“não tenho pátria, tenho mátria
e quero frátria”
Caetano Veloso
Em 1965, Elsa Morante profere a conferência Pró ou contra a bomba atômica 3 vezes, em Turim, Milão e Roma, depois a publica na Europa Letteraria em abril daquele ano e, só em 1984, em Linha de sombra. Na conferência, traduzida e prefaciada no Brasil por Davi Pessoa e publicada em 2017 [Editora Ayiné], ela indica o “sistema de desintegração” em que vivemos diante das ameaças constantes do capital e a da era atômica; agora, isso se implicaria sobre a era tecnológica da IA afásica que relega todo e qualquer caráter entre carne e sangue ao jogo da ineficácia, ou seja, imprestável ao dinheiro. Ao mesmo tempo, Elsa chama atenção à tarefa política do escritor, da escritura, frente a esse tempo, e difere severamente as atribuições do poeta das do literato, porque este último sempre se volta à banalidade do “mercado editorial” e seus aparatos de conluio e glória, nada diferente das relações, por exemplo, entre Gabriele d’Annunzio e Benito Mussolini: favores e bajulação, ou seja, ampliação porosa do fascismo.
O que Elsa Morante projeta é pensar em que momento o papel da poesia ainda é ao contrário, e contrária, ao sistema expandido de desintegração em que vivemos. A resposta aberta que encontra, e que apresenta também como pergunta, é: NENHUM. E desenha, com extrema radicalidade, uma aposição entre Eros e Tânatos, outra vez, para nos lembrar que sem Eros, seducere, sobra-nos o ilusionismo do segundo que nos desvia, fatalmente, do real, nos deixando apenas a narcísica “evasão de si mesmos”: alienação e intimidade, regressão ínfima e angustiante, tráficos oficiais e mercado fúnebre, luta das imagens sem luta de classes etc. E sem perder de vista que o que gira e engendra uma teoria da imaginação contra esse “sucesso” glorioso é a realidade, daí que o exemplo que dá é Miklós Radnóti: poeta húngaro, muito jovem, morto no Lager, golpe na nuca, antes obrigado a cavar a própria cova, existência reduzida ao horror espectral, “um caderno, uma lanterna, tudo me foi tirado pelos guardas do campo, escrevo versos no escuro” e “agora a morte é uma flor de paciência”. Elsa diz, com força e boniteza, que Radnóti deixa “milagrosamente, a prova de que mesmo dentro daquela máquina perfeita de desintegração, que o aniquilava fisicamente, sua consciência real permanecia íntegra”.
Não há muita diferença entre a estrutura dos Lager e a estrutura da cidade moderna-contemporânea: a voracidade onívora e indômita do capital, além de bélica, é inesgotável e assassina; o real desaparece e o que escapa torna-se imediatamente a regra para uma existência mímica pactuada com tudo o que a ilusão do dinheiro oferece. É o contraponto do contraponto até o contraponto, infinitamente, mover-se entre um nem sim nem não, desejar o desejo, espaços e tempos desejantes, abertos, livres, caminhar, caminhar mais. A primeira parte do primeiro livro de poemas de Laís Romero, Mátria [Editora Paraquedas], vontade de frátria, filos, se chama exatamente desejo. E assim, tão logo, anota: “tateio a língua”, “tateio o lábio” e “o solo irrigado / o reverso, o sumo / verde-escuro / plantação”. Nascida em Teresina, no Piauí, em 1986, arrisca o poema com imagens de força e sem compaixão alguma à língua, aos jogos de azar da vida e do mundo e modulando um desafio à toda e qualquer lógica imposta entre cultura e memória fixas; algo muito prenhe a partir de “persistência”, “assisto” e “escrevo” como “metáfora abissal”.
Em seguida, a série de imagens é impressionante: “dança em dança”, fome de “comer suas peças pelo pescoço”, “melancolia vermelha / e pavor”, “correntes mais violentas”, “muitos metros de pele”, “coisa leve do impossível”, “digitais impressas no quadril”, “as mortas falam”, “tempo para o desejo / tempo para perder a hora”, “imensos blocos de concreto / armado / velozes blocos que não permitem / a ousadia da distração”, “há um veneno lento”, “o brilho do chicote encerado”, “são tantas as pessoas que podemos trair” etc. Laís avisa e, ao mesmo tempo, denuncia que este seu livro magro é imparável, tal como um pé esquerdo inquieto capaz de chutar canelas fixas e conformadas, e também uma convocação à construção de uma comunidade de mulheres tal como a imaginada por Emília Freitas, no sertão do Ceará, em 1889, para enfrentar com risco o ignoto patriarcal: mátria = frátria. Não à toa a segunda parte do livro é mátria, que dá título ao livro, e a terceira e última é pathos, mas num diferimento ao patético do gesto incapaz de dançar.
Andar à beira de abismos, dançar à beira de abismos, o alarme de incêndio que vem de Nietszche, aqui, se reconfigura no que se imprime no tempo, com o tempo, para o tempo, até porque se está diante de um trabalho que é, segundo ela mesma, um “feito irresponsável de mulher / uma poesia tímida e vadia / que se arrisca”, o poema que é escrito enquanto “queimamos pessoas / … / rasgamos a pele / ofertamos os filhos” e “lutamos em guerras / em cima de nomes / que lhes demos / por não sabermos / seus idiomas secretos?”. Salta, como uma origem, Ürsprung, o poema O meu país, quando escreve um contrário à farsa democrática; repare-se em alguns fragmentos: “atuar meu papel / pardo / nordestino e calado / de mulher // o país morre agonizando / em calçada”, “andar num ônibus lascado / quente e abafado”, “vivendo / de boa vontade / a caridade é o papel do / religioso engajado e a / igualdade é pacto”, “arder na saliva branca do ódio de / uma gente sem astúcia sem / delírio”, “arredia e valente / igual à ancestral / capturada para casar / e de sucessivos estupros / fazer brotar / o meu país”.
Laís Romero imprime, de fato, uma “busca pela coragem”, quando se entende que a coragem, ou uma coragem, é “há alguém a algo” e, numa transparência, “há algo a alguém”; está em Hölderlin, a palavra do poeta [Dichtermut] só é se uma coragem, um perigo, um ajuste de contas, rival do mundo etc. E o mais interessante e pertinente, ainda, nesse Mátria, é o tanto e o quanto a anotação de um EU e de um MEU nem são o desamparo da intimidade vazia nem muito menos a tentativa em tomar a posse de nada, mas sim uma disseminação ao que não é pertença, colapso de tudo, “fogo e valsa” e quando é o corpo que diz “a rata em marcha solitária”.
O trabalho de Laís se imprime no tempo e se junta, com a delicadeza da porrada – e que ainda pode nos liberar do esgotamento industrial de uma poesia piedosa e cristã feita no Brasil e publicada por grande editoras, sem vísceras, logo sem experiência, mera vivência íntima e pessoalizada, vidinha em família –, à poesia de Renata Flávia ou de Aline Prúcoli, de Júlia Studart ou de Annita Costa Malufe, de Marcela Maria Azevedo ou de Rita Isadora Pessoa, de Chantal Castelli ou de Veronica Stigger, de Joice Nunes ou de Sara Síntique, de Gabriela Perigo ou de Amora Pêra etc. É que estamos o tempo inteiro diante de uma guerra que não acaba nem acabará, Laís sabe, e diante de uma guerra “o inferno é”, ela avisa na última linha do livro.
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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.