Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. (Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)
“Remoto respiro esala in cielo”
Pier Paolo Pasolini
Um dos ensaios mais bonitos e propositivos de Giorgio Agamben é o que encerra o seu volume Profanações: Os seis minutos mais belos da história do cinema. Nele, Agamben retoma a pequena narrativa de Franz Kafka, Sancho Pança, sem indicá-la ou citá-la, quando Pança nos avisa que o Quixote é apenas um demônio de sua imaginação. O ensaio começa com a chegada de Pança a um cinema de uma pequena cidade do interior à procura de Dom Quixote que está sentado num canto, isolado, olhar grudado na tela. Sancho tem má vontade, senta ao lado de uma menina, pode ser Dulcineia, ela lhe oferece um picolé. No filme, cavaleiros armados, uma mulher em perigo, Dom Quixote se ergue, espada em punho, rasga a tela inteira. O corte engole as imagens, o público abandona a sala, as crianças encorajam fanaticamente Dom Quixote, a menina o fixa com reprovação. A pergunta final é: “o que podemos fazer com a imaginação?” Uma pequena conclusão é ou seria: sem imaginação “nada pode nos amar”.
Agamben defende a ideia de Walter Benjamin de que há uma ética da imaginação que nos olha e se dá na escuta, com a escuta, e que essa ética é uma doutrina da felicidade, logo, demoníaca.
Agamben defende a ideia de Walter Benjamin, também leitor de Kafka, de que há uma ética da imaginação que nos olha e se dá na escuta, com a escuta, e que essa ética é uma doutrina da felicidade, logo, demoníaca. Há um princípio da redenção que está em xeque aí, que vem, por sua vez, da poesia de Charles Baudelaire, da circunstância com a experiência do corpo lançado a rua e à guerra que vem dos dias. Logo, levar Baudelaire ao céu carregado por anjos com garras e asas afiadas é, no mínimo, uma ironia luciferina do pensador alemão – a de que o demônio, assim como qualquer deus ou quaisquer deuses são apenas meras invenções de nossa imaginação medrosa. A figuração do Amor nos dramas trágicos, por exemplo, anota Benjamin, é “como um demônio de lascívia com asas de morcego e garras”. É a dádiva, como um ethos, que nos apresentaria a possibilidade da felicidade e, como tal, há um jogo proposto por Benjamin que nessa leitura do anjo demoníaco, compõe um híbrido entre o monstro e a vertigem que, de todos os modos, é o contágio visceral das cosmologias antigas entre o masculino e o feminino: Agesilaus Santander, dádiva e dívida, juízo e benção, o eterno presente e a felicidade etc.
Ora, perseguindo esses “6 minutos” da história do cinema não como filme, mas sim como κίνημα, que inclui a sala de cinema, como nos lembra Herberto Helder, ou seja, experiência e circunstância do corpo no mundo e com a vida em risco, torna-se quase primário perceber que o real só é quando construído, incessante e contingente porque todos os dias imaginado, ou seja, a história entre os que a fazem e os que a sofrem. Agora, repare-se: A chance do corte [2018, Cozinha Experimental] e O corpo informa [2021, 7Letras] são os dois livros de poemas de Nina Zur. O som das coisas se descolando [2017, Aves de água] e Desde o medo já é tarde [2018, 7Letras] são os dois últimos livros de poemas de Casé Lontra Marques.
Nina estuda e pesquisa teoria e filosofia do direito, na UERJ, um giro em torno da violência letal do estado do Rio de Janeiro, onde nasceu, contra meninos de comunidades que são executados sumariamente e o que isso provoca como movimento político entre mães e familiares em direção a um falseado sistema de justiça. Casé é servidor público do estado do Espírito Santo, tem formação em Letras, esticou formalmente os estudos até o mestrado, na UFES, nasceu em Volta Redonda, perto do aço, hoje vive em Vitória. Publicou alguns livros, como o raríssimo e forte A densidade do céu contra a demolição [Confraria do Vento, 2009] e está, há um tempo, defendendo uma ideia de que o poema ainda pode ser uma “cólera, roendo / as ferragens / encontradas no leito de uma nova luta”.
O mais bonito, como ética – de um modo mais perto da coragem e da fome extrema que são, ao mesmo tempo próprias e inespecíficas do feminino, no trabalho de Nina Zur, e de alguma maneira mais vinculada ao usos do que na linguagem é, ao mesmo tempo, a música da espiral e o que nos ameaça com terror no trabalho esmerado e doce de Casé Lontra –, é a expansão propositiva de que entre o poema e a figura da pessoa que o escreve há ou haveria uma exigência e uma intervenção na vida, com a vida, no mundo, com o mundo, para o mundo. Tanto os poemas de Nina quanto os de Casé têm a ver com a dilação do não-aparentado e com a percepção daquilo que Carlo Ginzburg articula aos dias de agora como o único real possível: o fato de que “vivemos num mundo em que os Estados ameaçam com o terror, exercitam-no e às vezes o sofrem. É o mundo dos que se apoderam das armas, veneráveis e potentes, da religião, e de quem empunha a religião como arma. […] É o mundo semelhante ao pensado e investigado por Hobbes.” O que se tem aí é um Leviatã, tal como a deriva imaginada [repare-se, sempre imaginada], por Herman Melville ou Assis Brasil. O lance é: estamos diante de um pacto que transforma uma multidão amorfa, plena de indivíduos egocentrados e dominados pelo dinheiro, num frágil e disfarçado corpo político; e de que o Estado surge de um pacto nascido do medo.
Nina escreve com força contra o demônio do real, porque parece saber que se há um ponto de insurgência para o impossível ainda é a imaginação que, se por um lado, o inventa, por outro lado, também, pode ou poderia reinventá-lo.
Nina escreve com força contra esse demônio do real, porque parece saber que se há um ponto de insurgência para o impossível ainda é a imaginação que, se por um lado, o inventa, por outro lado, também, pode ou poderia reinventá-lo. Benjamin chamou a isso de “caráter destrutivo”: “como destruir a destruição”. Se a linguagem é uma armadilha laceradora que, por causa do medo que somos, constrói deus, diabo, deuses, demônios, entidades, ladainhas de salvação, redenção e futuro, vidas depois da morte, Nina inscreve um sulco às avessas sobre a terra: “botar o coração fora do corpo / (não há reconciliação possível / entre nós)”, “[ah, puta solidão nossa / agarrada como o bafo do álcool / como o cheiro da merda]”, “uma mulher que rasteja engole / a cabeça entre os pés / uma cobra que não sabe o que é / não sabe / […] / uma cobra uma acrobata”, “talvez seja melhor trepar sem falar / de amor / sem contar os meses / e a apelação interposta / será / uma página em branco” e, principalmente, “o feminino eu não / o feminino no meu corpo não / o feminino e / agora talvez então / passem vigias a fome mas / nada caiba tudo passe” ou “uma mulher sobre o bueiro” e “frear o trem com o meu próprio corpo / ser o trem / o vão entre o trem e a plataforma / ser a plataforma / levantar ilesa”. Isso tudo é corte e corpo, “faca só lâmina” e milagre, a poesia de Nina toca o espaço primitivo, uma espécie de mundo pré-linguagem, uma festa que é dança, entranha, acidente, deserto: “o milagre é o corpo / é estar vivo ainda / é sentir tesão nesse / deserto.”
O jogo de Casé tem a ver com os conceitos-limite: medo e som. O som das coisas, o medo de tudo. Um característica de princípio sem nenhuma lei de identidade porque apresenta o gesto do quanto um poema é inepto, não se vale a nada.
O que advém da poesia de Nina Zur até a de Casé Lontra, como uma renga, se demora na imagens que, agora, ele inscreve: a da “ferida viva” e de que a “palavra é parte / do que um corpo será”. O jogo de Casé tem a ver com os conceitos-limite: medo e som. O som das coisas, o medo de tudo. Um característica de princípio sem nenhuma lei de identidade porque apresenta o gesto do quanto um poema é inepto, não se vale a nada e, a cada segundo de uma vida circular, serve-se apenas como eficácia e método de exposição. O contraponto é a vida, a última unidade do medo; tanto que nos poemas que escreve a imaginação interroga exatamente os processos laudatórios que ainda se lista como criação lírica, visão de mundo do autor, esferologia particular. Sobra, ao contrário, a cada linha, a tarefa política de que a condição do poema não é nem forma, nem matéria, mas uma singularidade vazia. A cada página um pequeno fragmento, bolinha de chumbo, ao mesmo tempo fechado e com peso, gravidade e graça, coisas como “o medo segura suas fissuras”, “Enquanto ainda respiram / – isto é – enquanto / incessantemente ressuscitam, / as ondas debaixo / da pele dissolvem não poucos / nem parcos / limites”, “a fome / – não só aqui – / é farta / (e apenas / aumenta).”, “pequenos cortes / por toda a boca”, “luta premente, porém lenta: / sobreviver / fora da subserviência”, “chega a enchente / vestindo a voz / com êxodos / mais exigentes” e “palavras passam com o corpo”.
É Escoto Erígena, século 9, quem desenha a questão: “Com efeito, onde está a vida quando o corpo se dissolve senão naquele próprio corpo dissolvido?” Depois, tenta voltar ao ponto da questão ao dizer que qualquer espécie que adere a um corpo é viva, que toda criatura é por si mesma vida ou participa da vida e é, de algum modo, viva”. Daí que, esticando o apontamento, pode fácil nos levar de volta à poesia de Nina Zur, de uma maneira, ou de Casé Lontra Marques, de outra, quando afirma que “a própria dissolução, que chamamos morte do corpo, é assim para nossos sentidos e para a matéria, mas não para a própria natureza, que permanece inseparável em si e é sempre inteira no mesmo instante, e não se divide segundo os tempos e os espaços.”
Muito da poesia brasileira apenas partilha sensibilidades familiares psicoanalíticas e passa ao largo da dimensão do interdito. Se expõe sem resto, é redonda e total, autofágica e imediata, civilizada e civilizatória, mercadoria sem graça.
Muito da poesia brasileira apenas partilha sensibilidades familiares psicoanalíticas e passa ao largo da dimensão do interdito, esta emergência, que uma partilha da terra e do incomum exige, isto é que é a política, o político. Se expõe sem resto, é redonda e total, autofágica e imediata, civilizada e civilizatória, mercadoria sem graça. Não sabe a boca, não sabe a areia selvagem, não sabe a água ausente da boca, gosta de berço esplêndido e mesa farta, por isso mora praticamente apenas diante do possível. Daí que Torquato Neto, o dissoluto, que achava Godard o melhor dos poetas, dissesse que se um homem e um boi num matadouro, o que gritar é o homem, mesmo que seja o boi. Torquato imaginava o impossível. Mas há sempre uma agenda marcada, escreva-se sobre isso ou aquilo e a exposição do possível está pronta; nada mais conservador e reacionário. Por isso, contra a circularidade do medo, a linha espiralada da imaginação revolta para o impossível: algo do álcool que berra da poesia de Nina que, por exemplo, respira a leitura dos cortes do Sermão de nossa senhora do Ó, Padre Vieira; ou do nervo retesado da poesia de Casé que, noutro sentido, sufoca o corpo em “alta carga virótica”. É o levante revoltoso de desejar o desejo que revira o poema contra o delírio do real, este demônio que não cessa de acontecer: “abrir garrafas de vinho com os dentes”, “uma vontade bestial de desistir”, “danço uma dança coletiva”, “Ceder, não cedo”, “Nada que respira perdura em paz”, “Um gozo tem muitos gumes”.
Torquato Neto imaginava o impossível. Mas há sempre uma agenda marcada, escreva-se sobre isso ou aquilo; nada mais conservador e reacionário. Por isso, contra a circularidade do medo, a linha espiralada da imaginação: algo do álcool que berra da poesia de Nina; ou do nervo retesado da poesia de Casé.
***
Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.