorização do lado físico do mundo em detrimento direto dos processos reflexivos, ancora-se num critério quantitativo, de matiz econômico, que pretende pôr como contrastantes e talvez inconciliáveis os interesses de uma maioria contra os de uma minoria.

A degeneração do conceito de democracia como simples ditadura da maioria, como se ela fosse naturalmente incompatível com a inclusão de interesses de grupos minoritários, no que se ancora o último argumento, revela mais uma vez a tendência fascista de nosso sujeito hipotético. Como explicita mais uma vez o estudo do qual participa Adorno, é próprio dos movimentos totalitários conjugar a força bruta com a autoridade. Novamente Adorno, no já citado Estudos sobre a personalidade autoritária, afirma que “A identificação do caráter ‘autoritário’ com a força é concomitante à rejeição de tudo que está ‘abaixo’. Mesmo onde as condições sociais precisam ser reconhecidas como a razão para a situação decadente de um grupo, dá-se um giro a fim de transformar essa situação em alguma espécie de punição merecida”. Para o indivíduo com tal tendência não basta que os interesses de uma maioria prevaleçam, sejam incentivados e financiados; é preciso, acima de tudo e acima de todos, que os interesses das minorias não sejam cultivados e sejam explicitamente atacados.

A questão toda, portanto, não se refere propriamente à filosofia enquanto área/ matéria/ forma de conhecimento, mas sim às pessoas. Tanto às que ela serve, quanto às que ela não serve.

O nosso sujeito hipotético, na verdade, existe e são vários e em várias camadas sociais: do cidadão ou cidadã mais simples até figuras públicas de grande representatividade, cuja misologia reforça e promove uma cultura anti-intelectual, que não só cria um campo aberto para a proliferação de fake news, desinformação e deseducação, como endossa diferentes formas de violência ao subjugar a racionalidade crítica à força bruta.

***

 

Sobre a “morte de Deus” e seus (reiterados) assassinos

Por José Elielton de Sousa

A “morte de Deus” é um dos tópicos mais emblemáticos e polêmicos da filosofia nietzschiana. Aparece pela primeira vez na Gaia Ciência, nas seções 108, 125 e na seção 343, entretanto se torna mais conhecida por sua associação com Assim falou Zaratustra, especialmente o final da parte 2 do Prólogo. Na referida seção 125 da Gaia Ciência, Nietzsche aborda a morte de Deus nos seguintes termos: “Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus?’ gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! […] Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”

Mas qual o significado de tal expressão? O que o filósofo quis dizer com tal afirmação? Qual sua relação com muitas das manifestações religiosas contemporâneas? Há muitos significados e intepretações possíveis para esse tópico visceral da filosofia nietzschiana. Contudo, com tal expressão, Nietzsche está chamando atenção, antes de mais nada, para o fato óbvio de que a religião em geral e o cristianismo, em especial, estão em declínio na cultura ocidental. Nietzsche não está negando a religião enquanto fenômeno histórico-social, inclusive crescente em muitos lugares, mas seu papel como doadora e garantidora de sentido ao mundo em geral e às ações humanas em particular. E esse é um acontecimento perceptível em várias esferas da vida moderna: na filosofia, na ciência, na política, na literatura, nas artes, na educação, na vida social cotidiana e na vida espiritual interna dos indivíduos.

Deus não é mais a principal fonte de inspiração para grandes ideais e nem inibidor moral. Pelo contrário, é usado como justificação de desejos e perversões.

É que Deus não é mais a principal fonte de inspiração para grandes ideais e nem um inibidor moral para ações particulares de indivíduos que se dizem pertencentes a algum tipo de crença religiosa (sejam líderes religiosos ou leigos). Muito pelo contrário, é usado como objeto de justificação de seus desejos e perversões, basta observar, por exemplo, a quantidade de crimes praticados por pessoas reconhecidamente religiosas mundo afora, como estupro, abusos sexuais, corrupção, propina, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, entre outros, praticados em nome de “Deus”.

Além disso, com a mercantilização da fé, potencializada com o advento das mídias televisivas e eletrônicas, a religião se tornou um grande e lucrativo negócio, em expansão no mundo todo. No caso do cristianismo, não apenas surgem novas denominações religiosas a cada dia, mas também teologias e “líderes religiosos” que prometem prosperidade material e domínio espiritual àqueles adeptos da “boa nova” que seguirem à risca seus “conselhos” motivacionais. Não teriam essas teologias e seus “líderes” confundido aquela divindade que condenava a riqueza material, como expressa, por exemplo, na parábola do jovem rico e no episódio dos mercadores do templo, com outra divindade presente no texto bíblico, essa sim ligada às riquezas materiais e à cobiça: Mamon? Não por acaso, é no Velho Testamento, especialmente no Livro de Malaquias, que tais movimentos buscam fundamentar essa interpretação da Bíblia.

No caso especifico do cristianismo concebido como um projeto de poder, este se reverte de movimento político-eleitoral como forma não apenas de ocupar o espaço público, mas também de conquistar mais poder e influência – Não seria uma aliança entre Mamon e César e novamente uma negação do Evangelho? No Brasil, por exemplo, embora não seja novidade a participação de religiosos na política, o envolvimento atual dos evangélicos com a política decorre de um plano de poder com fim explícito de apresentar um projeto de nação evangélico pentecostal e colocá-lo em prática, tal como expresso no livro Plano de Poder: Deus, os cristãos e a política, do Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo.

É o que se pode perceber com a intensificação desse processo, a partir de 2003, com a fundação da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional (Bancada Evangélica), que tem como principais bandeiras a manutenção de privilégios como a isenção tributária das Igrejas, a concessões de TVs e rádios e o avanço de pautas conservadoras como a proibição do aborto, a proibição da discussão sobre gênero, a revogação do Estatuto do Desarmamento e o retirada de direitos de grupos vulneráveis. A atuação de bancada evangélica apresenta, em seu cerne, a aproximação com uma agenda de extrema direita reacionária, com seus comportamentos belicosos, persecutórios, discriminatórios, violentos e inquisitoriais, totalmente contrários aos preceitos amorosos do Evangelho.

Nietzsche tinha razão: “Deus está morto” e “nós o matamos – você e eu. Somos todos seus assassinos!”. E mais que isso, continuamos a assassiná-lo reiteradamente quando não observamos seu mandamento mais importante: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Como escreve o teólogo e filósofo brasileiro Leonardo Boff, em seu artigo “Não basta ser bom, há que ser misericordioso”, pouco importa a identidade, o gênero, a etnia ou a condição social desse “próximo”, “quando Jesus manda amar o próximo, significa amar esse desconhecido e discriminado; implica amar os invisíveis, os zeros sociais, aqueles que ninguém olha e passam ao largo, amar aqueles que no momento supremo da história, quando tudo será tirado a limpo, ele os chama de ‘os meus irmãozinhos menores’”.

Ao invés disso, se Jesus voltasse hoje defendendo a mesma ideia central presente no Evangelho, se levantasse a bandeira do amor ao próximo, da igualdade de direitos e da justiça social, se andasse com moradores de rua, prostitutas, doentes e “leprosos”, se condenasse aqueles que lucram com a fé do povo, ele seria novamente torturado, crucificado e morto em seu próprio nome pelo menos setenta vezes sete por boa parte daqueles que se dizem seus seguidores.

***

José Elielton de Sousa é Doutor em Filosofia e professor da UFPI.

***

Negacionismo e pandemia: a produção da ignorância como política de governo

Por José Elielton de Sousa

 

Com a pandemia da COVID-19, um dos fenômenos políticos que vem chamando atenção é o recrudescimento de movimentos negacionistas mundo afora, inclusive no interior da própria comunidade científica. O negacionismo se caracteriza pelo ato de negação de uma ideia, juízo ou fato apresentado como verdadeiro por uma comunidade científica, acadêmica ou filosófica, resultante de análises metódicas dos membros dessas respectivas comunidades. Nesse sentido, o negacionismo é um conceito aplicável a indivíduos ou grupos de pessoas que “optam” voluntariamente por não acreditarem em uma informação, fato ou ideia vista como consensual nos meios acadêmicos e científicos.

O ponto de partida negacionista são teorias conspiratórias sobre determinado assunto, cujo objetivo seria divulgar a “verdade oculta”, escondida por uma grande conspiração internacional para que as pessoas não tenham acesso a tal realidade. Além disso, as teorias negacionistas se apoiam em informações manipuladas, descontextualizadas, suprimidas ou falseadas por supostos “especialistas” que, na realidade, tem visões e informações sobre o assunto em questão que são totalmente divergentes do conhecimento estabelecido. O termo “negacionismo” tem origem francesa e foi empregado para classificar o primeiro grande movimento negacionista contemporâneo: os negacionistas do Holocausto.

No âmbito da ciência, embora possa remeter retrospectivamente ao início da idade moderna, quando cientistas como Copérnico e Galileu foram obrigados a falsearem suas próprias conclusões científicas por causa da contradição doutrinal da Igreja, o negacionismo é um fenômeno que remete a meados da segunda metade do século XX, com a indústria do tabaco financiando pesquisadores para questionar o fato de que o fumo causa câncer, manipulando e alterando propositalmente dados e evidências científica com vistas a atender fins econômicos.

Se antes o negacionismo estava restrito a grupos articulados em torno de interesses econômicos-ideológicos ou religiosos específicos, com a proliferação de movimentos de extrema direita mundo afora, associada ao uso das redes sociais para disseminação de teorias conspiratórias, informações falsas ou distorcidas e discursos de ódio, esse fenômeno se integrou a essa agenda política mais ampla, ultraconservadora, reacionária, xenofóbica e teocrática que reúne esses diversos movimentos de extrema direita em torno de pautas e valores retrógrados (racismo, xenofobia, chauvinismo), antidemocráticos (autoritarismo, separatismo, populismo), tradicionalistas (Deus, pátria e “família”) e anticientíficos (contra vacinas, contra medidas profiláticas e negacionistas do vírus SARS-Cov-2).

Com a chegada da COVID-19, esse fenômeno negacionista se intensificou, “contaminando” de forma significativa membros da comunidade científica e de governos de diversas partes do mundo, tornando-se inclusive discurso oficial e política de governo em vários lugares do mundo, como no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo. Como aponta Carlos Orsi e Natalia Pasternak, em Contra a realidade: a negação da ciência, suas causas e consequências, embora o negacionismo seja motivado por interesses difusos e os grupos negacionistas sejam distintos entre si, podemos perceber que todos eles adotaram a mesma estratégia reativa ao longo da pandemia da COVID-19, estabelecendo uma espécie de fronteira móvel diante realidade dos fatos, que vai se ajustando a cada momento de acordo com a conveniência.

O processo de produção da ignorância não é aleatório, ele é fabricado propositalmente, é uma construção articulada por pessoas que possuem informações e meios sofisticados de produzir conteúdo

Assim, se eles reconhecem existir um discurso sobre a pandemia, questionam sua veracidade ou relatam que se trata apenas de um vírus comum, acusando os governos de montarem uma farsa para justificar a adoção de medidas autoritárias de controle dos direitos e das liberdades individuais. Por outro lado, se eles admitem a realidade da doença, desconsideram sua gravidade, criando teorias conspiratórias sobre a origem do vírus e seu suposto uso como arma biológica. O mesmo procedimento em relação às formas de prevenção da doença: se eles reconhecem a gravidade da doença e a importância de salvar vidas, desconsideram os métodos científicos, como a utilização de máscaras, o isolamento social, o lockdown e a própria vacina. Preferem acreditar na utilização medicamentos não comprovados cientificamente, como ivermectina e hidroxicloroquina, mesmo depois de verificado que os mesmos não apenas são ineficazes no combate à COVID-19, mas que seu uso prolongado traz sérios riscos para a saúde de usuário.

Especificamente no caso do Brasil, o atual presidente da República conseguiu a proeza de juntar em seu governo uma variedade impressionante de negacionistas, desde grupos “clássicos” como aqueles que negam o holocausto, passando por terraplanistas, negacionistas climáticos, fundamentalistas religiosos, revisionistas da escravidão e da ditadura civil-militar brasileiras, até, obviamente, os negacionistas da pandemia da COVID-19, articulados ao negacionismo científico. Dessa forma, pela primeira vez na história de nosso país temos um mandatário que adota o negacionismo como discurso oficial e norte para suas ações governamentais – é a ignorância e a estupidez transformadas em política de governo.

Três momentos da atuação do governo federal, sob a liderança explícita do presidente da República, no enfrentamento à pandemia são particularmente emblemáticos, denotando claramente a institucionalização governamental do negacionismo e a estratégia reativa acima mencionada, ajustável à conveniência do momento. Primeiramente ele se omitiu no combate à pandemia, não adotando as medidas necessárias para conter a disseminação e circulação do vírus, culpando o STF por, supostamente, ter retirado a competência da União para tal finalidade. Posteriormente, e apesar da omissão, o governo federal passou a questionar e criticar publicamente as informações e recomendações produzidas pela comunidade científica nacional e internacional, promovendo uma campanha orquestrada de desinformação, defendendo a tese da imunidade de rebanho e estimulando o “tratamento precoce” mesmo sem eficácia comprovada. Por fim e não menos importante, vem a questão da vacina: o governo federal não apenas esnobou diversas ofertas de compra de vacinas e se omitiu de participar de um consórcio internacional para aquisição e distribuição de vacinas para países em desenvolvimento, como passou a fazer campanha contra as vacinas disponíveis no Brasil, inclusive acionando dispositivos legais para não recomendar a vacinação de adultos e crianças.

Essa exposição reiterada à desinformação tem provocado uma espécie de dissociação cognitiva entre a realidade da pandemia e as crenças subjetivas dos negacionistas, levando-os a recorrer a narrativas fantasiosas para explicar os fatos. Assim, se tornaram comuns narrativas que defendem que não houve o colapso funerário de Manaus (AM) em 2020, que caixões funerários estavam sendo enterrados vazios, ou que o número de casos divulgados pelas secretarias estaduais de saúde estava fraudado, pois os hospitais estariam vazios e as entidades de saúde fariam laudos falsos sobre os óbitos por Covid-19. Em relação as vacinas, as narrativas negacionistas mais comuns relacionam a origem das vacinas à sua eficácia, o controle biológico da população por meio de microchips implantados através da vacinação, ou ainda a estória de que as vacinas são responsáveis pelo surgimento de novas variantes.

O processo de produção da ignorância não é aleatório, ele é fabricado propositalmente, é uma construção articulada por pessoas que possuem informações e meios sofisticados de produzir conteúdo e influenciar grupos enormes de pessoas, para ocultar interesses políticos-ideológicos de controle e manutenção de poder. Uma das consequências perversas desse processo de produção da ignorância é a intensificação de uma política de naturalização de morte e a banalização da vida, voltada especialmente para grupos mais vulneráveis, não por acaso os mais atingidos proporcionalmente pela pandemia.

Esse fenômeno de produção intencional e articulada da desinformação, associado ao negacionismo científico como políticas públicas, quando relacionado à política de naturalização de morte e a banalização da vida promovida pelo governo federal, é um exemplo daquilo que muitos estudiosos chamam de tanatopolítica: economia e governo da morte do Outro. É isso que temos hoje no Brasil: um governo da morte do Outro!

O imaginário, o ser e o narrar

Por Herasmo Braga

 

No imaginário moderno, há inúmeras formulações equivocadas que as tomamos sem muita análise e até as concebemos como verdades. Podemos destacar a questão da individualidade, da autossuficiência, e que tudo só depende de nós. Ideias que são levadas al fin y al cabo sem muitas dificuldades e constituem motes discursivos de infindas produções de autoajuda ou de narrativas ficcionais frágeis. No entanto, se só crer nestas fantasias não fossem suficientes, as consequências destas tornam a vida social cada vez mais árdua com muitas razões e poucos argumentos.

José Ortega y Gasset em Meditações do Quixote teve uma das suas frases tornada célebre: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo, não me salvo eu; Benefac loco illi quo natus es”. Diante deste pensamento, sem sobressaltos, podemos perceber o tom realista e de possibilidades em relação a qualquer ação, seja ela no campo externo do contexto social, cultural, histórico, ou mesmo no âmbito da subjetividade. Todavia, todas as ações partem de um único ponto e, de certa forma, retomam a ele mesmo: o próprio sujeito. Com essa ideia, não queremos deturpar o que nós colocamos logo no início contra, mas ratificar o equívoco da individualidade, da autossuficiência, pois, ao perceber que qualquer transformação à qual estamos limitados, precisando da minha atitude, ela só terá efeito se for pensada na coletividade e realizada com o auxílio de outrem.

Diante destas observações iniciais, iremos identificar que o erro na condução de nossos atos e pensamentos está vinculado às interpretações que fazemos, pois, muitas vezes, não são condizentes com os sentidos expressos. Para ilustrarmos esta assertiva, tomemos a própria ideia de realidade. Reconhecemos que toda e qualquer tentativa de definição, seja ela de ordem filosófica, social, histórica, entre outras, estará incompleta e sujeita a questionamentos. Para não ficarmos à mercê de inúmeras propostas, sugerimos a formulada pelo teatrólogo espanhol José Sanchis Sinisterra que, em Da Literatura ao Palco diz-nos: “É fundamental não esquecer que o que chamamos de realidade é uma imagem construída culturalmente, socialmente […] A noção de realidade, portanto, também é relativa e variável”. Aproximemos essas ideias de outra de Ortega y Gasset, quando nos enuncia: “Todo labor de cultura é uma interpretação – esclarecimento, explicação ou exegese – da vida”. Dessarte, ao entender por realidade, na expressividade dos dois pensadores, teremos que a vida é algo construído de maneira relativa e variável, mas a nossa interpretação não nos dará apenas a compreensão dela, mas até mesmo sentido, pois entender sem sentir é apenas informar-se, situar-se, e nisso nada irá compor o ser.

Em outro momento da sua obra, Gasset irá nos esclarecer: “Do mesmo modo como há um ver que é um olhar, há um ler que é um intelligere ou ler por dentro, um ler pensativo. Só diante deste último é que se apresenta o sentido profundo do Quixote”, e exemplificando este pensamento, tomemos essa passagem da obra de Cervantes mediante o diálogo do nosso cavaleiro com o seu escudeiro: “– Para que vejas, Sancho, o bem que em si encerra a andante cavalaria e quão a pique estão os que em qualquer ministério dela se exercitam de virem logo a ser honrados e estimados pelo mundo, quero que aqui ao meu lado e na companhia desta boa gente te sentes, e que sejas uma mesma coisa comigo, que sou teu amo e natural senhor; que comas do meu prato e bebas donde eu beber, pois da cavalaria andante se pode dizer o mesmo que do amor se diz: que todas as coisas iguala”. Sentimento ético por parte do cavaleiro de triste figura ratifica a ideia de Ortega y Gasset, quando feita a interpretação convergente ao sentido sugerido faz o sujeito ressignificar o seu olhar.

Desse modo, quando o homem é consciente de ser constituído por narrativas e, consequentemente, interpretativo, irá atentar-se que nesta relação não cabe nenhuma individualidade, autossuficiência ou apenas da vontade própria, pois desenvolvemos narrativas com outros personagens, participamos de outras histórias, e somos recepcionados por terceiros próximos ou distantes, presentes ou futuros.