Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“[…] que a banalidade que aparece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade.”

Silvina Rodrigues Lopes

Ricardo Corona nasceu no Paraná, em Pato Branco, 1962. Julia Raiz nasceu em São Paulo, na capital do estado, 1991, vive em Curitiba. Ricardo também. Há uma distância de tempo e temperatura com o pensamento no traço do que ainda é escrever, inscrever, ex-crever, mover a mão ao contrário dela mesma. Lê-los assim seria apenas estabelecer uma trajetória de geração, “poetas hoje” ou como se o futuro ainda fosse amanhã e não tivesse sido antes de ontem. Ricardo Corona publicou uma série de livros diferidos para empenhar sua tarefa política, como poeta, do forte Cinemaginário [1999] até o híbrido Tortografia [2003, com Eliana Borges, companheira de aventura e projetos abertos] ou, ainda, as tangências de Corpo sutil [2005, que tem na capa o colo de Joana Corona, 1983-2014, poeta e artista visual sem tamanho] e Curare [2011] entre outros. Editou revistas como Medusa e Oroboro, também com Eliana, virando ao avesso os planos fechados da literatura e imaginando maneiras intensas de desmontar as ideias de centro, centralidade, dinheiro, controle, poder. Coordena, com ela, a editora Medusa, e tem feito um esforço maior que as pernas para mover uma circulação de livros mais arejados do que o que banalmente se vê país a fora, uma espécie de recuperação do sonho de liberdade e desejo de memória. Ricardo é jovem o tempo inteiro, carrega consigo o vezo da coragem.

 

Julia Raiz parece perseguir com agudeza e sentido o caráter do que Ángel Rama não conseguia ler, o caráter de los jovenes, e que segundo Raul Antelo são sempre sequestrados nas análises de Rama. Haveria nos jovens certa irreverência desbocada, ironia perversa, poesia em movimento sem eira nem beira e, muito, de como fazer-se um outro e como colocar-se à distância de si mesmo. Os jovens, amplia, despertariam paixões sem um mero mimetismo de linguagem, seriam atravessados pelo fortuito, pelo o que pode não ser, por indisciplina, antimodelos, disponibilidade ambivalente, forças de confrontação, inclusão excludente, baixo materialismo etc. O exemplo com o qual Raul opera, diante de Rama, é Glauber Rocha. Rama viu em 1971, ao lado de Antonio Candido, uma sessão de Deus e o diabo na terra do sol, na 5.a Mostra de Cinema Latino Americana de Gênova. Estamos em outros tempos, outras circunstâncias, a mutação antropológica nos levou a um único motivo de vida: o consumo. Os “jovens” hoje estão, invariavelmente, envelhecidos, conservadores, preguiçosos, mímicos. Assim, imaginar que o trabalho de Julia se aproxima, mínima e minimamente, daquele caráter de juventude que Glauber movia, se talvez mesmo que só como referência, já é distinguir uma operação também mais arejada do que o que se vê país afora e, assim, alguma tentativa de recuperação do sonho de liberdade e desejo de memória. É tradutora, faz o podcast Raiz lendo coisas, publicou Diário: a mulher e o cavalo [2017 / 2023] e as plaquetes p/vc [2019] e cidade menor [2020].

Por todos os lados o que se vê é uma penca exclusivista da ideia única – monocultura, ou seja, grana – para o poema, para a poesia, para a literatura em direção ao centro tal como ele é, preenchido e conformado.

Importante lembrar que em 1927 quando Walter Benjamin, sempre jovem, lê O circo, livro de Ramón Gomez de La Serna, publicado 10 anos antes, está exatamente lançando-se à tentativa de recuperação do sonho de liberdade e como isso ainda pode contra a aridez capitalista reificada e reificadora que arremessa tudo para a banalidade. É a imagem de Ramón Gomez gritando no alto de um trapézio em Milão que o fascina, e anota: “a verdadeira liberdade dos povos seria antes de mais nada conquistada em um circo.  […] há apenas duas profissões que naturalmente sejam fiadoras da liberdade, e nenhuma das que se possa  geralmente pensar: […] os matemáticos e os palhaços: o mestre do pensamento abstrato e o mestre da natureza abstrata. A liberdade garantida por suas assinaturas é a única na qual eu confiaria.”

Benjamin percebe que a figura do poeta, comercializada e comercializadora, foi completamente engolida pela terra árida do capital. O poeta não passa de “um pobre diabo consumidor”, ou seja, o poeta já era. E aí, projeta um ponto de insurgência: enfrentar a mercadoria banal que aparece como literatura com um levante da própria mercadoria contra si mesma e, ao mesmo tempo, mover algo entre imaginação, violação subterrânea e oscilante, encantamento e experiência mágica, escavar, recordar, trabalhos no subsolo, “Anaquivitzli = Ana = àνά; vi = vie; witz = igreja mexicana” e “não se caber de alegria” ou ainda “acordar a rir”. Mas, por todos os lados, o que se vê é uma penca exclusivista da ideia única – monocultura, ou seja, grana – para o poema, para a poesia, para a literatura em direção ao centro tal como ele é, preenchido e conformado. Cumpre-se, assim, muito mais um dever de memória, que é o de seguir à risca o que se toma como “os ritos do mercado literário”, do que a aposta arriscada, disponível e de esvaziamento para um desejo de memória.

A feira literária de Itabira foi patrocinada pela Vale. O violento e irresponsável modelo de mineração no Brasil patrocina uma feira literária na cidade onde nasceu Drummond, que negou por 3 vezes sentar numa cadeira da ABL para encher o próprio saco.

Não à toa, por exemplo, muito recentemente, a feira literária de Itabira foi patrocinada pela Vale, a mesma que em 05/11/2018 explodiu com seu rejeito a barragem de Fundão, junto com mais outras duas empresas, Samarco e BHP Billiton, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, Minas Gerais. Não demorou e em 2019 uma nova barragem da Vale se rompe, em Brumadinho. O violento e irresponsável modelo de mineração adotado no Brasil patrocina uma feira literária na cidade onde nasceu Drummond que, sabemos, negou feito um Quéfas elegante, por 3 vezes, sentar numa cadeira da ABL para encher o próprio saco; além de, muitas vezes, nos anos 1960 e 1970, com a força de um jovem perene e revolto, melancólico e vertical, denunciar em poemas e crônicas o que acontecia em Itabira por causa da mineração: “O Rio? É doce. / A Vale? Amarga. / Ai, antes fosse / Mais leve a carga. // […] // Quantas toneladas exportamos / De ferro? / Quantas lágrimas disfarçamos / Sem berro?” e “Sempre se chamou a indústria da mineração de indústria ladra porque ela tira e não põe, abre cavernas e não deixa raízes, devasta e emigra para outro ponto.” E pasme-se, se for o caso, o garoto propaganda da feira e da Vale foi o mais novo e controverso assentado numa cadeira dessas. E aí Silvina Rodrigues Lopes é precisa: “Quando um escritor aceita o lugar de símbolo, dispondo-se a ser homenageado pelo poder político, aceita uma forma de cooperação com o inimigo, colocando-se a si próprio contra a obra que escreveu, se ela existir.”

O garoto propaganda da feira e da Vale foi o mais novo assentado numa cadeira da ABL. Silvina Rodrigues Lopes é precisa: “Quando um escritor aceita o lugar de símbolo, dispondo-se a ser homenageado pelo poder político, aceita uma forma de cooperação com o inimigo, colocando-se a si próprio contra a obra que escreveu, se ela existir.”

Na outra ponta do parafuso, entre morar o vazio e guardar o céu no bolso, estamos diante da moeda falsa que Ricardo Corona, numa ponta de abismo, e Julia Raiz, noutra ponta, numa metaformose, provocam como impasse diante disso. Numa trajetória de dançarino sutil, Ricardo volta o corpo para uma dança com o horizonte da Terra, tanto como precipício matemático, a linha inventada para dominação, quanto como perspectiva de aventura para nada, a linha percebida e absurdamente reinventada pelo palhaço. Os livros morada do vazio, de tankas, e nuvens de bolso, haikus, que vêm numa caixinha delicada [Editora Iluminuras], são mínimos movimentos que podem ser lidos como um contraponto à figura envelhecida e pouco insolente do poeta. Responder a isso é deixar ativas as perguntas essenciais, nada de pactos ensimesmados ou fechados com o que ou quem não sabe pensar nem se tensiona ao pensamento, é tocar o poema com as linhas da espiral. Os prefácios dos livros trazem um incisivo trajeto conceitual da formas japonesas e, ao mesmo tempo, do percurso de incorporação ao seu trabalho, desde os tankas d’O pequeno tratado de brinquedos, do genial Wilson Bueno, até as diabruras de Paulo Leminski com o haiku, sem forçar a barra de uma tradição que não há, mas que em Curitiba, ao contrário do que se imagina, floresce. Coisas como “dia de sorte / morri o dia inteiro / sem pensar em morte” ou “alongamento / estique o ciático / até soltar pum!” que apresentam impasses de riso e flor do mal, até coisas como “fora de nós / nasce o mundo / ao ar livre” ou “outono indo embora / formigas em fila levam / as folhas que ficaram” que, de outro modo, tocam a vertigem da natureza larval que ainda não apreendemos, nem somos.

O impacto desses dois imensos esforços, os dois novos livros de Ricardo Corona e o livro de Julia Raiz, está no gesto impossível de tentar dançar não mais como poetas, nem com os poetas, mas com o palhaço e o matemático, pensamento radical e natureza vã, a abstração levada ao limite da existência.

 

O empenho de Julia é com uma prosa de leitora de vida e mundo e de construtora de uma biblioteca no corpo, ao mesmo tempo íntima e extima, um solavanco à figura de Ovídio, o romano, colecionador de imagens eróticas que gostava de falar apenas de si mesmo, no encantador As metamorfoses do Sr. Ovídio [Editora Arte & Letra]. Há na personagem desenhada, como uma garatuja, por Julia, uma válvula de bomba, “amar as coisas pequenas” e “as escalas erradas”. Depois, morador do Nordeste brasileiro, casa alugada, sem neve, com perucas, estômago sensível, louca do jardim, esgoto a céu aberto. É um inseto, luta para invadir-se como ser humano, viaja no espaço, no tempo, no corpo, exila-se, é gado, chamou-se Silano, amante de Julia, filha de Augusto, o imperador, o coração de Ovídio se engana, é procurado pela polícia, a polícia é todo mundo etc. As frases, períodos, parágrafos, fragmentos, capítulos imaginados por Julia para a personagem são, a cada sopapo, imagens impressionantes de força e expansão de sentido. Tudo é desmesura e descabimento, alucinação e história mal contada [outra vez Leminski, quando investe contra a prosa brasileira padronizada, completamente sem imaginação e fixada ao mercado com realismo precário]: “Os olhos melados do Sr. Ovídio, que como os olhos da abelha são oblíquos, são as únicas coisas que descreveram como gentis” e “É uma religião do mal: duas libélulas fazendo amor enquanto voam, duas libélulas grudadas enquanto ainda no ar”.

O impacto desses dois imensos esforços, de los jovenes, os dois novos livros de Ricardo Corona e o livro de Julia Raiz, está no gesto impossível de tentar dançar não mais como poetas, nem com os poetas, mas com o palhaço e o matemático, pensamento radical e natureza vã, a abstração levada ao limite da existência. E isso, principalmente, sem perder de vista que no cálculo estrutural “esforço é um estágio da experimentação em que o corpo se deformando começa a deformar, por sua vez, o corpo deformador”, ou seja, uma metamorfose, morada vazia da forma, nuvem de bolso, moedas falsas, literatura como imaginação rara contra a vida construída a mísero pó de ferro .

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