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Negacionismo e pandemia: a produção da ignorância como política de governo

Por José Elielton de Sousa

 

Com a pandemia da COVID-19, um dos fenômenos políticos que vem chamando atenção é o recrudescimento de movimentos negacionistas mundo afora, inclusive no interior da própria comunidade científica. O negacionismo se caracteriza pelo ato de negação de uma ideia, juízo ou fato apresentado como verdadeiro por uma comunidade científica, acadêmica ou filosófica, resultante de análises metódicas dos membros dessas respectivas comunidades. Nesse sentido, o negacionismo é um conceito aplicável a indivíduos ou grupos de pessoas que “optam” voluntariamente por não acreditarem em uma informação, fato ou ideia vista como consensual nos meios acadêmicos e científicos.

O ponto de partida negacionista são teorias conspiratórias sobre determinado assunto, cujo objetivo seria divulgar a “verdade oculta”, escondida por uma grande conspiração internacional para que as pessoas não tenham acesso a tal realidade. Além disso, as teorias negacionistas se apoiam em informações manipuladas, descontextualizadas, suprimidas ou falseadas por supostos “especialistas” que, na realidade, tem visões e informações sobre o assunto em questão que são totalmente divergentes do conhecimento estabelecido. O termo “negacionismo” tem origem francesa e foi empregado para classificar o primeiro grande movimento negacionista contemporâneo: os negacionistas do Holocausto.

No âmbito da ciência, embora possa remeter retrospectivamente ao início da idade moderna, quando cientistas como Copérnico e Galileu foram obrigados a falsearem suas próprias conclusões científicas por causa da contradição doutrinal da Igreja, o negacionismo é um fenômeno que remete a meados da segunda metade do século XX, com a indústria do tabaco financiando pesquisadores para questionar o fato de que o fumo causa câncer, manipulando e alterando propositalmente dados e evidências científica com vistas a atender fins econômicos.

Se antes o negacionismo estava restrito a grupos articulados em torno de interesses econômicos-ideológicos ou religiosos específicos, com a proliferação de movimentos de extrema direita mundo afora, associada ao uso das redes sociais para disseminação de teorias conspiratórias, informações falsas ou distorcidas e discursos de ódio, esse fenômeno se integrou a essa agenda política mais ampla, ultraconservadora, reacionária, xenofóbica e teocrática que reúne esses diversos movimentos de extrema direita em torno de pautas e valores retrógrados (racismo, xenofobia, chauvinismo), antidemocráticos (autoritarismo, separatismo, populismo), tradicionalistas (Deus, pátria e “família”) e anticientíficos (contra vacinas, contra medidas profiláticas e negacionistas do vírus SARS-Cov-2).

Com a chegada da COVID-19, esse fenômeno negacionista se intensificou, “contaminando” de forma significativa membros da comunidade científica e de governos de diversas partes do mundo, tornando-se inclusive discurso oficial e política de governo em vários lugares do mundo, como no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo. Como aponta Carlos Orsi e Natalia Pasternak, em Contra a realidade: a negação da ciência, suas causas e consequências, embora o negacionismo seja motivado por interesses difusos e os grupos negacionistas sejam distintos entre si, podemos perceber que todos eles adotaram a mesma estratégia reativa ao longo da pandemia da COVID-19, estabelecendo uma espécie de fronteira móvel diante realidade dos fatos, que vai se ajustando a cada momento de acordo com a conveniência.

O processo de produção da ignorância não é aleatório, ele é fabricado propositalmente, é uma construção articulada por pessoas que possuem informações e meios sofisticados de produzir conteúdo

Assim, se eles reconhecem existir um discurso sobre a pandemia, questionam sua veracidade ou relatam que se trata apenas de um vírus comum, acusando os governos de montarem uma farsa para justificar a adoção de medidas autoritárias de controle dos direitos e das liberdades individuais. Por outro lado, se eles admitem a realidade da doença, desconsideram sua gravidade, criando teorias conspiratórias sobre a origem do vírus e seu suposto uso como arma biológica. O mesmo procedimento em relação às formas de prevenção da doença: se eles reconhecem a gravidade da doença e a importância de salvar vidas, desconsideram os métodos científicos, como a utilização de máscaras, o isolamento social, o lockdown e a própria vacina. Preferem acreditar na utilização medicamentos não comprovados cientificamente, como ivermectina e hidroxicloroquina, mesmo depois de verificado que os mesmos não apenas são ineficazes no combate à COVID-19, mas que seu uso prolongado traz sérios riscos para a saúde de usuário.

Especificamente no caso do Brasil, o atual presidente da República conseguiu a proeza de juntar em seu governo uma variedade impressionante de negacionistas, desde grupos “clássicos” como aqueles que negam o holocausto, passando por terraplanistas, negacionistas climáticos, fundamentalistas religiosos, revisionistas da escravidão e da ditadura civil-militar brasileiras, até, obviamente, os negacionistas da pandemia da COVID-19, articulados ao negacionismo científico. Dessa forma, pela primeira vez na história de nosso país temos um mandatário que adota o negacionismo como discurso oficial e norte para suas ações governamentais – é a ignorância e a estupidez transformadas em política de governo.

Três momentos da atuação do governo federal, sob a liderança explícita do presidente da República, no enfrentamento à pandemia são particularmente emblemáticos, denotando claramente a institucionalização governamental do negacionismo e a estratégia reativa acima mencionada, ajustável à conveniência do momento. Primeiramente ele se omitiu no combate à pandemia, não adotando as medidas necessárias para conter a disseminação e circulação do vírus, culpando o STF por, supostamente, ter retirado a competência da União para tal finalidade. Posteriormente, e apesar da omissão, o governo federal passou a questionar e criticar publicamente as informações e recomendações produzidas pela comunidade científica nacional e internacional, promovendo uma campanha orquestrada de desinformação, defendendo a tese da imunidade de rebanho e estimulando o “tratamento precoce” mesmo sem eficácia comprovada. Por fim e não menos importante, vem a questão da vacina: o governo federal não apenas esnobou diversas ofertas de compra de vacinas e se omitiu de participar de um consórcio internacional para aquisição e distribuição de vacinas para países em desenvolvimento, como passou a fazer campanha contra as vacinas disponíveis no Brasil, inclusive acionando dispositivos legais para não recomendar a vacinação de adultos e crianças.

Essa exposição reiterada à desinformação tem provocado uma espécie de dissociação cognitiva entre a realidade da pandemia e as crenças subjetivas dos negacionistas, levando-os a recorrer a narrativas fantasiosas para explicar os fatos. Assim, se tornaram comuns narrativas que defendem que não houve o colapso funerário de Manaus (AM) em 2020, que caixões funerários estavam sendo enterrados vazios, ou que o número de casos divulgados pelas secretarias estaduais de saúde estava fraudado, pois os hospitais estariam vazios e as entidades de saúde fariam laudos falsos sobre os óbitos por Covid-19. Em relação as vacinas, as narrativas negacionistas mais comuns relacionam a origem das vacinas à sua eficácia, o controle biológico da população por meio de microchips implantados através da vacinação, ou ainda a estória de que as vacinas são responsáveis pelo surgimento de novas variantes.

O processo de produção da ignorância não é aleatório, ele é fabricado propositalmente, é uma construção articulada por pessoas que possuem informações e meios sofisticados de produzir conteúdo e influenciar grupos enormes de pessoas, para ocultar interesses políticos-ideológicos de controle e manutenção de poder. Uma das consequências perversas desse processo de produção da ignorância é a intensificação de uma política de naturalização de morte e a banalização da vida, voltada especialmente para grupos mais vulneráveis, não por acaso os mais atingidos proporcionalmente pela pandemia.

Esse fenômeno de produção intencional e articulada da desinformação, associado ao negacionismo científico como políticas públicas, quando relacionado à política de naturalização de morte e a banalização da vida promovida pelo governo federal, é um exemplo daquilo que muitos estudiosos chamam de tanatopolítica: economia e governo da morte do Outro. É isso que temos hoje no Brasil: um governo da morte do Outro!

O imaginário, o ser e o narrar

Por Herasmo Braga

 

No imaginário moderno, há inúmeras formulações equivocadas que as tomamos sem muita análise e até as concebemos como verdades. Podemos destacar a questão da individualidade, da autossuficiência, e que tudo só depende de nós. Ideias que são levadas al fin y al cabo sem muitas dificuldades e constituem motes discursivos de infindas produções de autoajuda ou de narrativas ficcionais frágeis. No entanto, se só crer nestas fantasias não fossem suficientes, as consequências destas tornam a vida social cada vez mais árdua com muitas razões e poucos argumentos.

José Ortega y Gasset em Meditações do Quixote teve uma das suas frases tornada célebre: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo, não me salvo eu; Benefac loco illi quo natus es”. Diante deste pensamento, sem sobressaltos, podemos perceber o tom realista e de possibilidades em relação a qualquer ação, seja ela no campo externo do contexto social, cultural, histórico, ou mesmo no âmbito da subjetividade. Todavia, todas as ações partem de um único ponto e, de certa forma, retomam a ele mesmo: o próprio sujeito. Com essa ideia, não queremos deturpar o que nós colocamos logo no início contra, mas ratificar o equívoco da individualidade, da autossuficiência, pois, ao perceber que qualquer transformação à qual estamos limitados, precisando da minha atitude, ela só terá efeito se for pensada na coletividade e realizada com o auxílio de outrem.

Diante destas observações iniciais, iremos identificar que o erro na condução de nossos atos e pensamentos está vinculado às interpretações que fazemos, pois, muitas vezes, não são condizentes com os sentidos expressos. Para ilustrarmos esta assertiva, tomemos a própria ideia de realidade. Reconhecemos que toda e qualquer tentativa de definição, seja ela de ordem filosófica, social, histórica, entre outras, estará incompleta e sujeita a questionamentos. Para não ficarmos à mercê de inúmeras propostas, sugerimos a formulada pelo teatrólogo espanhol José Sanchis Sinisterra que, em Da Literatura ao Palco diz-nos: “É fundamental não esquecer que o que chamamos de realidade é uma imagem construída culturalmente, socialmente […] A noção de realidade, portanto, também é relativa e variável”. Aproximemos essas ideias de outra de Ortega y Gasset, quando nos enuncia: “Todo labor de cultura é uma interpretação – esclarecimento, explicação ou exegese – da vida”. Dessarte, ao entender por realidade, na expressividade dos dois pensadores, teremos que a vida é algo construído de maneira relativa e variável, mas a nossa interpretação não nos dará apenas a compreensão dela, mas até mesmo sentido, pois entender sem sentir é apenas informar-se, situar-se, e nisso nada irá compor o ser.

Em outro momento da sua obra, Gasset irá nos esclarecer: “Do mesmo modo como há um ver que é um olhar, há um ler que é um intelligere ou ler por dentro, um ler pensativo. Só diante deste último é que se apresenta o sentido profundo do Quixote”, e exemplificando este pensamento, tomemos essa passagem da obra de Cervantes mediante o diálogo do nosso cavaleiro com o seu escudeiro: “– Para que vejas, Sancho, o bem que em si encerra a andante cavalaria e quão a pique estão os que em qualquer ministério dela se exercitam de virem logo a ser honrados e estimados pelo mundo, quero que aqui ao meu lado e na companhia desta boa gente te sentes, e que sejas uma mesma coisa comigo, que sou teu amo e natural senhor; que comas do meu prato e bebas donde eu beber, pois da cavalaria andante se pode dizer o mesmo que do amor se diz: que todas as coisas iguala”. Sentimento ético por parte do cavaleiro de triste figura ratifica a ideia de Ortega y Gasset, quando feita a interpretação convergente ao sentido sugerido faz o sujeito ressignificar o seu olhar.

Desse modo, quando o homem é consciente de ser constituído por narrativas e, consequentemente, interpretativo, irá atentar-se que nesta relação não cabe nenhuma individualidade, autossuficiência ou apenas da vontade própria, pois desenvolvemos narrativas com outros personagens, participamos de outras histórias, e somos recepcionados por terceiros próximos ou distantes, presentes ou futuros.

A vida e as ideias

Por Herasmo Braga

 

Comum ouvirmos ou lermos sobre desejos e sonhos de inúmeras pessoas de se tornarem escritores. Não importa a idade, condições, experiências. A vontade de ser escritor é o que impera.

Excêntrico como, neste processo, não há indícios de intentos relacionados em se tornar um leitor. Alguns podem acreditar que, ao se manifestar ser escritor, se subentende ter sido antes leitor. Leitor de grandes obras e de grandes ideias. Todavia, na ânsia de ser um, no caso, escritor, desconsidera-se ser antes o outro, efetivamente. Os motivos levados para tal desarmonia são diversos e conhecidos, tais como vaidade de se diferenciar do comum, ser celebrado, destacado e por aí vai.

Não há grandes narradores porque não há grandes leitores de narrativas.- Herasmo Braga

Em um dos textos mais conhecidos de Walter Benjamin, O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, a figura do narrador é problematizada. Diz-nos em um dos trechos: “São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”. Associamos a esta ideia a outra condição por nós mencionada: não há grandes narradores porque não há grandes leitores de narrativas.

Em outra passagem, Benjamim acrescenta: “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”. É esse o efeito provocado pelas grandes narrativas em seus leitores: a troca de relevantes experiências. Todavia, para ocorrer esta vivência/experiência, a condição básica é lançar-se na factual realização da leitura constante das grandes narrativas. Sem pressa para o término da leitura ou mesmo buscar quantificar obras lidas.

Lucáks, no livro A teoria do romance, ao atribuir elogio ao texto épico, evidencia uma das maiores realizações, que consiste: “Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesmo em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá de buscar-se. Essa é a era da epopeia”. Assim são nos grandes feitos, nas grandes narrativas dos grandes autores, que são dirigidas para os grandes leitores das grandes narrativas, com o intuito de, no primeiro momento, termos a perda de nós em que, posteriormente, irá significar o ganho ao nos reencontrarmos em razão das novas significações conquistadas.

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Crônicas livros

Por Herasmo Braga

 

Há frases que marcam e levamos para a vida toda dentro de nós. Há livros que também nos modificam e nos levam a outros caminhos nas nossas vidas. Unir livros e vida, modificações e caminhos, são fontes ricas de aprendizagens que reconhecemos, mas pouco efetivamos.

No final de cada leitura há a satisfação pela aprendizagem, como também, as reflexões advindas das experiências nela narradas e por nós sentidas. Nos livros, os trechos marcantes nos orientam sobre a interpretação da obra, como também expandem nossas ideias e percepção sobre o mundo. Como não lembrar no trecho do romance de João Anzanello Carrascoza, Aos 7 e aos 40, em que a mãe ensinava o filho menor a ler, enquanto o mais velho zoava porque o irmão ainda estava passando pelo processo de aprendizagem. Então, a mãe volta-se para o mais novo e diz: “Não se preocupe, meu filho, hoje você aprende a ler as palavras, amanhã estará a ler as pessoas”. Isso é algo que a boa leitura nos proporciona: ler para não fazer julgamento das pessoas, ler sem doutrinação, ler para expandir-se, ler para contemplar, ler para ver. Ler para viver!

Em outra leitura como Ulisses, de James Joyce, imergimos no dia 16 de junho nas vidas de Leopold Bloom, Stephen Dedalus e da senhora Molly Bloom. Leitura pretensiosa, extensa. Obra de muitos comentários e raros leitores. Ao final do romance, nos deparamos com frase cintilante de Molly Bloom: “Sim, eu digo que sim”, isso nos revela a satisfação não só de reconhecer a grandeza da obra, mas de como um único dia nosso é extenso, complexo, simultâneo e de uma infinitude de coisas que apenas os nossos olhares automáticos nos privam de perceber o sem-fim de sucessões das coisas com os seus entrelaçamentos, contradições aparentes e harmonizações formativas.

Assim são as ideias a circular pelas linhas dos livros e da vida, advindas de realizações estéticas apresentadas pela profundidade do olhar de quem, através dos livros, vivencia efetivamente o mundo.

… ser um intelectual brasileiro?

Por Estevan de Negreiros Ketzer

 

Quando pensamos sobre o que pensamos articulamos a possibilidade de pensar, no infinitivo, o pensado, substantivo. Com isto estamos dando algum lastro para que não haja somente um conceito, mas sim exigimos um esforço ou trabalho sobre o que já está articulado, porém, não conhecido pela experiência. Isto quer dizer, já possui lugar, portanto pode ser encontrado tanto na história das ideias como em uma rede neural entre dendritos e axônios. Este paradigma também me conduz a crer que certos pressupostos lógicos também estejam articulados nesta atividade. Ledo engano.

Quando tratamos de educação em um país em que 29% de sua população é composta por analfabetos funcionais, segundo o IBGE, totalizando algo em torno de 38 milhões de pessoas. Ao realizarmos o exame PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), obtivemos em 2018 o número 59º lugar entre 79º países. Esse número não seria tão ruim não fosse o fato de investirmos 5,7% do PIB. Um investimento muito alto. Podemos perguntar tranquilamente por que ainda não temos uma série de ganhadores do Prêmio Nobel. Não temos e não teremos as condições para ter um, pelo menos não um com sua formação integral no Brasil. Pelo simples fato de que investimos muito mal esse dinheiro, muito pior, investimos muito mal no básico, e temos dificuldade de ajudar nossas crianças a lerem. Ler é decodificar um código, letra por letra em seu fo-ne-ma, articulando sons com a boca, ativando regiões do cérebro responsáveis pela linguagem, como o lobo temporal (som) e córtex frontal inferior (avaliação da informação). Esta região é completamente diferente de região que gera imagens em nosso cérebro, como vemos na parte posterior do córtex pré-frontal. A linguagem com o tempo também é algo que se desenvolve, ela percorre nossa capacidade afetiva e cognitiva, nos torna seres cada vez mais complexos e também nos ajuda a preparar as diferentes dimensões da realidade que nos cerca.

Então trazemos a pergunta: o que é ser um intelectual no Brasil? Quem de nós é capaz de tornar a linguagem complexa a partir de uma base educacional simples? Sem a base educacional simplificada na estrutura fo-ne-ma, não temos como adquirir um significado complexo da linguagem. Nas palavras de José Monir Nasser: “O que chamamos de educação é na verdade ensino.” Transformamos a ideia grega de Paideia, amplitude da realização de nossas virtudes, em uma fábrica de diplomas, numa espécie de bom mocismo e tapinha nas costas que vem tornando-se paulatinamente sinônimo de incompetência em todas as áreas, tanto práticas quanto teóricas. Tão pouco fomos ensinados a discutir com argumentos sólidos sobre um determinado ponto de vista. Nossa educação se massificou para que concordássemos solenemente em entender sem o necessário empecilho das dúvidas. E neste ponto, justamente pela dúvida, é que nasce a curiosidade pelo saber.

Nosso sistema simplificado, burocratizado, simplesmente transformou os estudantes em profissionais práticos ou profissionais teóricos. O temor reside em esquecermos que ambos lidam a favor da sociedade na luta por melhorias na qualidade de vida de todos os brasileiros. Temor de estarem ambos alienados dessa função primordial, seja aqueles que trabalham para o Estado ou os profissionais autônomos. Em ambos os registros tanto a inteligência quanto a efetividade, são necessários. E aí podemos questionar a qualidade que estes profissionais têm ao avaliarem a sociedade e darem justificativas para suas decisões. Aqui pesa a ideologia muito mais do que a consistência de técnicas ou métodos para construir a partir de um dado uma informação. Vemos esta dissolução com a perda da verdade na relação entre professor e aluno, por exemplo.

Avançamos então um pouco além do ensino fundamental e médio para encontrar o professor diante do ensino superior, aquele que é o mais altamente qualificado para o cargo, pois ensina e prepara futuros profissionais. Quem é esta pessoa? Que espaço ele ocupa na mentalidade brasileira? O que este profissional produz? E só por estas breves questões encontramos profundas diferenças se o compararmos aos que não são acadêmicos. Parece haver um “destaque” que lhes outorga não o direito, mas sim o dever de um saber. E com este questionamento vemos a tamanha quantidade de artigos, livros e demais produtos desenvolvidos para agradar satisfatoriamente seus pares. Este profissional atingiu um “destaque”, certamente pelo seu mérito, mas não podemos negar que ele cumpre também uma função social muito interessante. Ele não apenas produz muito como, em ciências humanas, adquire um estatuto de autoridade sobre o conhecimento, um lugar privilegiado entre os outros profissionais que não estão ali, pois avaliam teses, escrevem pareceres, dão menos aulas do que um professor de nível básico. Estamos diante de uma figura que aparece como parte dessa antena da sociedade, como Ezra Pound reconheceu bem na figura do intelectual. Não apenas isso, como muitas vezes ele é por nós assim chamado de “intelectual”, ainda que revele problemas de educação básica profundamente enraizados na sua formação primordial. Esses problemas estão lá, em estado de sono, mas quando se levantam parecem muito fatigados, no melhor exemplo de Nietzsche, apresentam a perturbação da virtude. O tempo é mal aproveitado e não poucas vezes nascem produtos teratológicos que nem mesmo uma formação superior é capaz de desenvolver. E quem traz a verdade para qual espécie de público? Estou agora me referindo a figura do jornalista ou aquele que deveria assim sair da sua opinião e mergulhar no campo da argumentação diante dos fatos. O jornalista ao entrar no mesmo sistema que o professor recebe a mesma alcunha de antena social, tradutor dos anseios ou Robin Hood dos sem voz em nosso país. Sua figura pesa não apenas na fabulação de uma justiça maior do que o STF, mas torna-se capaz de mobilizar as massas ignorantes em favor de um realismo utópico, preparando eleitores de vinte anos que estão prontos à militância das minorias. Uma realidade mais real que a realidade? Talvez esta se torne a assinatura deste comunicador. E não menor é o tormento de quem precisa estar por dentro das notícias fresquinhas do dia, com ou sem Covid-19, com ou sem fakenews. Esse mal estar já nos atravessa desde a entrada dos militares no poder, quando a educação se massificara mais ainda com a obrigatoriedade do ensino técnico, durante a década de 1970 e a precariedade da educação básica e média. Isso só torna a pergunta mais inquietante: quem ou para o que estamos formando? Qual é o sistema que opera em silêncio ainda que seja destinado tanto em termos financeiros à educação, mas tão pouco da qualificação de toda a sociedade para esse dinheiro? Qual é o real sentido de pensar em uma terra devastada que não abandona sua dimensão outrora colonial?

E aqui todos nós somos um: um voto pelo lugar de fala que não seja apenas de minorias, tais como índios, transgêneros, negros, miseráveis, loucos, ou deficientes congênitos de todas as espécies. Entretanto, eis aqui um voto pela dignidade expressando assim o desejo iminente pela cidadania cada vez mais esquecida. Não será importante ao intelectual ser cidadão brasileiro e participar do mesmo desconforto consigo antes do que com a sociedade? Ali onde o constrangimento sofre sem resposta ou deixamos as massas nos afetarem…