Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Não existe o alhures. Estamos todos aqui. ”

Pier Paolo Pasolini

Estamos, há muito, em tempos sem inocência. Num texto de maio de 1969, “Monstros e monstrengos”, Pier Paolo Pasolini, poeta e cineasta italiano, denuncia que “a inocência não existe, ninguém é um anjo vítima do diabo”. E aponta a chantagem como um modo desse jogo moralista e judicativo, além de uma busca por monstros para que sejam linchados antes; do quanto há uma necessidade imediata de linchamento. Daí que diga, com força, que o moralista só aponta o dedo a outrem, nunca a si mesmo. Toda a responsabilidade é – eis a moral da pequena burguesia, que, aliás, fica muito aborrecida quando a sua moral não se cumpre –, biblicamente, das maldições divinas. Pouquíssima ou nenhuma diferença entre a civilização de Himmler e dos Lager para a que nos modela agora, em tempo real, como vigilância e violência. É a expressão de Max Weber, “o monopólio da violência”, para dizer das sociedades capitalistas, que faria tanto sentido ao pensamento de Walter Benjamin, desde o texto Para uma crítica da violência, 1921, até as Teses sobre o conceito de História, 1940: “a violência que  mantém o direito é a mesma, a partir do direito, que nos ameaça.”

Repare-se na disputa grosseira entre duas figuras que dizem decantar o encantamento a partir da floresta por um assento numerado para o chá da tarde numa academia de letras, quando, se a coragem ainda é um ato sério, poderiam se juntar pra tentar fechar de vez todas essas academias que não dizem nada, se prestam a nada.

 

Nessa estrutura mímica, repare-se agora, por exemplo, 1] na quantidade de jovens estudantes e poetas celebrando e anunciando que foram jurados da primeira etapa de um desses prêmios literários, felizes pela circunstância de um pacto circular, sem elipse, sem corte, sem abertura, sem desmonte. Baudelaire disse que um prêmio literário fomenta a hipocrisia, há algo que fere tanto o homem quanto a humanidade, ofusca tudo. E é Pasolini quem reclama do pacto dos estudantes com seus superiores quando estes passam a determinar onde e como serão as assembleias daqueles; é também quem denuncia a passividade de Ungaretti quando a  burguesia italiana o transformou num “poeta oficial” e ele não fez nada para que isso não acontecesse; 2] na disputa grosseira e agressiva entre duas figuras que dizem decantar o encantamento a partir da floresta e da seiva do coração com os tempos do primitivo por um assento numerado para o chá da tarde numa academia de letras, oficialização e mudez, quando, no mínimo, se a coragem ainda é um ato sério, poderiam até se juntar pra tentar fechar de vez todas essas academias que não dizem nada, se prestam a nada.

Chantal Castelli | Foto: Ricardo Rizzo

O apontamento é, precisamente, diz Pasolini, “as coisas que o poeta enfrenta na juventude, e sobre as quais, mais tarde, quando já velho, se cala.” E é essa ausência completa da inocência que Chantal Castelli [1975, SP] traça sem piedade nos poemas de Para que os inocentes não tenham tempo [Corsário-Satã, 2023]. A poesia de Chantal, há muito, já incorpora os sentidos abertos de uma esferologia limite com os impactos sociais e políticos de uma vida com violência, do corpo a corpo, do mero convívio doméstico à rua, da rua à miséria, da miséria ao direito, do direito ao ritornelo da violência etc. E isto é o fundamento do espectro da política, integralmente, nos móbiles em que estamos girando ao redor dos centros do dinheiro. Leia-se, pois, os livros anteriores de Chantal, como Memória Prévia [Com-Arte, 2000] ou Os cães de que desistimos [Hedra, 2016]. Está muito claro o quanto Chantal lê, entende e percebe o buraco da interrogação “quid tum”, algo como “e então, e agora?”, e que esse buraco não pode ser inscrito a partir de um mero desenho íntimo, familiar, narcísico, autobiográfico, frágil, atoleimado. Mas sim, recuperando o gesto do quanto uma perspectiva da história ainda descende, noutro exemplo, da técnica de Ptolomeu, quando transforma o globo em um mapa, ou seja, num espaço reto de controle e poder. E isso coincide com a construção do Hospital dos Inocentes, em Florença, projeto arquitetônico de Filippo Brunelleschi, com um pórtico que funcionou até 1875, onde se enfiavam os enjeitados, os inocentes, as crianças recusadas por seus pais. E é dessa violência de morte, biopolítica imperiosa, da qual surge o nome do Renascimento: esta segunda natureza que advém apenas para fins civis.

Para que os inocentes não tenham tempo [Corsário-Satã, 2023], de Chantal Castelli, faz lembrar que se ainda há uma tarefa política ao poema, ela é uma luta contra a violência da afasia moralista e, ao mesmo tempo, luta contra as novidades banais do mercado e o egocentrismo que buscam anular e negar toda estranheza à poesia.

É uma linha rara, raríssima, de pouca palavra e muitos esforços de linguagem, imagens empenhadas e um trabalho minucioso de demora e método, esta por onde Chantal constitui a poesia que imagina como vinco, sulco, saliência, salto, origem. Não é uma vida de retaguarda como a normal e naturalmente aparecida numa poesia de fundo raso, molinha, cheia de truques, idas a cafés, passeios, encontros de disse me disse ou quem diz primeiro para ir à feira literária mais festiva, mas trata-se de uma poeta – quando esta palavra ainda é a recuperação do sentido de quem avança à frente –, que se lança às linhas onde elas começam, quando há uma solidão perigosa e quando a ideia de independência é política. É a violência sacrílega e iconoclasta que sustenta o limite dos poemas de Chantal, desde o primeiro poema do livro, Anamnese, com 10 fragmentos, que refaz o ímpeto profanatório de Abrãao: matar Isaque; até o último poema do livro, Sazão, uma espiada na passagem do tempo em suas delicadezas, que nos lança diante da imagem que nos devolve a todo o livro: “Quase uma história.”

Para que os inocentes não tenham tempo [Corsário-Satã, 2023], de Chantal Castelli

O livro tem 5 partes [Autofágicas, Extremo ríspido, Ode à mãe, Outra língua entre os dentes e Sazão] que se amalgamam num jogo de síncopes do corpo, ou de corpos, que se engendram entre figuras conhecidas, como uma mãe e uma filha, um pai e uma guerra, uma placenta e um Anaximandro invisível, uma criança e o músculo do desejo, o fígado e o inferno etc.  Mas é o vocabulário diferido e os modos de uso desse diferimento que nos impõem os poemas de Chantal sob uma perspectiva modulada, nunca linear, uma singularidade do que ainda é pensar: a poesia como um pensamento imprevisto, heterogêneo, contingente e sem centro. Poemas, por exemplo, como Garota-bomba ou Outra Pietá, de partes diferentes do livro, se desintegram ao roçar a fratura do que ainda é uma experiência: “Ninguém espera que uma menina ande por aí / com uma bomba embaixo do braço” e “Acabo de parir, mas quem sentiu as dores e convalesce (como quem se livra de uma doença) com minha filha no colo é ela.” Quase em seguida, há no poema Duas cidades, um descompasso entre “teste” e “bombardeio” e, bem antes, há no poema Recuo, um desdobramento do termo “partout” e a aderência do corpo a uma segunda pele, a outra violência, a alguma esperança.

Esse é, um pouco, o pesa-nervos dos poemas de Chantal: dispor em xeque qualquer inocência e toda liberdade numa busca incansável para existir – como uma jovem estudante ou poeta – sem pedir licença a superiores e habitando apenas os telhados, se for o caso. Para que os inocentes não tenham tempo é um livro que faz lembrar que se ainda há uma tarefa política ao poema, ela é, no mínimo, uma luta contra a violência da afasia moralista dos dias, a da lei e, ao mesmo tempo, uma luta contra as novidades banais do mercado e o egocentrismo que buscam anular e negar toda estranheza à poesia.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “Trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.