Trabalhos no Subsolo

por Manoel Ricardo de Lima

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Leonardo Marona, “potrero”

Como, ainda, de alguma maneira, deixar uma conversa existindo sem cortes, sem linha reta, sem edições violadoras entre o que se pergunta e o que se diz ou se imagina dizer? Quando se pode imaginar a literatura como um troço, um cão, uma “faca só lâmina”, um pensamento que não pode ser pensado ainda, sem os arremedos e truques enfadonhos das mesmas coisas que vêm como uma alienação do mundo? Diz Giovanbattista Tusa que “delimitar o fim, dar a ele um significado determinado como aniquilação, dissolução, liquidação – leva à alienação que é experienciada como uma ausência de significação”, ou seja, quando a literatura é uma falta de fundo, rasa e rasteira, sem mundus, sem algum immundus, mas apenas a condição privada e de privação do mundo, uma acosmia, atrofia de tudo o que somos como projeção e partilha radical, logo, incondicional. Estamos diante de uma ideia autocentrada, a todos os lados, de que o “contemporâneo” é, apenas, conhecimento especializado e pasmado, ou seja, que não há nele nenhum pensamento expandido e forte como tomada de posição para uma memória do futuro que se constitua como emergência e exigência: “a emergência finita de um infinito atual”, quando atual é aquilo que no instante em que atua, promete.

 

SÉRIE “TRABALHOS NO SUBSOLO: ENTREVISTA”

O jogo começa com Leonardo Marona [1982, Porto Alegre], livreiro, morador do Rio de Janeiro há muitos anos, escritor “potrero”, com alguns livros publicados entre o poema corajoso e veloz, como o “Herói de Atari” [Garupa, 2017] e “Comunista FDP” [Garupa/Kzal, 2021], e a prosa insólita de romances, como “DrKrauss” [Oito e meio, 2017] e “Não vale morrer” [Macondo, 2021].

Leonardo Marona: livreiro, morador do Rio de Janeiro, escritor “potrero”.

Manoel Ricardo de Lima: Tem uma dimensão muito bonita no futebol argentino que é a ideia do “fúlbo”, que seria uma espécie de futebol praticado nos campos de lama e merda, onde pastam cavalos, pelos bairros muito pobres. Os que o praticam e vêm desse futebol, caso de Diego Maradona, por exemplo, são chamados de “potreros”, porque estão lançados à vida até o impossível dela. Todas as vezes em que leio ou releio algo de seus livros essa imagem vem, com força: uma literatura de “potrero”. Quais linhas de força imagina para o que escreve?

Leonardo Marona: Essa pergunta me fez pensar numa piada que costumo contar às pessoas, geralmente clientes da livraria, conhecidos ou completos estranhos que dão corda, na qual eu digo que, num tempo longínquo, medieval, na Sicília, a minha família era a mesma que a família de Maradona. Perceba (eu digo à pessoa) que entre nossos nomes existe apenas a diferença de duas letras (ad), que se perderam ao longo dos séculos, numa cisão provavelmente de vendeta, para gerar os Marona. Como se os Marona fossem pessoas que brigaram (na agressividade são uma família só) com os Maradona, tipo PT e PSOL, ou mesmo como judeus e muçulmanos no Oriente Médio, naquela confusão sem saída em que a origem, como no caso dos atritos de morte, é a mesma, ainda que longínqua, portanto se trata de um ódio de origem. Como nos romances do Dostoievski nos quais o ódio mútuo remonta a um amor comum.

Meu pai foi muito pobre – outra coincidência com relação ao escritor russo: meu pai tem dois irmãos mais novos, que praticamente precisou criar enquanto meus avós lutavam por comida, numa pirâmide karamazoviana em que ele é Dimitri, o selvagem – como foi Maradona desde criança. A miséria, ele me diz, não é totalmente ela uma coisa material da qual podemos nos ver livres ficando ricos. É algo que se entranha na alma coletiva das famílias, que deforma o sangue, passando o horror às gerações seguintes. Então eu passei fome por tabela, por mais que fosse uma criança obesa, alimentada com exagero. Hoje vejo no que essa fome imaterial, esse desespero de morrer subitamente, causa em alguém que tem um pai como o meu, jovem viúvo ambicioso. No meu caso, de um lado, tornou-se a fuga da literatura, que é a mais bela negação do mundo em sua materialidade que eu conheço. Por outro, por mais que eu tenha sido uma criança de classe média, primeiro baixa, depois alta, até me tornar um adolescente com um pai rico, era ao mesmo tempo órfão de mãe, algo que, quando se é criança, tem a gravidade de uma deformação ou doença de contágio. Então eu delirei por toda a minha existência infanto-juvenil que, sem mãe, acabaria por me tornar um mendigo, mais cedo ou mais tarde, porque meu pai arranjaria uma nova vida e me deixaria só. E até hoje observo com profundo interesse as pessoas que vivem na rua. Na maior parte das vezes, inclusive, como acontece com os pedintes na porta da livraria, nos identificamos e acabamos próximos. Talvez esse detalhe mórbido da minha psique, também ele um tanto russo, mas no fundo muito comum entre escritores, a ideia de que de uma hora para a outra você se verá completamente abandonado a si mesmo, me transformou num adulto pobre (classe C, como me disse Rita outro dia) e, sobretudo, num escritor.

A miséria, meu pai me diz, não é totalmente ela uma coisa material da qual podemos nos ver livres ficando ricos. É algo que se entranha na alma coletiva das famílias.

MRL: Há uma seriação impressionante entre seus livros de poemas e os que aparecem também em prosa. Rápido, parece haver um corte nas imagens que os compõem, talvez até em relação também com uma dromologia dos textos. Como se você escrevesse novelas em alta velocidade, feito Dino Campana, e seus poemas incorporassem uma lentidão esforçada. O que pode dizer sobre essas temporalidades aparentemente díspares de seus textos, de seus livros?

LM: Você usou a palavra “dromologia”. Fui ver no dicionário. É uma coisa que me assusta, mesmo eu sendo aquariano, como diz a Rita, porque, ao contrário de Paul Virilio, não consigo analisar intelectualmente esse estado de velocidade que vai deixando marcas virtuais ao passo que parecem de alguma forma apagar a vida física, a vida material, o toque, a falha humana comum a todos. Sou um doente da velocidade, é o que me parece. Escrevi meus livros muito rápido, falo muito rápido, tenho a tendência a estar sempre me mexendo, ansioso por algo ou mesmo ansioso por sabe-se lá o quê. Mas é pelo medo que tomou meu corpo, de uma certa forma, por não conseguir acompanhar a vida dentro dela e, por isso, não entender o que se passa. Isso me leva a cada decênio a estados de depressão profunda, como um neandertal que toma consciência da sua extinção entre humanos. Em termos oníricos, é como se eu sentisse pavor de ser engolido por uma conexão enorme de comunicação virtual.

Ao contrário de Paul Virilio, não consigo analisar intelectualmente esse estado de velocidade que vai deixando marcas virtuais ao passo que parecem de alguma forma apagar a vida física, material, o toque, a falha humana comum a todos.

Literariamente falando, essa doença da literatura me levou a ter um sonho, uma ambição, creio, desmedida, mas muito real em mim, que seria criar um universo no decorrer da escrita dos meus livros, mais amplo a cada livro, seja de prosa ou poesia, como fizeram Faulkner, Carson McCullers, John dos Passos, John Fante e, mais por aqui, em certa medida, Roberto Bolaño. Os livros comporiam, um a um, essa espécie de vilarejo afetivo e seriam, ao mesmo tempo, um marcador da própria vida (muito úteis, aliás, se constantes, no caso de eu desenvolver, como tantos escritores constantes, um quadro de Alzheimer ou mesmo demência precoce), com suas intensidades e picos de depressão, em suma, algo que se ampliasse tornando-se um corpo novo para substituir meu próprio corpo carnal e perecível. E que teria sua porção de paixão pela vida, que é fruto de toda literatura verdadeira, e não me refiro à que faço, é claro, mas da que eu gostaria de fazer, pois as duas ainda são muito distintas.

Isso quer dizer que não tenho ainda a minha Vila Marona. Quando muito, adquiri um pequeno terreno baldio, onde crianças desoladas jogam com bolas murchas na lama, ou em terra muito seca, ruim para o plantio. Mas que eu vou escavando, com a ideia de tentar fazer isso (sabendo-me insuficiente, porque é algo interminável) até a morte, com essa promessa interior que é, a meu ver, magnânima, difícil de cumprir (muitas vezes penso que é mais fácil parar com tudo) e às vezes tento empreendê-la com tudo que tenho, que é sempre pouco, ou com tudo que me restou, de onde algo acaba por poder nascer, como a flor nauseada de Drummond, a flor que nasce no cimento, aquela quase imperceptível, que permanece.

Meus livros comporiam uma espécie de vilarejo afetivo, que teria sua porção de paixão pela vida, fruto de toda literatura verdadeira, e não me refiro à que faço, mas a que eu gostaria de fazer, pois as duas ainda são muito distintas.

Como escritor, é sempre assim que me sinto. E ao mesmo tempo tenho vaga na minha cabeça uma espécie de Vila Marona onde meu inconsciente teria, ainda que por breves instantes, se libertado finalmente – o que, de fato, às vezes, acontece enquanto a escrita flui prazerosamente, como transe, hipnose ou êxtase de comunhão, tornando a pessoa que escreve rapidamente viciada no seu efeito de absoluta fluidez e bem-querer – daquilo que nos mata porque é preciso estar quase todas as horas do dia diante do horror absoluto em todas as áreas da vida. Menos, talvez, enquanto se escreve, enquanto o fio de prata encontra-se na nossa mão, até que ele escape outra vez. Por isso tenho tanto receio dos escritores convictos, os ditos profissionais do ramo.

É, quem sabe, querer demais: uma Vila Marona. Mas, se você pensar bem, no meu último romance (Não Vale Morrer – Edições Macondo, 2021) uso personagens que voltarão, por outro prisma, a surgir no meu novo romance, o Bom Massacre, que sai até a metade do ano que vem pela Telaranha, de Curitiba. E existem poetas em abundância nos romances. Mesmo quando não são claramente poetas, como o protagonista do Dr. Krauss, que parece não ser uma pessoa de letras, nessa novela doppelgänger de que gosto muito porque foi escrita como se escreve um poema. Então acaba não sendo preciso dizer que aquele que se move e erra é um poeta. Por mais que não se escreva nada, todo mundo sabe que poeta é um estado específico de existência, mais do que um poema que se escreve. A poesia, diferentemente da prosa, mas às vezes em comum a ela, é muito mais uma espécie de enfermidade do que uma forma linguística de se expressar. É o tratamento dela exclusivamente como linguagem que a torna elitista, como tem acontecido desde que sabemos.

Acaba não sendo preciso dizer que aquele que se move e erra é um poeta. Por mais que não se escreva nada, todo mundo sabe que poeta é um estado específico de existência, mais do que um poema que se escreve.

O poema, no fim das contas, é produto da cloaca gerada pela existência física e pelo modo de agir poético. O agir na vida. Por isso é ridículo que existam poetas milionários. Por isso é patético que uma poeta ou um poeta se casem com uma pessoa influente para obter dinheiro e fama. Daí, talvez, a sua raiva diante do universo oficial da poesia, que parece um clube de equitação que às vezes convida um ou outro cavalo selvagem no fim de semana, em torno do qual reúnem-se os associados para apreciar seus pinotes. Hoje eu acho que as pessoas usam a palavra poesia como uma senha de entrada num mundo de privilégios e hierarquias, num mercado com gôndolas, mais baixas ou mais altas, onde se expõe a poesia do nosso tempo.

Eu acho triste participar disso. Mas infelizmente estou ali, na gôndola baixa, das promoções ou alimentos às vésperas do vencimento. Às vezes eu penso que na minha prosa há mais poesia que na minha poesia, onde há uma prosa que, quando funciona, funciona como respirar ar puro fora da fumaça geral. Talvez eu me refugie melhor do mundo com a prosa. A poesia é a máquina do mundo, a prosa, o seu substituto impossível. Talvez seja também uma espécie de código Mayday, talvez um pedido desesperado por alguma límpida cumplicidade, um contato amoroso e úmido com os neurotransmissores de alguém desconhecido distante das convicções, através de uma espontânea e profunda, portanto muito rara, conexão humana. É isso que espero da poesia, mas jamais do romance. Do romance eu espero que flua com a rapidez de um poema certeiro. Os poemas eu preciso que se pareçam com algo que eu de forma alguma poderia ter escrito. Preciso dessa crueldade, dessa traição, para gostar deles.

As pessoas usam a palavra poesia como uma senha de entrada num mundo de privilégios e hierarquias, num mercado com gôndolas, mais baixas ou mais altas, onde se expõe a poesia do nosso tempo. Eu acho triste participar disso. Mas infelizmente estou ali, na gôndola baixa, das promoções ou alimentos às vésperas do vencimento.

Talvez por isso eu tenha escrito tantos livros de poemas e poucos romances (agora mais um, no qual estou afundado até o nariz em lama potrera). Porque, no fundo, e ainda que não tenha, como você bem sabe, conseguido até hoje construir minha Vila, não desisti ainda de tentar gostar da tentativa impossível de fechar os olhos e tê-la comigo, contra a realidade opaca dos dias, para talvez me sentir autorizado a gostar de mim mesmo e do que passa por mim. Talvez seja isso. Escrevem-se os poemas para que possamos tentar gostar de nós mesmos como seres humanos e do que passa por nossa pobre existência humana, mergulhada, no fim das contas, no lago infinito de uma interrogação total. Por isso não acredito em poetas milionários, visionários, autoritários, doutrinários, ou poetas que se apaixonam por milionários. Ou poetas premiados. Gostaria do dinheiro, não vou mentir, e provavelmente apenas guardaria debaixo da cama, porque sou canguinha, mas, no fundo, sentiria um gosto amargo, de vitória vã, se me fosse dado um prêmio. Ser amado massivamente neste mundo tornou-se algo de que deveríamos nos envergonhar, eis o difícil paradoxo da corrida pela vida atualmente. O mundo está tão depauperado em nós mesmos que nos abre um enorme privilégio, apesar de duríssimo de suportar: num mundo terrível como o nosso, num mundo aparentemente e anunciadamente sem saída, acaba sendo uma vitória amarga ser um vencedor. Talvez esse sentimento, que no fundo é de uma derrota à priori, um dia, liberte a poesia das gôndolas do que se pode comprar, para que atue como é seu destino de moeda inalcançável, essência do mínimo comum. PS: Esse Dino Campana era um total lunático, certo?

MRL: A maioria da literatura brasileira que circula em larga escala comercial é branca e oriunda de afazeres de bacharel, logo termina por cumprir também uma falsa erudição desperdiçada, principalmente entre “jovens” frequentadores do “google” que envelhecem rápido. O seu trabalho, numa contramão saliente, se vincula a um cotidiano operário, o de livreiro, numa grande rede de livrarias do sudeste do país. Ao mesmo tempo, você é bilíngue, tem uma formação leitora invejável, rara e incomum, como prática de uma pulsão encantadora nos seus livros. Como persegue os dias nessa perspectiva do frescor, ou seja, deixar seu trabalho, seu texto, sempre o mais perto possível do risco de uma juventude?

LM: Diante de uma literatura local que se torna cada vez mais enclausurada por pautas que perdem a força conforme geram enormes lucros a grandes conglomerados multinacionais, as pessoas que escrevem parecem sedentas por encontrar um lugar confortável e, mais importante, louvável na defesa de uma moralidade de presbitério. Quase todo mundo, jovem ou não, escreve como se soubesse alguma coisa, e não como se procurasse. E acho que a literatura só vale a pena quando ela não estaciona num lugar tranquilo de conhecimento de causa, mas quando mergulha na pessoa que a produz, como o abutre naquele continho maravilhoso do Kafka, que começa comendo os pés da vítima para, depois, atravessá-la pelas entranhas. A juventude então se torna, no sentido do não saber, do tatear, do descobrir sem querer, da travessia do nada ao nada, que é o que as crianças fazem muito bem – assim como os grandes livros – e depois o adulto perde a capacidade de fazer sem ser, em algum nível, patético, até que se torna, para cada um que consegue estacionar numa estação que traz seu nome, uma mentira organizada em busca da excelência.

Quase todo mundo, jovem ou não, escreve como se soubesse alguma coisa, e não como se procurasse. E acho que a literatura só vale a pena quando ela não estaciona num lugar tranquilo de conhecimento de causa.

Refiro-me aqui, é claro, à juventude no sentido de surpresa, frescor, de ritmo alucinado, juventude como loucura autorizada de alguém que, ferozmente, tenta captar algo e falha, e isso não está relacionado com a idade cronológica. Falo aqui de uma velocidade de pensamento contraditório exposta como choque elétrico num pedaço de carne que se move de um lado para outro em busca de algo que seja verdadeiro no mundo onde vive. Juventude porque intensa, ingrata, incontrolável, incompleta, em duas palavras: divinamente antiprofissional. Algo que, no seu decorrer, não tem um objetivo claro, mas ganha e perde objetivos que trocam de lugar e cujos conteúdos se permutam. Essa variação das peças, que às vezes beira o frenesi, atribui aos agentes possibilidades infinitas de ação, sempre rumo adiante acotovelando-se para desesperadamente provar algo inviável com o corpo inteiro através da palavra escrita. Penso aqui mais na prosa, suponho, porque as peças são outras e, na poesia, a juventude, em geral, a descontração descompromissada, quando não é muito bem-feita – como em Leminski, Corso ou em Bob Brown, para dar três exemplos – torna-se preguiçosa e vulgar, soando mais como um pedido de socorro do que uma injeção de vida, o que atrai uma constrangedora vontade de, mesmo envelhecido, distante do ápice, viver para sempre como alguém que acabou de sentir seu coração palpitar pela primeira vez. Fica cafona a juventude na poesia, em geral, a não ser que se trate realmente de uma criança endiabrada, como Rimbaud ou Álvares de Azevedo, que eram dois delinquentes de fato e escreviam como tais.

Mas, voltando à prosa, hoje em dia as coisas estão caretas ao ponto de os prodígios literários comportarem-se como pequenos adultos, ou adultos anões, apresentando uma literatura grisalha, de estudo e método, uma literatura de efeito compreendido, e não uma literatura do desbravamento, que é para mim a literatura mais longeva. Nesse sentido, a característica essencial da grande literatura é a juventude. Afinal, se lemos a literatura de um Bataille, um Roberto Arlt, um Krasznahorkai, uma Aglaja Veteranyi, uma Silvina Ocampo, ou essa maravilha que descobri recentemente, pela editora 100/cabeças, de SP: se você lê uma Unica Zürn, um Gombrovicz, um Walser, um Campos de Carvalho, até um Guimarães Rosa, uma Márcia Denser ou – de cabo a rabo – um certo Cesar Aira, vai pensar num primeiro momento que aqueles textos foram escritos por pessoas muito desequilibradas e, ao mesmo tempo, jovens, porque são todos textos escritos com a seriedade e o automatismo selvagem típicos dos loucos, ou das crianças. Mas hoje a literatura tem estado muito adulta, no mau sentido: uma literatura que tosse sociologia, escarra pautas humanistas e arrota caviar, como se, de um mundo à parte e totalmente exclusivo para alguns iniciados, pudesse surgir uma visão da vida e das coisas.

A literatura tem estado muito adulta, no mau sentido: uma literatura que tosse sociologia, escarra pautas humanistas e arrota caviar, como se, de um mundo à parte e exclusivo para alguns iniciados, pudesse surgir uma visão da vida e das coisas.

No meu caso mais específico, minha maior ilusão foi também minha sorte, prefiro pensar. Meu pai, como já disse, vem de uma família muito pobre e passou fome na infância, foi espancado duramente por padres e pais ignorantes. Quando se tornou um dos melhores editores jornalísticos da sua geração, teve muito dinheiro, mas talvez a sua origem tenha influenciado o fato de que, se tudo ganhou, abriu também mão de tudo, voltando por seus impulsos sempre à estaca zero. A sombra da miséria, na minha família, vem até meu pai. Comigo, sou premiado por outra miséria, que forma, talvez, minha peculiaridade como escritor: perco a mãe muito cedo, meu pai se torna viúvo aos trinta e cinco anos e, em vez de entrar em colapso, se agarra ferozmente a uma certa ambição doentia de se afastar da fome que ele conheceu, agora que éramos apenas nós dois: parentes de sangue, mas desconhecidos. Então ele progrediu muito rápido, em um ano começou a ganhar muito melhor, foi editor chefe de política, economia, cidade, até mesmo de esportes, do Jornal do Brasil e do Globo, na época do antológico Evandro Carlos de Andrade, que o levou para ser editor chefe do Jornal Nacional. Apaixonou-se (acho que aí começa uma espécie de literatura da vida um pouco anti-nabokoviana) pela segunda vez perdidamente em sua vida, por uma mulher que foi também meu primeiro amor. Isso, na verdade, na vida de um órfão de mãe, seria uma obviedade freudiana digna de Dostoiévski (outra vez ele), que não leio há tempos e que, aliás, o reacionário Nabokov detestava, em comparação a um amor afetado por Tolstoi.

Essa infância peculiar, de um romantismo setecentista, me levou ao colo dos Russos pré-revolucionários, os mesmos que, por coincidência, dariam forma, com o teatro grego clássico, à psicanálise freudiana, que foi a moldura de encaixe exato da minha infância. Talvez tenha sido essa espécie de infância que me empurrou para a escrita. Fui uma criança velha, uma criança com preocupações de vida e morte que não devem ser comuns às crianças. Meus amiguinhos, todos, dormiam melhor do eu, que mijava na cama. Foi, portanto, do desolamento completo, do terror absoluto e da total fraqueza de existir que me tornei um escritor.

Lembro da primeira vez que pronunciei as palavras a meu pai: Acho que quero ser um escritor. Foi no calçadão da praia, meu fazia uma coisa que eu sempre achei muito difícil que era andar lendo o jornal. Naquele tempo eu morava sozinho e tinha dezoito anos. Não tinha escrito nada, a não ser crônicas lisérgicas de uma página e uns contos terríveis que não terminavam nunca. Meu pai falou que a ideia de ser um escritor era como fazer uma roleta russa com as cinco balas no tambor de cinco balas. Esse foi o meu incentivo em direção à escrita. Acho que, em todos os casos mais interessantes, essa é uma decisão obtusa, uma escolha hesitante, e me refiro ao estar de frente para a coisa em branco, a coisa a ser criada, então eu rezo para que aquela criança que caiu num colo russo e foi amamentado por lobas ainda viva em algum lugar dentro de mim. Alguns sofisticados chamariam Daimon, eu chamo criança louca.

Já vão lá mais de quinze anos como livreiro. E nem mesmo podemos considerar isso uma profissão, ser livreiro, já que na minha carteira de trabalho está escrito vendedor, e eu não vendo coisa alguma. Não conheço muitos livreiros escritores.

Então fiquei adulto, com graves problemas alcoólicos, além do uso abusivo de drogas e noites acumuladas sem dormir. Tive alguns relacionamentos curtos. Cortei relações com meu pai e casei-me com uma atriz de teatro que eu já admirava de ter visto algumas peças do seu grupo, os Fodidos Privilegiados, do grande Antônio Abujamra, que o diabo o tenha em alta conta, e essa atriz tinha o dobro da minha idade e atuava numa versão bem remunerada (eu tinha apenas 25 anos de sonho de sangue de América do Sul) de Otelo, que eu havia, até hoje não sei como, traduzido com um amigo meu do colégio, que pouco depois se tornou autor daquelas novelas evangélicas da Record. Ali foi onde me iludi e ao mesmo tempo fiquei aprisionado pela ideia de que teria um caminho aberto, um caminho promissor, que começava muito bem, afinal, como começar melhor do que com Otelo de Shakespeare? Casar ainda por cima com a Emília, babá da adolescente Desdêmona, Emília que é, na verdade, a única personagem realmente revolucionária (apesar da revolucionária maldade de Iago, que hoje vemos em muitos empresários, na maioria dos patrões).

E aqui chego no meu ponto. Eu atravessei a ilusão de uma prazerosa e progressiva vida literária. Mas depois de Otelo, traduzi Longa Jornada Noite Adentro, que, para minha surpresa, era muito mais difícil de traduzir do que Otelo. Mas então eu morava na casa da Emília, trabalhei um tempo como redator de esportes no Jornal Expresso, que é a versão mais barata do Extra, que é a versão mais barata do Globo. Em comparação com meu velho, um desempenho medíocre, apesar de eu ter me divertido ao escrever sobre os jogos de futebol quando eles aconteciam. Aquilo foi divertido, infantilmente, e me deu certa agilidade na escrita. Era o que eu fazia melhor. O que me diverte é sempre o que faço melhor. Tenho dúvida se é uma farta condição para os dias de hoje. Acontece então que, como criança, vou até muito bem, mas, como adulto, agora, tenho dificuldades óbvias e que um pouco me surpreendem, mas não muito. Um texto pode vir à mente mil vezes por segundo ou nunca mais. É isso tudo que está em jogo, o desafio infantil, é preciso saber. Isso é ainda parte de uma ilusão em chama frágil, já próxima da cinza futura, que é quando me torno livreiro, porque a tradução de Eugene O’Neill havia sido paga, mas a peça não vingara, não havia mais dinheiro, o que foi o começo de um período largo de erosão. Estamos em 2008, eu ganhava, por mês, como porcentagem pela bilheteria da peça, em cartaz num grande teatro, cerca de dois mil reais, não sei quanto seria isso hoje, mas na época era mais do que eu já tinha recebido antes, ainda mais por uma coisa que já estava feita para sempre. Nessa época comecei a fumar, a usar cocaína, a escrever poemas com devoção, ainda que só para mim mesmo. Eu tinha uma impressora, era a única coisa que eu tinha quando fui viver com Emília, além de um colchonete velho de solteiro, que joguei fora porque ela tinha uma cama de casal (a primeira da minha vida).

Imprimia na impressora poemas, ia guardando um em cima do outro. Eram ruins, mas escritos com todo coração. Comecei a escrever poemas compulsivamente, porque estava sempre drogado e não tinha mais nada que fazer, a não ser desfrutar dos rendimentos avançados do meu grande trabalho intelectual. Então, com violenta sabedoria, Emília um dia juntou aqueles papéis e me obrigou a fazer deles um livro de poemas. Disse que era uma vergonha que uma trabalhadora da arte como ela, da estirpe dela, estivesse vivendo com um vagabundo inútil e que ela precisava de uma forma para me apresentar às pessoas do seu convívio, todos artistas dos mais variados gêneros. Foi ela mesmo quem foi, atuando como agente literária, até a Editora 7Letras (que Jorge não leia isso!) e cavou meu debut.

Malditamente foi meu único livro resenhado no jornal impresso, o meu pior livro de longe, lançado em 2009, um ano que, como dizia o bom e velho Fante, foi um ano ruim. Havia uma privada na capa do livro e os poemas eram todos sobre personalidades como Lou Reed, Billie Holiday, Beethoven, Maiakovski, Augusto dos Anjos, Rilke, Kerouac, Rita Hayworth, Helena Inês, Skip James, Murilo Mendes, McCullers etc. Pessoas de algo quilate, os espíritos de suas épocas, que eu amava com um fervor (voltamos a ele) juvenil.

Era talvez a única forma que eu conhecia de ser ainda uma criança que admira. Isso era bonito nesse livro. Pouco depois, sem emprego e com fracasso total com a peça de O’Neill, ainda fui pago para traduzir um David Mamet, o que em si já poderia ser considerado um grave declínio. Então as traduções minguaram. Prometi a mim memos que faria a nova tradução completa da poesia do galês Dylan Thomas, mas ainda hoje, depois de quinze anos, traduzi apenas seis poemas. Então pedi para a sobrinha do Iago (sempre na peça de Shakespeare), que trabalhava no que um dia foi o departamento de marketing da Livraria da Travessa, que ela me indicasse para um emprego na livraria. E ela me tornou um caixa-registrador.

De tanto perder dinheiro, porque estava sempre lendo ou desatento, me tornaram livreiro. Aquilo era, de todo modo, uma espécie de banho de água fria nos planos do pequeno Thomas Wolfe. E foi da decepção daquele período literário de pura aventura que veio a vontade de escrever para sempre e eu nunca mais saí dessa máquina de remoer, depois centrifugar, literatura enfim, e que se tornou essa promessa íntima que fiz a mim mesmo. Porque foi um processo lento e constante de degradação física a minha atuação, se podemos considerar assim, no chão da livraria, por oito horas diárias e um salário muito baixo, e mesmo assim seguir escrevendo nas “horas livres”.

Eu quero sempre a criança no comando. Enquanto escrevo aqui ela se mostra num estado empertigado e prolixo, como você pode comprovar. Acho isso bom, talvez seja apenas enfadonho, você depois vai me dizer ou, talvez, quem leu até aqui.

Talvez por isso tenha escrito tudo tão rápido quanto pude, para aproveitar enquanto o lobo não vinha. Mas ele veio vindo. E finalmente, no último ano ele chegou. E minha vida deu um salto sobrenatural, tornando-se uma ficção científica (material, aliás, de um romance que parei de tentar escrever, mas quero voltar, e vai se chamar Justa Causa) sobre um livreiro que é levado por um sistema econômico de trabalho pós-escravista a dar cabo de sua vida, mas vai parar noutra dimensão, como se fosse dentro da sua própria cabeça.

Estava ali também, no germe daquela ideia, a criança longínqua, apesar de toda sombra instalada, tentando ainda se amar conforme a mágica há quinze anos prometida. Mas era já uma criança violada, que foi deformada por uma vida que se tornou difícil, na velocidade do pasto comum, longe da fantasia interior, uma vida concreta demais. Que é a vida que eu levo hoje, e já vão lá mais de quinze anos como livreiro, que, se você pensar bem, é o mesmo tempo praticamente da minha primeira publicação. E nem mesmo podemos considerar isso uma profissão, ser livreiro, já que na minha carteira de trabalho está escrito vendedor, e eu não vendo coisa alguma, eu nem sei exatamente o que faço, isso é mesmo muito estranho.

Literariamente é interessante experienciar os dois lados da ilusão, ou a mesma ilusão por dois primas diferentes, opostos. Não conheço muitos livreiros escritores. Isso deve gerar um determinado tipo de abordagem, duplicada talvez, talvez ambígua, da literatura que se escreve. Porque no mais são muitas pessoas, sobretudo as bem-sucedidas, que são exatamente o que pretendiam ser, e isso torna a escrita de criação sempre um pouco mais pobre. Bovina porque sustentada por vantajosos esquemas de influência. Montagem realista da existência através de códigos que a literatura, na verdade, veio para demolir. E nos deparamos com essa incômoda sensação de estarmos diante de especialistas em determinadas pautas, e não de pessoas criadoras. Pessoas que aprovam ou desaprovam condutas, através de fábulas realistas demais para emocionar uma (lá vem ela outra vez) criança. Eu quero sempre a criança no comando. Enquanto escrevo aqui ela se mostra num estado empertigado e prolixo, como você pode comprovar. Acho isso bom, talvez seja apenas enfadonho, você depois vai me dizer ou, talvez, quem leu até aqui.

MRL: Você pratica uma espécie de expansão máxima do seu trabalho: são muitos livros em pouco tempo. Porém, muitos deles, são muito curtos e absolutamente tensos entre o que diz e a linguagem que imagina em cada um deles. Lembro de Cesar Aira, não pelos usos e temas, mas pelo procedimento de expansão e abandono de tudo em livro. Diga desse convívio com seus livros, quase todos de vida secreta, pouca tiragem, pouca reedição, mas ao mesmo tempo lançados à vida?

LM: Bastaria ler o Congresso de Literatura e, sobretudo, A Prova, que saíram recentemente no Brasil, para considerar Cesar Aira um escritor espetacular. Mas o que ele faz é também um pouco irritante e está muito distante da dificuldade absoluta que tive para fazer tudo que fiz. Acho que só a poesia, na verdade, me diverte fazer. Porque é um jogo de impulso e montagem, um jogo na direção do que não sabemos de nós, e isso diverte a criança órfã. Agora essa seriação do Aira é também um pouco irritante. Já que o torna um obcecado aluno cu de ferro de um professor que enlouqueceu. Sendo cria do Osvaldo Lamborghini, Aira é careta demais, o que transparece no seu estilo. Mas as coisas de que trata, as reviravoltas que apresenta, as ansiedades específicas de cada personagem, todos sempre sérios em suas ações estapafúrdias do início ao fim. Isso em A Prova é uma aula cabal. O delírio de Lamborghini, em Aira, se transforma no enredo de uma fábula. E isso me interessa muito. Como seria um mundo em que as crianças estão no comando. Um mundo de crianças mendigas, ou crianças paramilitares munidas de uma doce ética fraterna e violento cansaço dos esquemas adultos de poder e submissão. Cansadas da decadência maquiada dos adultos. São coisas assim que me passam na cabeça, quando penso na escrita. Sempre a criança escorraçando o adulto. Ainda que sejam personagens velhos que façam isso. Escreve-se, talvez, na direção da morte cronológica que permite a criança final.

Sobre meus livros, acho que minha única chance é não esquentar muito. Mas é uma pena, no fundo. É como deixar um filho morrer de fome, quando um livro fica esgotado. Mas tento não levar muito a sério, afinal, não estou nos esquemas de agenciamento, sou apenas um proletário que não se dobra. É preciso também ser um pouco desapegado, para além do esforço que se faz ao escrever algo. Acho que o apego a coisas feitas é um atraso imposto pelo meu processo criativo. Talvez seguir fazendo, um dia morrer fazendo, depois que juntem tudo ou joguem fora, o que for melhor no devido momento.

MRL: Pasolini, o poeta italiano que você também gosta muito, defendia o tempo inteiro a ideia de que o escritor, o artista, tem que ser público. Dizer-se, implicar-se, tomar posição, projetar e provocar pontos de insurgência. Como você lê o seu trabalho, inserido, mesmo que você não queira nem o faça para isso, num meio de tanta articulação íntima, privada, recolhida, em que a tarefa do escritor passou a ser, basicamente, refutar a coragem para, como um “deus pobre” [a imagem também é de Pasolini], tentar salvar apenas a si mesmo fazendo-se presente em todos os lugares ao mesmo tempo.

LM: Como um deus pobre, isso é bonito. Vivemos a época dos especialistas salvadores. Acho que é bom, na verdade, que seja assim. Sempre senti alívio em saber que a coisa toda é um esquema de influência e posições de classe, muito mais do que um engajamento por outra forma de vida, porque isso me dá a chance única de, ao largo desses esquemas, mas observando-os de perto (por estar o tempo todo trabalhando na livraria), realizar algo único, realmente escrever sem que seja necessário responder a demandas hipócritas de grandes conglomerados nacionais (as grandes editoras, todas o são), que usufrui da boa representação de tal ou tal autor engajado numa causa nobre para multiplicar seu patrimônio e limpar seu jogo sujo. O que percebo como leitor – e é o lado sombrio desse panorama – é como os textos vão se afunilando, até que se tornam, dentro de cada nicho (negritude, indigenismo, questões de gênero, a defesa da natureza, o fim do mundo), compartimentos de repetição visando um lugar ao sol, todos muito semelhantes e que apresentam autores de ficção como defensores da boa moral de costumes. O mundo piora a cada dia, diante dos nossos olhos, na verdade não sabemos muito bem o que fazer e fazemos um pouco, muito pouco em geral, cada um. Mas seguem escrevendo romances edificantes, como se a pessoa que escreve dissesse no subtexto: vejam, sou alguém de valor, por isso devo me destacar. E são as coisas que não são valorosas pelo nosso mundo as que mais bem compõem um texto literário, na minha visão. Aquilo que faz quem escreve se perguntar se não estaria ficando louco. Isso é boa literatura para mim. Vejo uma certa promiscuidade entre as áreas acadêmicas (ciência, antropologia, psicologia, biologia, sociologia, política) e a prática literária. É o ápice do romance de tese, da poesia de tese. Uma coisa fria, me parece, que em mim causa um efeito um pouco desesperador. São poemas e romances sobre a vida escritos em geral, como processo de uma disciplina, de uma oficina, de uma bolsa conquistada numa residência criativa num lugar distante onde a pessoa pode se concentrar com tranquilidade, ver os patinhos no lago, para escrever sobre tudo o que não é aquilo, mas que é a vida comunitária, infiel e absurda.

Vivemos a era da literatura de compartimento. Como se houvesse mil gavetas no grande armário da escrita de ficção, com pessoas proeminentes ocupando os lugares limitados por cada gaveta. Isso acaba gerando bocejos e posições confiáveis, exemplos de vida e não uma obra de ficção. Gostem de mim, as pessoas que escrevem parecem dizer, não importa se me leiam ou não. Gostem de mim e permitam que eu seja importante.

O departamento mundial de estudos literários parece ter decretado finalmente a morte do lirismo. Uns acadêmicos importantes – que aplaudem poemas ensaísticos de viagens pagas e não se arriscam, eles mesmos, a escrever poemas – disseram isso em algum lugar. Mas é certo que os líricos seguem nascendo, os poetas líricos, para o constrangimento geral. Creio que isso diminui o efeito da produção acadêmica e anula o efeito literário, como algo esquematizado para dar certo.

Você citou o Pasolini, daí eu penso: não há nada na vida pessoal dele que seja digno, nos parâmetros do mundo, de aplauso. Foi um ser de contradições do início ao fim da vida. E, quando ele escreve, bate até nos comunistas, como no caso em que defendeu o policial contra o manifestante de classe média alta que morreu na manifestação contra a polícia. Você não consegue definir um Pasolini. Ele não se permite apanhar. E não se permitir apanhar, eu penso, é mais importante para uma pessoa que escreve do que, de fato, escrever. A vida de Pasolini se apresenta como existência rugosa, sempre disruptiva, visionária e demente, de um pensamento que não encontrou um lugar no mundo e se debate dolorosamente (de onde espreme os poemas) com tudo que envolve seu mundo. E hoje as pessoas, por medo, estão todas à procura de um lugar para respirar melhor, o que é justo, mas não é muito útil à literatura de ficção. Por exemplo, se eu coloco no meu romance um protagonista proletário, não é para dizer: Vejam! Estou pela causa proletária, contra os donos do poder! Isso seria simplório. Quero mostrar como erra esse proletário especificamente diante desse entorno em que tudo em volta dele é nobre, mas dentro dele algo totalmente particular, que nada tem a ver com a luta de classes, se debate contra o apodrecimento, geralmente perdendo a luta, mas deixando atrás de si algo: a obra literária. Isso faz do meu protagonista, além de proletário, um ser único, com um poder de identificação transitório, que é bem o contrário do que procuramos, em geral, na nossa existência sem explicação.

Sendo desconhecido e publicado apenas por editoras pequenas, estou um pouco livre disso, pelo menos, quando me sento para escrever. É talvez a única vantagem. O texto acaba sendo tudo o que tenho e o que ao menos me difere do que vejo e não me serve.

Então o romance tem que levar essa personagem principal de um lugar que não existirá mais da mesma forma quando ela atingir o lugar onde, por destino, deve chegar, mas ao qual talvez não chegue, pouco se sabe sobre isso, sobretudo quem escreve não sabe de nada. E aonde se chega também não é uma definição. O romance, mais do que uma pauta edificante, revela o trajeto de um erro de coração. Por isso é tosco um romance com final feliz, apesar de que eu gostaria muito de fazê-lo. Talvez eu esteja agora tentando fazer isso, mas sei que vou errar, vou me desaviar, ele vai cair noutro lugar inesperado. Hoje vivemos a era da literatura de compartimento. Como se houvesse mil gavetas no grande armário da escrita de ficção, com pessoas proeminentes ocupando os lugares limitados por cada gaveta. Numa gaveta os defensores da natureza. Noutra os defensores da boa conduta, seja qual for. Noutra os defensores de Freud (todos os romances centrados na família, mesmo os de luta de classe). Isso acaba gerando bocejos e posições confiáveis, exemplos de vida e não uma obra de ficção. Gostem de mim, as pessoas que escrevem parecem dizer, não importa se me leiam ou não. Gostem de mim e permitam que eu seja importante.

Isso me dá um pouco de medo, porque não quero ser assim. Sendo desconhecido e publicado apenas por editoras pequenas, estou um pouco livre disso, pelo menos, quando me sento para escrever. É talvez a única vantagem de um escritor não acadêmico ou representado por um esquema de agenciamento. O texto acaba sendo tudo o que tenho e o que, mesmo que não seja escrito nos conformes do método (boas pautas em operações fáusticas), ao menos me difere do que vejo e não me serve, porque se repete num esquema industrial de produção financiado pela Vale do Rio Doce, o Itaú, com o dinheiro da Folha de São Paulo etc. E a literatura está para muito além disso, como o futebol, que você citou acima, está para muito além das cifras astronômicas que giram em torno dele. No fundo, o futebol, como a literatura, é bem mais um jogo na lama do que acordos feitos em escritórios limpos.

MRL: Diga de suas leituras, do que o move ainda em direção ao projeto de livro, do pensamento para o livro, para o seu trabalho e se imagina ainda a literatura como uma tarefa política para escrever os dias de agora numa memória do futuro, que é ontem, antes de ontem, nesse instante e, quem sabe, algum amanhã.

LM: Primeiro com relação a projeto de livro: tive um break down total alguns meses atrás. Precisei me afastar do trabalho por questões psiquiátricas, depois de dez anos, no que pude confirmar uma operação cíclica dos meus nervos. Isso me fez pensar que, até aqui, desde que comecei a publicar, fiz um livro em cima do outro, talvez porque durante todo esse tempo eu tenha pensado que não ia, eu mesmo, durar muito. Mas acabei durando até aqui, e minha cabeça me disse: vou parar você de alguma forma, você precisa parar um pouco. Então parei totalmente, comecei a praticar basquete, que jogava quando era adolescente. Aqui no Grajaú, tem uma quadra na praça em frente ao prédio onde vivemos. Mais longe um pouquinho, tem a mítica quadra da Praça 7, aonde vou assim que acabar de escrever aqui. Minha literatura, no momento, meu projeto de livro, tem sido não escrever nada (por isso, talvez, tenha jorrado com tudo aqui, com as suas perguntas me levando a lugares que não poderia ter previsto), mas comer salada de fruta pelas manhãs, com granola e mel, e algumas cestas de alguma plasticidade que, de vez em quando, consigo acertar sem que ninguém mais veja, ou quase ninguém. Meus livros todos, no fundo, são um pouco isso. Acho mesmo que é a isso que se pretendem. Uma tentativa de algo bonito que quase ninguém vai ver. Mas alguém vai, e não sei nunca quem será. E talvez assim eles sobrevivam a todo esse momentâneo frenesi de pequenas ideias, grandes negócios. Espero que o novo romance fique bonito, que me surpreenda com o tempo, de alguma forma. No mais, somos seres sedentários em ruínas, em todos os cantos do mundo. Já não há muito para onde correr. Então escrevo muito mais como ética de vida no mundo, do que com a pretensão de influir na transição do nosso colapso coletivo, que tenho tentado absorver em silêncio, às vezes em estado de choque.

Meu projeto de livro, tem sido não escrever nada. Meus livros todos, no fundo, são um pouco isso. Acho mesmo que é a isso que se pretendem. Uma tentativa de algo bonito que quase ninguém vai ver. Mas alguém vai, e não sei nunca quem será. E talvez assim eles sobrevivam a todo esse momentâneo frenesi de pequenas ideias, grandes negócios.

Sobre leituras, estou lendo finalmente Sátántangó, que de fato parece ter sido escrito por um louco, ou uma criança louca, o ser mais criativo por excelência. Li recentemente um roteiro não filmado, o último de Pasolini, que era uma resposta mais sentimental (e com final feliz – ele conseguiu!) a Saló. Mas não conseguiu filmar, morreu antes. O livro se chama Porno-Teo-Kolossal e saiu pela Editora Sobinfluência. Também do Pasolini, gentilmente ganhei um exemplar de O Cheiro da India, do Davi Pessoa, que traduziu a obra para a Editora Cultura & Barbárie. Um livro lindo, um dos poucos que, na livraria, tenho me esforçado em passar adiante. Vende muito bem em Botafogo, aliás. Também tem um chamado A Toca Iluminada, do romeno Max Blecher, que eu empurro para todo mundo que pede sugestões de prosa. Se entendi bem, saiu por um selo judaico chamado Ayllon. Alguém me disse que era um selo da Editora Hedra. É um livro de sanatório que faz da Montanha Mágica uma velhacaria. Muitos livros eu leio, mas não termino. Como, recentemente, o Eremita na Grécia, do Hölderlin (com o perdão da tradutora Marcia Schuback, que traduziu e recomendou), nesse caso porque é um livro estranhamente publicado por uma editora especializada em livros jurídicos, portanto caro demais. Acabei de ler também uma seleta dos últimos contos do Kafka, quase todos curtíssimos, uma, duas páginas, que saiu agora pela Editora Estação Liberdade, numa elegante edição bilíngue, com um lindo marcador de brinde, como é de costume da sempre elegante Estação. Como disse numa resposta acima, li uma tradução do alemão da Editora 100/cabeças da Unica Zürn, uma pesada e curta novela infanto-juvenil que, a meu ver, coloca Georges Bataille no chinelo. Chama-se Primavera Sombria, é um livro excelente. E todos de pequenas editoras, com exceção do pobre Hölderlin, que por isso talvez tenha sido deixado a terminar. Em poesia, que tenho lido muito pouco, geralmente dois livros por mês por conta do clube de poesia que organizo com a Cláudia Lamego toda última sexta do mês na livraria, li recentemente uma coletânea de poemas de Sor Juana Inés de la Cruz, editada pela, até então, para mim, desconhecida Editora Machado. Depois vi que eles haviam já feito uma obra em dois volumes de textos ambientalistas sobre o fim dos tempos. Estranhamente, fora a freira mexicana, também biografada por Octávio Paz em obra aqui publicada e esgotada pela Editora Ubu, publicaram Gertrude Stein (tradução da trapezista Julia Manacorda) e William James. Um catálogo, no mínimo, estranho. Mas os versos da irmã mexicana, ao que tudo indica lésbica, me tomaram totalmente o ritmo do pensamento. Comecei a pensar de forma métrica, contando as sílabas, como um poeta parnasiano. Depois, quando apareceram os poemas criollos, era como se eu estivesse lendo uma letra de Rap. Foi uma estranha e boa experiência. Gostei muito também do livro novo do Marcelo Ariel, que lemos também no clube. Por fim, um livro precioso, de um comunista nômade kafkiano (que considera, aliás, Kafka o maior comunista que já existiu), chamado Marcelo Tári, publicado numa parceria entre a N-1 e a brava Editora Glac, de São Paulo. O livro traz o peculiar título: Não existe revolução infeliz. E me ajudou a sobreviver aos meus piores dias, com um fiapo de esperança messiânica, que ele reintroduz via Walter Benjamin, Kafka, Kierkegaard, Foucault e Sex Pistols, além de tantas outras figuras temerosas do pensamento, numa banda de rock inusitada de fraternidade e pessimismo organizado para o tempo que vem.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

Isa Graça, Maíra Dal’Maz, Pedro Lucas Bezerra: enciclopédias mágicas

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Um trato de amor sobre os degraus de

um túmulo. Mas não é uma profanação.”

Emília Freitas, 1889

Angel Rama, crítico uruguaio [1926-1983], imagina a literatura diante de um impasse antropológico, porque uma das mais dóceis projeções intelectuais é a sub-reptícia fé no progresso, fé que leva-se a pensar que as últimas novidades são sempre as melhores coisas porque operam em confronto com algum oposto simétrico, que seria, noutro sentido, um pensamento desinteressado de qualquer verdade revelada. Assim, a escritora e intelectual argentina, María Negroni [1951- ], lendo Walter Benjamin, atenta à disposição naturalizada de uma linha evolutiva frágil e insensata, o inscreve como um fazedor de enciclopédias mágicas. Estas, por sua vez, organizadas entre micrografias do desejo e alumbramentos do inesperado, a pobreza abjeta e o luxo insolente dos dados do mundo, os fracassos e os testamentos etc. Um bom exemplo é o fascínio de Benjamin pelo circo, este espaço rodeado por um ar fabuloso, com jaulas vistosas e animais cativos que esfumaçavam esse ar.

Interessante lembrar uma proposição de Paulo Leminski quando afirmava que durante os anos 1970 o melhor da poesia brasileira estava nos encartes de discos. Era um esforço para sugerir alguma sobrevivência à arte diante do capitalismo com sua armadilha fundamental: a transformação de tudo em mercadoria.

Estamos diante de um método de trabalho com o pensamento que tem a ver com uma miniaturização das coisas do mundo, ou, ainda, do pequeno mundo das coisas. Uma beira arriscada, porque microscópica e frágil, infinitamente inapreensível; tal como poderia ser a tarefa política do poeta, quando recupera a vertigem das crianças, arqueólogos lúcidos do vínculo inaparente entre nostalgia e rancor, aventura e jogo. Para Benjamin, sabemos, o poeta é aquele que exerce um procedimento combinatório impensado, impossível, para imaginar um mundo que virá depois dele, uma memória insuficiente para algum futuro. O imprevisto opera no empenho das afinidades secretas, ou seja, pensamento desinteressado, contra o descompasso da língua que, por sua vez, opera como controle e constituição objetiva da violência para organizar o modelo civilizatório de verdades reveladas.

Estamos diante, agora, de uma ideia de “poesia atual”, “contemporânea”, que muito pouco atua e promete menos ainda, porque quase toda ela é o que Rama toma como “corpus doutrinário”. Este corpus, no caso irremovível do terceiro mundo, a América Latina, por exemplo, da qual o Brasil é um país vizinho, ainda se apoia numa concepção exaurida: uma ideia fossilizada de autor, que é invariavelmente um produto de feira, sem trocadilho, e uma produção mais fossilizada ainda para uma circulação padronizada. Daí que, muitas vezes, a argamassa dessa produção seja cafona, um disse me disse que beira a fofoca, uma renúncia do corpo, sem violação normativa, sem voz, logo sem grito e sem silêncio, condenada a ter a língua arrancada.

Isa Graça | Foto: Luana Tayze

“Nem o rumo dos pássaros / Nem o curso do mar / Nem engolir a seco / Vão me fazer acostumar”.

Interessante lembrar, como contra exemplo, uma proposição de Paulo Leminski quando afirmava que durante os anos 1970 o melhor da poesia brasileira estava nos encartes de discos. Era um esforço para sugerir alguma sobrevivência à arte diante do capitalismo com sua armadilha fundamental: a transformação de tudo em mercadoria. E é essa transformação, prossegue o Leminski, que dá a um trabalho com a arte a ilusão de ser livre. Não à toa, repare-se, o disco de Isa Graça, Corpo Celeste [2024], nascida na Baixada Fluminense e radicada em Natal, no Rio Grande do Norte, abre com uma canção chamada Vênus [Estrela D’alva], que termina sugerindo a recomposição de uma sobrevivência: “Sonhos desaparecidos no meio de nós / Cantando que não vão calar minha voz / Soberana flor regada por sóis / Explodir meu algoz”. São canções de amor, impressas sobre um tempo em que o amor resulta inútil, porque é mera palavra de ordem que despreza, convicta, a figuração de levante da presença daquilo que é, Eros.

Todo o disco de Isa Graça relembra, de pronto, o livro mais bonito com poemas de amor que foi publicado mais recentemente, O livro de Carolina [7Letras, 2019], de Carlos Augusto Lima. É a construção de uma linha tensa entre a música – numa conversa direta com algo de psicodelia, como Tame Impala, raspando algo dos Mutantes e da turma genial do Clube da Esquina –, e letras encantadas, casos de Farol, no trecho “Como sua pele ressoa o sol / O mais bonito do farol / Que guia o navio no nevoeiro / O inverno inteiro”, e Tamarilho (afrobeat), também um trecho, “Nem o rumo dos pássaros / Nem o curso do mar / Nem engolir a seco / Vão me fazer acostumar”. Os usos da repetição, muito comum numa tradição da canção brasileira, sugere jogos de armar, o puzzle impraticável e insensato do desejo entre perda e compensação, reparação e desmando, nem lá nem cá, nem torto nem de pé, nem dormindo nem muito menos acordada. A escolha do nome Gracinha, para a banda, com as presenças de Rodolfo Almeida, baixo e vocais; João Victor Lima, guitarras; Mateus Tinoco, nos samples; e Pedro Lucas Bezerra, na bateria, se juntam aos instrumentos que ela mesma toca, da guitarra ao baixo, e voz doce daquela que se sabe mulher, homossexual e preta, recompondo os sentidos da delicadeza e da violência de uma “lucha contra este deseo”, como quando canta em espanhol na linda canção Cuantame.

“As mulheres cuspindo fogo/ para o alto/ para onde Deus não olha /[…]/ rezam baixinho/ sabem fazer colares de miçangas/ jogam futebol com os meninos/ e seduzem quem tiver/ assim na distração das margens”.

Pedro Lucas Bezerra | Foto: divulgação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A figura de Pedro Lucas Bezerra na bateria da Gracinha é praticamente um espectro, no sentido mais radical da ideia, como a projeta o filósofo argentino Fabian Ludueña Romandini: “um esse objectivum, mais precisamente uma entidade de pensamento puro e, portanto, um atributo possível da natureza sobre a modalidade do pensar” e “a vida mais intensa possível”. Logo, o espectro não se vincula à metafísica, mas a materialidade do impossível. Está ali, ao fundo, chiaroscuro, ao mesmo tempo, a deliberação de uma ideia para o poema, o poeta, que publicou Trem Fantasma [Quelônio, 2021], redesenhando a cidade de Natal, onde nasceu e vive, cidade estrangeira, tal como um Nicanor Parra baterista, “o último poeta do mundo”, morto aos 103 anos, quando “de nada em nada, vamos caindo ainda um pouco”, anota Pedro no poema Para Nicanor Parra.

Dividido em 3 partes, tábuas de maré, tábuas de horário e os aterrados, o livro encena a cidade também como espectrologia, desde as epígrafes retiradas do Eclesiastes e de James Joyce, entre o que existe e o que não existe ainda, e a travessia de alguém por uma cidade em suas estâncias mais furiosas. Há muita linha de mar, de pedra, muitos cigarros, muitas solicitações urbanas comuns a todas as cidades do planeta, tanto faz se em Tóquio ou em Ponta Negra, certa eletricidade musical de um trânsito fixo e um bocado de expectação com raiva: “meus dentes habitam as carnes / cortam os plátanos / anunciam a raiva / outra vez a raiva / meus dentes não me dão medo / e a eles me volto quando amos os cães” e “as mulheres cuspindo fogo / para o alto / para onde Deus não olha / […] / rezam baixinho / sabem fazer colares de miçangas / jogam futebol com os meninos / e seduzem quem tiver / assim na distração das margens”. São traços e apontamentos que vêm também da poesia Beat, “O Brasil é o país mais deprimido da América Latina” e “Não rimarei / não nadarei no absoluto / não lerei as cartas de Newton Navarro / não olharei o Potengi sob o abismo” etc., depois e muito de Carlos Drummond de Andrade, das presenças de Roberto Bolaño ou de João Gualberto Aguiar, tudo como esperança espectral de força política num trabalho que começa expandido na deliberação do poema: “a coisa-viva que nos amarra”.

Maíra Dal’Maz | Foto: Helis Verônica

Escrever é brincar com ruínas: “nunca vivi em casa alguma / onde o reboco não caísse”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depois, Maíra Dal’Maz e seu livro Vira uma pedra o tempo [Patuá, 2024], nascida em Monte Dourado, no Pará, e que vive também em Natal. Heitor Ferraz, poeta e professor, diz que os poemas de Maíra são um redesenho de sentidos e aberturas entre o poema e a experiência com o poema. Rápido, nas primeiras páginas, se percebe que há uma construção de contaminação, virótica, entre a vida e o texto, o texto e a vida, sem hagiografia ou mistério, o poema está todo lançado ao chão da sobrevivência: quando o poema ainda é o corpo que o imagina inscrever e, ao mesmo tempo, quando o corpo se inscreve no poema como se num precipício de devoração. O poeta italiano Pier Paolo Pasolini, em texto de setembro de 1968, O medo de ser devorado, afirma que “somos ainda determinados em nosso destino pelo medo de sermos devorados” e “penso que o desespero é hoje a única reação possível à injustiça e à vulgaridade do mundo, mas só se for individual e não codificado.” Pasolini imagina que o medo de ser devorado é, numa oscilação consciente, o desejo de ser devorado. Imagem dialética de uma realidade infinitamente mais extensa do que os sistemas dominantes que a encobrem.

O livro de Maíra, dividido em 2 partes, Tempo e Pedra, é das coisas mais fortes que apareceram na poesia brasileira recente. E o é exatamente porque inscreve o desespero da confrontação do real em toda a gradação desmesurada do que um real é, impõe, projeta. Maíra devolve a língua à língua, todo terror e todo desejo que vêm até a devoração; basta ver que as marcas mais íntimas de seus poemas se ampliam e se desgastam ao demorarem num gesto para a comunidade, gesto que se aproxima de uma obscenidade que a “literatura” de agora não suporta, porque quase sempre é carola, cristã-capitalista culpada e ressentida, senão não vai pra feira financiada por empresas que matam pessoas e destroem florestas nativas o tempo todo como se não tivesse havido nada. Maíra, depois da entrada, diz no poema Escrever é brincar com ruínas: “nunca vivi em casa alguma / onde o reboco não caísse”. São apenas duas linhas e nenhum horizonte, esta linha matemática inventada para dominação, controle e poder.

A série que segue essa máxima entre escrever-brincar tem personagens geniais, porque destroçados pela religião e pela fome: uma avó e os tempos famintos, um pai ensacador de bolachas, outra avó que não come polenta porque esta sabe a fome, uma mãe vendedora de flores de pano e sonâmbula etc. Importante ler o quanto a imagem do desespero, ou o desespero mesmo, ainda não é um mero contrário de esperança,  mas sim o desejo de sobreviver com esperança e, mais, o desejo de sobreviver à esperança que é o enlace dessa pedra/tempo, desse tempo/pedra. Em poemas como Belchior, uma referência direta ao cantor e compositor dos mais geniais da canção brasileira no século 20 [que aparece de novo, diretamente, no poema Lithium e em outras linhas por todo o livro, também como espectro], quando há uma disposição de jogo entre nascimento, medo, choro e viagem, uma vida e alguma coragem; e Solstício de verão, quando desempenha perguntas entre a terra, o tempo, uma vespa e a dimensão demoníaca de um “exatamente”, por exemplo, aparecem as questões que mancham esse obsceno desesperado. Tudo, no livro de Maíra, respira com dificuldade e, num sopro, com a erudição de um pensamento livre e errante, modulado por um vocabulário sertanejo, nordestino, aberto, desinteressado, contraria a fé no progresso e as linhas frágeis e evolutivas do que se toma como poema, agora. Leia-se aí os pequenos poemas, Amor: “jamais abrir mão dos rituais / fumaça, livros / vários nãos / nenhum filho”, e Joan Didioni: “Joan DIdion pergunta a seu sobrinho / se ele tem uma cobra / ele responde que não / que pega um ancinho e mata // se você mata uma cobra, / quer dizer que você a tem // é preciso registrar isso / o que se diz é um ato / de vida e de morte”, e pode-se imaginar o quanto se está diante da inscrição do poema como memória insubmissa e enciclopédia mágica.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2]. Acaba de lançar O lado esquerdo + Jeanne Moreau [Mórula/Cultura e Barbárie]. Publicou, entre outros, A guerra da água [7Letras], Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin]. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.


            

Aline Prúcoli, Jorgeana Braga, Priscila Amoni: trabalhadoras da terra

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“mas hoje, de novo, os poetas trabalham”

Ruy Belo

“para todo poder, leis”

Isabelle Eberhardt 

A pequena e encantadora ilusão de Ruy Belo [1933-1978], nascido em Portugal, numa entrevista de 1976, a de que os poetas, de novo, trabalham, ao imprimir a ideia à situação violenta do capital entre poder e opressão, língua e nação, Fernando Pessoa e povo etc., apresenta o impasse de que o poema, o pensamento, a imaginação se, antes, poderiam agredir e existir em luta, vinculam-se muito mais à ausência de jogo e fúria e, numa inversão de tudo, convertem-se terrivelmente conformadas em bem estar, vida familiar e saúde. Reclama, por fim, em seus últimos livros, Toda a terra e Despeço-me da terra da alegria, por exemplo, das “secas árvores do meu país” e do quanto “a vida tem aspectos criminosos”.

O que Antonio Gramsci, de outro modo, apontara bem antes, em texto de junho de 1921, acerca da participação camponesa na luta proletária, os trabalhadores da terra, as “vozes da terra”. E isso diz muito, muitíssimo, escutássemos devagar essas vozes, vivas e materializadas, com força, noutro exemplo, do que vem do Movimento Sem Terra, o MST, sem dúvida, o movimento de luta política pela reforma agrária dos mais importantes do planeta. A canção de Milton Nascimento e Chico Buarque, Cio da terra, gravada pela primeira vez em 1987, por Pena Branca e Xavantinho, já anuncia também um bocado do que essa imaginação amplia, bastariam 2 linhas: “afagar a terra / conhecer os desejos da terra”. Conta-se que nas primeiras reuniões do MST, os presentes a cantavam quase como formas e dobras de oração, hino, gesto, dádiva etc.

O que sobra, diante do vazio em que estamos agora, dimensão inócua, de uma atualidade político-ecológica da imaginação [quando atual, se político, é ao mesmo tempo o que atua e promete] e, principalmente, com a imaginação, quando ainda é capaz de pensar e mover as coisas um palmo, que seja, para algum lado? A aposta de Walter Benjamin, “destruir a destruição”, outro exemplo, busca enfrentar a exploração da natureza e as relações criminosas com o modelo único e cretino da “civilização capitalista”. Há uma inferência constituída pela ideia fascista dos “estados-nação” que se atravessa, como falsa saída circular, da política para a polícia; ultranacionalismo e democristianismo evidentes como estratégia de culpa e esperança ilusórias a um neoliberalismo desenfreado. É isto que gera e produz, industrialmente, numa escala absurda, um contingente de refugiados para morrer de fome ou a bala ou estruturas bélicas associativas para a prática de genocídio, como o que acontece em Gaza, com os palestinos, desde, pelo menos, 1948.

Agora, se os tempos em que estamos se equilibram entre neurose e necrose, ou seja, consumo máximo, máximo consumo, e quando nada escapa à imposição da lei, porque até quem imagina-se contestando a norma imposta pelo direito, só projeta alguma mínima resposta a isso no contraponto sugerido pelo próprio direito sempre dominador, que é o truque fatídico da ideia de crime. Todo o resto, como linguagem, parece cumprir-se numa ausência de caráter, o abilolado, retirando dos jogos da imaginação o inespecífico, que pode ser o que ainda escapa à lei, à regra, a uma origem, a uma identidade, a um território [termo sempre fascista] etc. e se lança ao mundo e a vida como uma vagabundagem: Eros, errância, frescor, liberdade e coragem.

As poetas Aline Prúcoli e Jorgeana Braga e a pintora Priscila Amoni: ou como reinventar uma inatualidade. [ Fotos de Aline e Jorgeana: divulgação + foto de Priscila: Cadu Passos ].

Reparar, mesmo que rápido, em algo dos trabalhos de Aline Prúcoli, Jorgeana Braga e Priscila Amoni, num encontro imprevisto, heterogêneo, série convulsa, é tentar expandir possibilidades ao atual em sua força para o político, ou seja, quando atua e promete, e não apenas no que se instala como banalização da crise, sem formulação ecológica, que é, por sua vez, instável. Aline é nascida em Vitória, Jorgeana em São Luís, Priscila em Belo Horizonte. Há o deboche sudestino, entre Rio de Janeiro e São Paulo, do “Brasil profundo”, mas essa é muito mais a história de uma transformação cultural, metamorfose para o impossível e revolução de conceitos, festina lente. Essas três artistas movem a forma do que fazem a um como fazem, da forma até a forma, que é também pensar sobre o pensamento ou como reinventar uma inatualidade.

O último livro de Aline Prúcoli, depois de coisas geniais como Pustulâncias e ανατομία, parece um jogo simples: [in]porta:nte [todos pela Editora Cousa], mas é uma impressão subtraída entre a experiência dos dias que se arrastam e a captura de imagens dessa experiência numa errância do corpo partido ao meio sob a perspectiva da terra encravada pela arquitetura moderna: é a porta que impede a existência do bolicho, as grandes salas das casas sertanejas das classes mais pobres, ou do porxo, as grandes salas das casas camponesas de Ibiza que fizeram Walter Benjamin repensar a máquina bélica que é a arquitetura moderna, quase sempre e apenas para o bem estar dos ricos. Aline impõe uma dilação erótica a essas portas, fotografadas por ela mesma e soltas numa caixinha como postais sem envio certo com textos em desenhos gráficos de letras anuladas, apagadas de fato, sem truque, quando tudo é moeda falsa, extinção de um si mesma, aprendeu com Derrida, o africano: “sopro q c enfia orifício a dentro. pau a c meter canal acima. agora 1 carne incha na sala d’estar. encostar nos móveis a toda hora: aparadores tão amigos: ñ há solidão. […]” ou “saldo do dia: 9 programas; 2 anais; 5 completos; 2 q só queriam conversar; pelo menos uns 7 palavrões no ouvido; 3 tapas no quadril; 4 puxões d cabelo; 2 arranhões nas costas; uma proposta p/ cocaína; 1 p/ não usar camisinha e algo em torno d R$ 450,00. ainda bem: amanhã: fazer apenas 3, talvez 4: a depender do 3°, pelo menos R$ 200,00 p/ poupança/aposentadoria”.

[in]porta:nte, de Aline Prúcoli: a força de quem em momento algum negocia o que faz em troca da piedade da aparição

O trabalho de Aline, há tempos, é um arremesso deliberado que se engendra entre a professora, pesquisadora, estudiosa erudita, com risco, e a sua condição feminina/feminista, mulher e mãe, com a força de quem em momento algum negocia o que faz em troca da piedade da aparição. O que se lê, e agora mais do que nunca, é o sentido que Aline imagina tocar ao avançar sobre a terra diante da causa das outras mulheres, laceradas por imposições machistas e patriarcais, violentas, e de toda uma horda humana lançada à miséria da vida comprimida por um capitalismo assolador: “depois de 15 facadas, ainda há fome? na gaveta ñ há + pano d prato saco d lixo e perdão” e “ñ fazer apenas uma vez por ano só / provar ao mundo q c é caridoso. […] fome é 1 troço bem grande q nunca fecha os próprios olhos. apenas os olhos alheios.” Cada porta, assim, não guarda segredo algum, mas são a cada página livre e texto uma transparência da guerra dos dias, do ordinário mais previsível, da falência das coisas e dos corpos ao nosso redor. Tudo o que a vidinha corriqueira, urbanizada e civilizatória, de todos nós, o tempo todo, mata.

Um outro modo de tocar a terra, a causa de UM OUTRO, está no trabalho de Jorgeana Braga. Txaiuirá [Ed. Urutau], seu último livro de poemas, com um lindo e encantado texto de orelha de Celso Borges, chamando atenção para esse ritual que finca o pé na terra, a terra no pé, entre a pele e carne, indicando o termo: uma leitura sensível e partilhada, rota de pássaro [wyrá, no tupi], entre uma ideia de sertão como experiência e convívio, não apenas como letra, e de litoral, onde parece morar uma tropa dos ossos de vivos e mortos. E aí, de novo, de outro modo, Eros vem, firme, fundo, a alucinação da “jurema travosa”, quando “morrer não é doença” e até “entrar viva no desaparecimento”. Nos textos de Jorgeana se lê outra coisa, outra ruma e outros rumos às coisas e tempos, um misto de ancestralidades índia e preta, preta e índia, sem ordem, e a presença inoperosa da floresta, do mato, das plantas, dos ventos, dos rituais em canto fulni-ô etc. e no movimento e no traço da letra que se alargam porque vêm de quem mora e se demora no que a terra ainda é.

Txaiuirá, de Jorgeana Braga: misto de ancestralidades índia e preta, preta e índia, sem ordem: “Gavião só baixa a cabeça pra chuva”.

No lindo poema Norte, de uma só linha, ela anota uma inversão da imagem: “Gavião só baixa a cabeça pra chuva”. Procedimento que está por todo o livro, tanto nos textos menores, curtíssimos, quanto nos maiores, de página inteira. Noutro, quase mínimo, de 3 linhas, ela diz: “Levar a casa nas costas / Como uma borboleta que voa / Para dentro da terra.” Esse método está vinculado ao deslocamento físico do corpo entre pequenas aldeias que aparecem, muitas vezes, em anotações propositivas para repensar a vida nas grandes cidades movida a dinheiro e desconversa: “[…] / a cidade afoga o mundo / afoga os laços / os nós / e aquelas amizades que viraram de costas / pura convenção de uma mesa de bar em qualquer lugar / não há fé no asfalto / a gente tem que subir o morro pra isso / […]”. Jorgeana Braga risca o chão do poema com o seu corpo, uma mulher emprenhada de nordeste entre a vida no chão do real – “o silêncio que vem de cima”, “a ponta fina de um coração que não espera nada” e “ameríndia que habita a noite / coração de rocha que se apanha de águas doces” – e alguns mistérios que ela mesma inventa para nos lembrar que se há poetas que, de novo, trabalham, tem a ver com o lance inesperado de uma dicção alucinatória que escapa, corajosa, da dicção repetitiva e conciliatória da muito celebrada e muito premiada “poesia brasileira contemporânea”, este cansaço de umbigos sem poesia e sem poeta nenhum.

Criança, 2022, Sete Lagoas (MG), de Priscila Amoni: quando pintar com pincel passa a ser uma questão de escala, algo que remonta a um empenho político.

Por fim, é o gesto do trabalho de Priscila Amoni, pintora, numa dimensão para além do olho, sem condicionamento retiniano, descolamento da técnica de ateliê entre cavalete, pincel e tinta para a escala do muro, da parede, em espaços públicos, urbanos para recompor uma invenção da terra. Pode-se imaginar que há nesse gesto, quando pintar com pincel passa a ser uma questão de escala, algo que remonta a um empenho político entre restituição e retratação de um passado que se revolta e invade a cena num processo de restauração tal como nada nele tivesse havido. Priscila desmonta o controle da luz, numa aprendizagem que vem do contato com outras pessoas pintando e de pintar junto com outras pessoas, para uma luz imprevista mais próxima da duração de uma visita, tanto na temporalidade das ruas quanto na composição de uma ideia de comunidade. É, ao mesmo tempo, a modulação do convívio com o entorno, ou seja, corpo e corpos, corpos e corpo, e a demora do pincel sobre a superfície do muro, da parede, numa tentativa heterogênea de leitura do lugar, do espaço, da vida que circula e se engendra ao redor. É praticamente uma urgência e uma emergência traçar essas linhas esfumadas do retrato de mulheres, pretas, brancas, velhas, benzedeiras, de terreiro etc., ou, num recorte de inferência em lançar sobre a paisagem exaurida da cidade, quase sempre a mesma, os impasses que figuras de bichos e plantas podem convocar como rememoração alguma sabedoria ancestral: o que ainda se pode receber da natureza contra as ações de avidez movidas pelo mundo capitalista neoliberal que nos rege o tempo inteiro.

Dona Geralda, 2024, de Priscila Amoni: “ver-se, vendo”, mirar-se na figura que é pintada e, ao mesmo tempo, desejar uma dissolução de todo EU.

Repare-se em pinturas como Criança, de 2022, ou Dona Geralda, de 2024, ou, ainda, Rainha Bela, de 2019. São pinturas que remetem, de certa maneira, ao projeto dos muralistas mexicanos, como Siqueiros ou Orozco, entre revolução e sonho; transparências consistentes acerca da equação “ver-se, vendo”, mirar-se na figura que é pintada e, ao mesmo tempo, desejar uma dissolução de todo EU diante de uma suspensão provocada por uma paleta muito singular que ela cria, inventa; uma paleta vibrante, solar, difusa, e que Priscila chama de “ensolaramento”. Como pintar lançando-se, corpo, à pintura e, sobremaneira, esmagar esse corpo diante da escala e da cor e no pequeno gesto do pincel na superfície imensa até esse corpo, que pinta, desaparecer. Tanto que as figuras pintadas recompõem e reposicionam os corpos de expectação à espectros, ao inespecífico do contorno, sem explicação, como se magias perdidas, segredo, mistério, pausa.

Assim, diante dessa sobreposição de tempos improváveis, os trabalhos de Aline Prúcoli, Jorgeana Braga e Priscila Amoni, trabalhadoras da terra, mãos na lama do mundo e suas delicadezas, retratam e restituem, por exemplo, o impossível de Cézanne quando visitava, todas as manhãs durante uma viagem a Veneza, a capela de San Giorgio para confrontar-se com a luz que invadia a gruta e sem conseguir pintá-la. Para o poeta Joaquim Cardozo essa é a mais genial pintura de Cézanne: a que ele não fez.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

Paulo Leminski, leitor do sertão

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“Não há mais tempo. O tempo acabou.”

Paulo Leminski

Manoel Ricardo de Lima, que assina a coluna trabalhos no subsolo, propõe numa série de 5 textos, uma releitura do trabalho e do pensamento selvagem do poeta Paulo Leminski [1944-1989] no ano em que se completam 35 anos de sua morte. A série parte da ideia de um Paulo Leminski, leitor. O texto que abre a série é Paulo Leminski, leitor do sertão.

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Agora, em 2024, completam-se 35 anos da morte de Paulo Leminski, morto em 07 de junho de 1989. Depois de Drummond – que recusou por 3 ou 4 vezes entrar para a vida imortal numa tetraplégica academia nacional de letras que só piora a cada ano, um malogro imaginado por Machado de Assis que, irônico e propositalmente e para rir de nós no inferno, nos legou esse deboche definitivo, a última de suas negativas –, é certamente Leminski o único a quem ainda se poderia, no Brasil, de todos os modos, nomear poeta. Como Ismael, o contador das histórias do leviatã, poeta não é quem diz “chamo-me”, mas quem imagina um espectro que vem do chão, sem metafísica, dizendo “chamam-me”. E que, mesmo assim, ouvindo o chamado, diz não, o tempo inteiro.

3 anos antes de morrer, em 1986, num seminário organizado por Adauto Novaes, através da Funarte, no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Curitiba, “Os sentidos da paixão”, ele participa com uma conversa deliberada, Poesia: a paixão da linguagem, retomando, essencialmente, o que apresentara como proposição em dois textos daquele mesmo ano: “sertões anti-euclidianos” e “grande ser, tão veredas”. O mais interessante é que faz uso de pequenos comentários ao que, natural e ordinariamente, se conhece como “prosa” para falar do que, também ordinária e naturalmente, imagina-se como “poesia”. Mas o ponto de insurgência aí nem é essa relação precária já levada a cabo tantas vezes, prosa/poesia, mas sim uma imaginação laceradora do pensamento que se lança através das figurações do sertão, como experiência, o que Leminski não parece ter tido – senão através do biografema que faz do corpo preto, esquálido e morto de Cruz e Sousa num vagão de trem entre cavalos –, e, depois, como imagem rarefeita, o mais perto possível de uma imaginação revolucionária ao ler esses livros impensados.

Depois de Drummond – que recusou por 3 ou 4 vezes entrar para a vida imortal numa tetraplégica academia nacional de letras – é certamente Leminski o único a quem ainda se poderia, no Brasil, nomear poeta.

Ao mesmo tempo, Leminski, este muito bom leitor do sertão sabia que é impossível tocar esses dois personagens-escritores tão díspares e esses livros também tão díspares, Os sertões, de Euclides da Cunha, 1900; e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, 1956; sem tocar num ponto do que afirma em direção a um si mesmo que advém daquilo que lia e, muito mais, de como lia aquilo que lia: “o pensamento que alimenta e abastece uma experiência criativa tem que ser um pensamento selvagem, não pode ser canalizado por programas, por roteiros, tem que ser mais ou menos nos caminhos da paixão [pela linguagem].” Daí que nos lembre, muitas vezes, o quanto Glauber Rocha é um exemplo que persegue como exímio leitor do sertão, não só porque devorou os livros de José de Alencar, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e, numa outra ponta, de Guimarães Rosa, mas porque, principalmente, para ler este último, escreveu ele mesmo um romance, o genial Riverão Sussuarana, publicado em 1978, numa convocação do  Bloom, de James Joyce, e de um Riobaldo amalgamado em êxtase com Diadorim. A figura de Glauber, do pensamento de Glauber, é uma constatação efusiva de uma materialidade imanente da paixão, porque Leminski insiste na ideia de que o que está na moda é a palavra paixão, não a paixão.

A recuperação das ideias de que “nenhum livro / teve sobre a cultura brasileira letrada / o impacto de “os sertões” e de que se está diante de um “cordel de guerra / de um homero anônimo / onde a crueza das ideias e expressões / se expressa em bárbara ortografia” se expandem até o vórtice destrutivo, porque se aproxima do materialismo histórico sugerido pela anacronia heliotrópica de Walter Benjamin, de uma ancestralidade imprevista; para Leminski “dele descendem / “macunaíma” / “vidas secas” / “o tempo e o vento” / toda nossa prosa regionalista / até o sertão máximo / “grande sertão: veredas” / onde o gênio de guimarães rosa / dá ao sertão uma dimensão cósmica / num texto rico como os de Joyce / encerrando com chave de ouro / o ciclo mais fecundo da literatura brasileira.” Leminski o lê como se fosse um delicado haicai, A TERRA / O HOMEM / A LUTA, ou tal como o “abc de incredulidade”, texto popular recolhido por Euclides num de seus cadernos, e remonta o gesto de sua própria e incondicional formação zen-marxista-trótskista, ao nos lembrar que a literatura, se imaginada para um impossível, poderia penetrar as massas ou quiçá uma classe popular como força social, o que é muito próximo do que Benjamin também sugeriu como “utopia irrecusável”.

O gesto de leitura de Paulo Leminski é tão inespecífico e movediço que contraria a si mesmo ao dizer que entende que “os textos mais subversivos” de Rosa estão reunidos em Primeiras estórias, “com toda a sorte de violações em relação aos sinais de trânsito da linguagem, não só da linguagem literária mas até da linguagem enquanto veículo de comunicação entre os falantes da língua portuguesa.” Daí que afirme também que se o grande romance de um ocidente suposto tiver sido escrito em basco, ele não há; e que escrever em português e ficar calado, “mundialmente falando”, dá no mesmo: “é mais que basco, mas é muito menos que o espanhol”. E que se há “um caráter jagunçal” na literatura de Rosa é, exatamente, porque ele vibra numa aposta entre a forma e o conteúdo para a construção de um terceiro, “uma força da língua”, quando o escritor não é algoz nem vítima da língua, mas aquele que se lança à escritura com todos os movimentos do corpo em direção à paixão pela língua, pelas línguas. E projeta categórico que Rosa “jagunceia [a língua] por precisão”, tanto que os seus textos vertidos para o alemão, inglês, francês ou italiano perdem, exatamente, diz ele, “o caráter jagunçal da linguagem”. O que acontece com Joseph Conrad, o polaco Józef Korzeniówski, que vai da Polônia para a Inglaterra e, segundo ele, “se britaniza” para tentar gritar na língua do capitalismo colonizador mais violento do século 20. Conrad que, por sua vez, muito bem lido por Belchior, genial cantor das coisas do porão e de um sertão condenatório e outro exímio leitor de Euclides, Rosa e Glauber, aparece com força na canção Coração selvagem e num truque final de uma sobreposição de línguas que todo sertanejo inventa: “Meu bem, meu bem, meu bem / Que outros cantores chamam baby”.

Leminski se perguntava quem, nesse país, lê e, mais ainda, quem no Brasil consegue perceber como lê o que imagina ler. No meio disso não se pode esquecer da grana imperiosa das corporações do mundo editorial para a inserção desse ou daquele livro, o que produz a inexistência de tantos outros, muitas vezes mais interessantes, mais políticos e mais pertinentes.

Jacques Derrida, no seu mínimo e denso Paixões, texto de 1993, diz que amar alguma coisa na literatura é amar um lugar do segredo, algo como “não há paixão sem segredo, este segredo, mas não há segredo sem paixão. Em lugar do segredo: aí, entretanto, onde tudo está dito e o resto nada mais é senão o resto, nem mesmo literatura.” A ideia de que a literatura previa, como sentido e paixão da linguagem, DIZER TUDO, DIZER A TUDO, quando ela é uma paixão sem martírio, para Leminski, já era. Termina na farda, numa conformação, no uniforme, este mesmo que alguns dizedores do sertão, como João Cabral, de família escravocrata, senhora de engenhos, e Guimarães Rosa, mesmo que tenha optado pela vida entre vaqueiros, não tenham conseguido recusar, porque diante da mercadoria nada se recusa, ela é mais rápida, indômita, violenta, legalizadora e legisladora, anula e encerra toda e qualquer paixão. E aí, nem adianta, segundo Leminski, entrar no universo dos José Lins do Rêgo ou das Rachel de Queiroz, esta última uma legítima apoiadora do golpe militar de 1964; nos sobrariam apenas os livros fortes e as tomadas de posição de Graciliano Ramos até o cárcere e depois, liberto, abandonado pela polícia aos trapos e farrafos na esquina do Largo dos Leões com rua Alfredo Chaves, no Humaitá, Rio de Janeiro, porque era o único nome de rua que lembrava e conseguia dizer sem parar. Ironicamente, o endereço da casa de Dona Naná e José Lins.

Um direito da literatura à morte, sem fuga e sem tempo, é que faria do escritor, o poeta, alguém tomado de coragem e fascinado pelo perigo. Mas “os tempos estão difíceis”, diz Leminski, e o poeta já era, acabou. No seu caso, se não tinha a experiência convicta do sertão, a que só é se com o corpo lançado ao espaço como deriva e vulto, justamente como a empenha o poeta, estudioso das coisas da terra e leitor diferido de Rosa, Carlos Augusto Lima, ao menos não foi um signatário efêmero como Mário de Andrade que, na sua travessia pelo Nordeste e pelo Norte, registra risonho um lapso que diz tudo: “Esqueci do Piauí!” E isso está tão posto e imposto que, por exemplo, até os dias de hoje, “não há” nenhuma literatura brasileira produzida nos anos 1970 que não tenha sido escrita apenas entre a praia de Ipanema e a instituição “esses poetas”. A denúncia ao “mal contado” é de que “boa parte da nossa ficção é contabilidade”, de que “o mal é de família” e de que “comparada com o nosso naturalismo pedestre e fotogênico, a ficção latino-americana parece uma literatura que enlouqueceu”. Por isso, Leminski declara que “a última grande fábula brasileira é a de Grande sertão: veredas, […] de lá pra cá nossos ficcionistas se debatem entre naturalismo e a máquina fotográfica.” E é este pequeno “de lá pra cá” que demonstra a ideia imposta de “acarinhar o leitor” e da “forma de sucesso garantida” também numa poesia que é mera “prosa empilhada em versinhos, como está cheio o Brasil”.

Numa mesma modulação, sempre se perguntava quem, nesse país, lê e, mais ainda, quem no Brasil consegue perceber como lê o que imagina ler. E isto numa disposição para remover o imutável: “analfabetismo, alto custo do livro, falta de bibliotecas públicas, falta de preparo, de educação do gosto, de interesse e de procura” e “é a transformação em mercadoria que dá à obra de arte a ilusão de ser ‘livre’.” No meio disso, dessa anestesia, não se pode esquecer da grana imperiosa das corporações do mundo editorial para a inserção desse ou daquele livro, especificamente, o que provoca e produz a inexistência de tantos e tantos outros, muitas vezes muito mais interessantes, mais políticos e mais pertinentes, sem compromissos com uma agenda da hora ou com um vocabulário usual e mímico e nenhuma invenção imaginativa. Não há mais nada que não seja do plano do capital e da violência do que o capital determina em sua dimensão indômita, até – repare-se a ironia – no que deve ou não ser censurado, porque sempre é para tudo apenas o que está à vista imposto por essa mesma violência.

O projeto de leitura do sertão proposto por Paulo Leminski é, por vezes, maravilhosamente anárquico, anarquivista e selvagem; sem uniforme, completamente informe, porque ou se implica hermeticamente o corpo ferido e alegre num contágio com a terra ou é só novela das 7. E isso tem a ver com aquilo que Herberto Helder, que imaginava um Rimbaud impossível porque só seria o que é se for um discípulo ancestral de Godard, chamava de “gramática profunda”, e essa gramática é o princípio e o precipício do que se lê como política e gesto para a composição heliotrópica de uma comunidade: “a transformação mais insignificante de todas”. No entanto, Leminski, corajoso e subversivo como sempre, provocava naqueles idos de 1986: “qual a linguagem que não se escreve? qual é a linguagem em que a poesia nunca chega?” e “não há mais lugar para a paixão, porque a paixão é o desejo projetado para a frente. Não há mais nada lá na frente, apenas o apocalipse. Não há mais frente.” Acertou na mosca.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

 

 

Rhaina Ellery: o rancor e um enorme buquê de questões

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Viver… viver é assim, aturdir-se?

Aqui se batalha e aqui não se para.” 

João Antônio

Numa entrevista para Michal Ben-Naftali, 2004, Jacques Derrida, o africano, em torno de ideias e conceitos como amor, lei, direito, justiça etc., e impressionado com o tamanho da primeira pergunta, começa dizendo à sua amiga: “Trata-se de um enorme buquê de questões.” É no impasse da individuação que, a partir da psicanálise, delibera um pensamento ao que imagina como desconstrução nas figuras de um eu, o sujeito, a pessoa, e comenta que somos vários, divisíveis. Argumenta que o que se aprende aí é que somos sempre já divisíveis, várias pessoas, imagens, imago. E, com força, nos lembra que não podemos ser o que se chama um indivíduo, exatamente porque este é o indivisível. Atesta que “Não somos indivisíveis” e que esse enunciado tem numerosas consequências: divididos, contraditórios, ainda mais se estamos no lugar de tantos e diferentes, se estamos dispostos ao lugar de UM OUTRO.

A modulação se constitui de um instante ao instante seguinte, desse modo impõe-se o juramento:  se preciso jurar que amanhã ainda amarei alguém é porque é possível que isso mude; se não, nem precisaria jurar. Ora, o amor é ambivalente, só seria puro o amor de Deus, e isto não há, está à salvo somente no NOME, ou seja, naquilo que inventamos como proteção. Nos protegemos contra a divisibilidade para não virarmos pó. Apelamos para deus, deuses, elementos místicos, ao nome do pai, da mãe, ao nome próprio e, ainda, a uma suposta formação com história. Fernando Pessoa levou tudo isso a cabo, apagar-se / diluir-se / desmanchar-se, com mais de 100 heterônimos para desmontar qualquer sentido precário de um EU que não treme. Apresenta, em desassossego, a responsabilidade política de um pensamento que treme, porque o corpo e o solo tremem diante de uma tomada de posição a UM OUTRO, como UM OUTRO, entre silêncio e segredo, e isto porque é sempre o outro, o inacessível, quem dita a Lei.

Uma escritora como Rhaina Ellery é um furo na lengalenga. Mas não guardo rancor desfaz a brisa morna que, saída de regiões mais pobres, como o Nordeste, quase sempre se lança aos encantos dos centros econômicos do país satisfazendo ritos lambe-botas que o Sudeste lhes imprime. Ao contrário, esse livro é uma ventania violenta.

Assim, nessa cosmogonia excessiva e tensa entre o que se engendra como um EU e um OUTRO, quando tudo aparece como descompasso e descontrole, contradição e, principalmente, divisibilidade, é que se pode tentar cumprir os jogos das mulheres que são personagens do primeiro e impressionante livro de Rhaina Ellery [Fortaleza, 1980], um romance: Mas não guardo rancor [Patuá, 2023]. Uma narradora que se dissolve nela mesma e, ao mesmo tempo, na mãe e em tantos nomes e corpos de outras mulheres: Carmem, Martina, Tonia, Dona Áurea, Olympia, Otto. Em princípio, o que se reinventa no texto de Rhaina é a retomada de algo que está na composição de uma comunidade de mulheres desabitadas, mas em luta, como aparece no genial A rainha do ignoto, 1889, escrito pela também cearense Emília Freitas. Livro esquecido, deixado de lado, porque é sempre mais fácil manter as coisas tal como estão, eis o sentido da catástrofe. Tiago Coutinho, professor na UFCA, em Juazeiro do Norte,  nos lembra em sua tese de doutoramento [PPGMS, UNIRIO, 2019] que é Iracema, a vítima do estupro do colonizador português, quem de fato pode reescrever uma outra história de uma fundação cultural brasileira e, assim, de “nossa” literatura.

Rhaina Ellery | Foto: Camila Chaves

Porém, na outra ponta, a monocultura da mercadoria sugere um só padrão de  literatura, a da impostura, que se desenha numa cartografia plana e sistêmica, ou seja, ordenação do mapa: um meta-modelo que tem apenas uma face e que se resume a mesura, controle e poder porque não admite alternativas. E, dessa maneira, se limita a tecer arengas sem nenhum jogo de laceração da linguagem, mera linha de montagem, praticamente reza vazia. É a ladainha do que agrada ou desagrada a um circuito sem vórtice, ou seja, sem margem para escapar de si mesma, sem utopia, sem forças renovadas. Salomé e seu capricho ao pedir a cabeça de Batista, aquele que dá nome às coisas, ou seja, o poeta, num prato. O corte da garganta é o corte da linguagem para sacrificar o corpo vivo e indicar que a Terra é apenas uma cabeça [sem corpo, logo sem desejo] lançada à tabula rasa da história.

Uma escritora como Rhaina Ellery é um furo nessa lengalenga; é uma interrupção, um abismo, um esgotamento. Mas não guardo rancor é intenso, denso, reflexivo, inespecífico, carne e sangue, e desfaz essa brisa morna e desenxabida que, numa linha de fuga saída de regiões mais pobres, como o Nordeste brasileiro, quase sempre se lança aos encantos dos centros econômicos do país satisfazendo todos os ritos lambe-botas que o Sudeste lhes imprime. Ao contrário, esse livro é uma ventania violenta, quente, apresenta a vida no que ela tem de mais forte, porque inconclusa, quando qualquer poder que a persegue se dilui, quando a vida ainda é uma existência. E é assim que a narradora começa com um cinema acefálico ou, no mínimo, de cabeça pra baixo, quando quem nos sonha é o tempo inteiro UM OUTRO: “Tenho poderes. Ressuscitei minha mãe quando preenchi seu útero vazio. Nosso cordão era elástico: esticava até o limite do rompimento e voltava à forma natural machucando quem segurava suas pontas. Enquanto as cinzas dos anos me queimavam, íamos nos desfazendo, silenciosamente ansiosas: por quem arderia primeiro. Como aconteceu? Ateei fogo. Mamãe me encarava em chamas.”

O relato da narradora se passa em Curitiba, e enquanto ela se debate com a garatuja de uma cidade inoperante, própria ao afastamento e programada como exemplar para um falseado ajuste social, há também a habilidade de leitora que Rhaina é e que comparece o tempo todo em seu texto para mover as personagens por linhas sinuosas, oscilantes, esfolando o sentido da interlocução: “Já que vou contar tudo pra você, não me interrompa.”; e indicando que toda e qualquer individuação não é ainda e nem será depois: “Curitiba é uma boa cidade para morar: a mais verde da América Latina, potência econômica, uma capital organizada, planejada, racional. Sem contar que não precisamos conviver com ninguém: Curitiba é a cidade dos solitários. Minha infância? Uma merda.”

Mas não guardo rancor é um livro intenso e adversativo, atente-se aí à conjunção do título, problema do mundo e, mais ainda, quando todo o relato se passa durante a frase que abre o primeiro o capítulo – “Não conheci o filho da puta que fodeu minha mãe, mas não guardo rancor, é só modo de dizer.” Este recurso singular remete diretamente ao Agora é que são elas, de Paulo Leminski, 1986, quando todo o romance dura o tempo de uma pergunta mínima, cigarro na boca: “Tem fogo?”. É o rancor que se desfigura, que mata e morre, numa série instantânea de fotogramas que, em movimento, provocam a ilusão de que o tempo se move, princípio da física, desvinculação matemática, experiência-limite sem insinuação de esperança. As imagens lançadas ao léu no que é dito pela narradora são uma espécie de revisão, imagens recuperadas, para que sejam vistas de novo e de novo, por ela, numa projeção para frente através de um regresso no tempo e, também, das lembranças delirantes que provocam essas imagens a um futuro anterior.

Entre as personagens não há piedade nem penitência, não há perdão nem vítimas, todas são algozes de si mesmas e de todas as outras. E isto é uma expansão que só pode ser provocada por quem carrega consigo uma biblioteca impertinente, caso de Rhaina Ellery, que indica a contingência do quanto escrever não tem importância alguma. Por isso, na lata, é impossível não lembrar de João Antônio e seu conto informe Abraçado ao meu rancor [1986]: “Diz, corta, rasga que me quero morrer abraçado ao meu rancor” e “Não tripudie, pois, que este viver nesta cidade é tão ruim, que as pessoas trabalham continuamente até para esquecer que vivem nela.” E um trecho dos mais contundentes e bonitos do livro de Rhaina: “Na minha rua, tinha uma cabeleireira que atendia a todos fiado. O corte era péssimo, assim como tudo que é de graça. Diziam que era generosa nos cortes porque cobrava caríssimo pelos programas que fazia no Passeio Público. Graças a eles, pôde redesenhar seu sexo. Antes da operação era triste, ficou menos triste depois da xereca modelada, mas teve que se contentar em ser somente cabeleireira. Depois da cirurgia, perdeu todos os clientes do pau. Sua freguesia assídua era composta de maridos dispostos a gastar o olho da cara para serem penetrados por uma mulher. Ela retirou aquilo que mais os atraia: seu disfarce. […] Ela estava livre para ser quem quisesse, mas perdeu pau, dinheiro, amantes e a esperança de ser plenamente feliz.”

Por fim, é Beatriz Pôssa, exímia leitora e pesquisadora de João Antônio, entre os cinemas de Julio Bressane e de Ozualdo Candeias, quem afirma que “a construção das figuras de João Antônio se dão num terreno lamacento de recuperação com uma sensibilidade ímpar, não a ‘solidão menos doença nervosa’ como sintoma burguês da neurose, mas muito mais reflexo de uma angústia incomunicável sentida por todo o corpo.” Rhaina Ellery carrega isso por todo o seu livro em cada personagem, angústia incomunicável em todo o corpo, e a prerrogativa desejante de que “olhar é com todo o corpo”. Está-se diante de uma escritora em letras minúsculas, porque leva a ideia de escrever às últimas lascas de impressão da literatura que imagina cumprir como responsabilidade política: primeiro, um enorme buquê de questões; depois, quando essa responsabilidade é um pensamento que treme, quando corpo e solo tremem ao tomar-se posição para UM OUTRO, como UM OUTRO, silêncio e segredo.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.