Wellington Soares

Coisas e outras

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Ainda Estou Aqui: o livro e o filme

O LIVRO – Falar de pessoas queridas não é tarefa das mais fáceis, ainda mais envolvendo os pais, sobretudo, quando esses deixam histórias que marcam indelevelmente a vida dos filhos: o alheamento da mãe pelo Alzheimer e o assassinato do pai pela ditadura militar. Entremear tais assuntos dolorosos, através da memória, foi o que levou Marcelo Rubens Paiva a escrever Ainda estou aqui, relato que emociona ao nos levar a refletir sobre a fragilidade da condição humana. Depois de Feliz ano velho, seu livro mais celebrado, este surge também com a magia de tocar fundo a alma do leitor – “Então, fico pensando, será que ela sabe que lancei um livro, cujo título é essa frase? É muito misterioso esse processo da ausência. E meu pai também, desaparecido; eu, escritor, que quase morri no acidente com 20 anos de idade, mas ainda estou aqui para falar de coisas que eu já tinha contado em Feliz ano velho, mas não com tantos detalhes.”

Eunice Paiva é descrita sem mistificações pelo filho, ora uma mulher inteligente e corajosa, ora uma mãe incapaz de expressar seu afeto por meio de afagos. A italianinha, como fora apelidada na escola, desde cedo, gostou bastante de ler, a ponto de preferir livros à comida, tendo como autores prediletos, dentre outros, Dostoiévski e Érico Veríssimo. Falava fluentemente francês e inglês. Aos 18 anos, foi aprovada em primeiro lugar na faculdade de Letras do Mackenzie, repetindo a mesma classificação aos 42 anos, já viúva, ao entrar para o curso de Direito, indo atuar em defesa dos indígenas. Sobre a mãe, a quem Marcelo ama muito, as referências, mesmo ela ainda viva, são feitas sempre no passado por causa do Alzheimer que a levou ao completo esquecimento: “Minha mãe tem uma saúde invejável até. Nunca fica ou ficou doente. Era magra. Era advogada atuante. Lia sem parar. Fazia tudo a pé. Andava de metrô. Nadava no mar de Búzios. No entanto…”.

Eunice Paiva é descrita sem mistificações pelo filho, ora uma mulher inteligente e corajosa, ora uma mãe incapaz de expressar seu afeto por meio de afagos.

Quanto ao pai, o deputado federal cassado Rubens Paiva, torturado e morto por agentes da ditadura, doeu à beça, segundo o autor, relembrar o fatídico dia 20 de janeiro de 1971 com militares armados, em trajes civis, levando seu pai e sumindo com ele para sempre. Duas mentiras, ditas pelos meganhas, que sangram a família ainda hoje: o retorno após o depoimento e o sequestro do pai por “terroristas”. O lamento vem, por incrível que pareça, sem ódio nem sentimento de revanche: “Imaginar este sujeito boa-praça, um dos homens mais simpáticos e risonhos que muitos conheceram, aos quarenta e um anos, nu, apanhando até a morte… É a peste, é a peste, Augustin. Dizem que ele pedia água a todo momento. No final, banhado em sangue, repetia apenas o nome. Por horas. Rubens Paiva. Rubens Paiva. Ru-bens Pai-va, Ru…Pai. Até morrer.”

Uma das passagens mais bonitas do livro, talvez um refrigério nesses histórias tão tristes, é o paralelo que Marcelo faz entre o arquivo de memórias construídas pelo seu filho desde o nascimento, ocorrido em fevereiro de 2014, e o distanciamento de quase tudo da mãe, guerreira capaz de enfrentar com destemor a opressão, mas vencida por uma doença absurda dos tempos modernos – “Doença que não apenas afeta a memória, mas embaralha emoções, enaltece desagrados que não existem, muda o humor até do mais calculista dos matemáticos”. O título do livro, lançado pela Alfaguara, remete à frase mais usada por Eunice Paiva, apelo dramático de alguém que não aceita ser escanteada do espetáculo da vida. No final do texto, vem a resposta comovente e sofrida do filho: “Sim, você está aqui, ainda está aqui. (…) Enquanto a morte do meu pai não tem fim.”

O FILME – Estupendo, maravilhoso, lindo, sensível, triste, notável, arretado, crítico, exuberante, político, inquietante, divino, poético, tenso, impactante, dramático, admirável, fantástico, emocionante, assombroso, esplêndido, excelso, fascinante, encantador, legal, impressionante, massa, bacana, excelente, belo, excepcional, ótimo, bravo, resistente, memorável, brilhante, fenomenal, inesquecível, perturbador, supimpa, extraordinário, magnífico, corajoso, libertador, eletrizante, surpreendente, fenomenal, fabuloso…

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Wellington Soares é escritor, ativista cultural e professor de literatura.

 

 

 

AUSPICIOSA ESTREIA POÉTICA

Há quem diga que escrever poesia é um ato de rebeldia, pois vai de encontro, entre outros aspectos, ao senso comum de buscar utilidade em todas as coisas. Pode até não servir pra nada, mas que faz um bem danado aos que costumam saboreá-la, ninguém duvida. Sem falar, ainda, que implica, da parte do autor, o mais visceral compromisso com o sentimento de liberdade.

“Ontologia do ser”, livro de estreia do J. L. Rocha do Nascimento no gênero poético.

Talvez alguém indague sobre a razão desse preâmbulo meio torto, mas ele surgiu, acredite ou não, quando li Ontologia do ser, obra de estreia do J. L. Rocha do Nascimento no gênero poético. E a impressão que deixou, confesso, foi das melhores. A começar pela delicadeza do formato, tipo livro de bolso, contendo orelhas e uma boa diagramação. Depois, pela quantidade de textos, 40 ao todo, entre curtos e longos, que lemos de uma degustada só.

Quanto à temática, o livro é perpassado, como o próprio título sugere, pelo questionamento do existir e seus inevitáveis dilemas: vida, mundo, angústia, alegria, sofrimento, amor, infância, memória e incertezas. Nos versos de “Descrição”, poema 18, a esfinge (leia-se o autor) não receia apresentar-se aos leitores: “Este sou eu/ E caibo no poema/ Que tem a exata medida do meu ser”.

O tempo e suas dimensões é outro assunto, dado o caráter da obra, bastante explorado nos textos, inclusive com o autor recorrendo a filósofos e pensadores que trataram de matéria tão complexa – a do deus Chronos. Heráclito e Parmênides, por exemplo, são citados frequentemente. Para J. L. Rocha, o ser-no-mundo só faz sentido quando entrelaçado pela memória e com um projeto existencial definido.

Escritor oeirense J. L. Rocha do Nascimento: “Eu e os vários de mim”.

“Manifesto” é o texto que abre o instigante livro de 99 páginas, lançado pela Penalux, editora paulista, no final de 2024. A escolha não foi à toa, como deve imaginar o leitor desatento, mas o resgate de uma luta política, reafirmada 40 anos depois, em defesa da liberdade e da democracia ameaçadas pelos saudosos da ditadura civil-militar – “precisamos libertar nossas ruas/ das marcas violentas/ dos pesados coturnos”.

As marcas da sua contística, que o tornam escritor dos mais importantes da literatura piauiense, são claramente perceptíveis em Ontologia do ser. Entre elas, destacam-se a preocupação estética, o cuidado no tratamento dado à linguagem, o diálogo com os textos clássicos e, sobretudo, a problematização dos conflitos existenciais. Daí a explicação para o rebelde escritor oeirense, J. L. Rocha do Nascimento, abrir o livro, sem medo de desnudar-se, com “Eu e os vários de mim”, poema que nos desafia a conhecê-lo – caso seja possível – nas suas múltiplas facetas.

Foi o que fiz e que espero, sinceramente, que todos os amantes da boa poesia o façam também.

 

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Wellington Soares é escritor, ativista cultural e professor de literatura.

“Poesia é o que sou”

Se tem uma pessoa, entre as que conheci, que merece ser chamado de poeta é o Elio Ferreira. No sentido literal, deixemos claro. Daquelas que respiravam poesia 24 horas por dia. Até quando dormia, tenho pra mim, ele tecia versos, labutava com palavras, despertava – no meio da madrugada – pra escrever seus belos poemas.

Infelizmente a indesejada das gentes, como diria Bandeira, o levou em abril deste ano, aos 68 anos de idade, vítima de câncer. Era uma quinta-feira à noitinha, dia 11, quando fomos impactados com essa triste notícia. Familiares, amigos, alunos e parceiros de viagens literárias sentimos o baque, sempre dolorido, de perder uma referência afetiva e cultural tão importante.

As homenagens a Elio não tardaram a acontecer, sobretudo, nas feiras de livros espalhadas pelo estado: Salipi, Flibg, Felipi, entre outras. Nada mais justo e merecido, uma vez que a vida do nosso poeta florianense se confunde com a leitura e a publicação de livros. Sem falar ainda, bom destacar, com o incentivar ao hábito da leitura entre os jovens.

Na Feira da Literatura Piauiense, realizada no início de setembro, optamos em produzir um documentário para homenageá-lo. Curto e simples, mas feito com amor e repleto de saudades. Para título, escolhemos uma frase, dita por ele, que o simboliza muito bem: “Poesia é o que sou”.

Como nada se faz sozinho, fomos atrás de quem podia nos ajudar nessa empreitada: Feliciano Bezerra (amigo e estudioso da obra do Elio), Egbara Ferreira (filha), Alcides Júnior (direção de arte), Antônio Andrade (imagens e edição) e Thiago E (amigo e leitor).

Pela dimensão nacional do poeta, recorri a Marcelino Freire, idealizador da Balada Literária de São Paulo e admirador da sua obra contundente e visceral. Por meio dele, chegaram depoimentos de Daniel Minchoni, Sérgio Vaz, Wilson Freire e Nelson Maca, que não só conheceram Elio Ferreira como presenciaram, por vários cantos do país, performances poéticas inesquecíveis deste poeta negro piauiense.

Assista ao doc. disponível abaixo:

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Uma autobiografia diferenciada

Uma das leituras que tirou meu sono nesses últimos dias, literalmente, foi Eu me lembro, livro-memória do consagrado ator e diretor Selton Mello. Uma autobiografia diferenciada de tudo que li até hoje. Em vez de ficar relatando sua história de vida sozinho, preferiu convidar 40 amigos a enviarem perguntas para ele. Sem restrição de tema nem combinação prévia.
O livro tem por objetivo celebrar seus 50 anos de vida e 40 anos de carreira artística. Uma trajetória de grande sucesso, portanto, marcada por personagens icônicos que fazem parte de nosso imaginário. A exemplos de Xicó, do filme O auto da compadecida, e Abelardo da novela Força de um desejo.
Entre os convidados, despontam profissionais de áreas distintas, na grande maioria, ligados às artes, principalmente à dramaturgia – Fernanda Montenegro, Rodrigo Santoro, Zezé Motta, Matheus Nachtergaele, Marjorie Estiano, Camila Pitanga, Dira Paes, além de Jefferson Tenório, Ana Paula Maia e Zuenir Ventura, escritores, Raí, ex-jogador de futebol, Pedro Bial, jornalista, e Moacyr Franco, cantor e comediante. Com leveza e toques de humor, Selton não deixou nenhuma indagação sem a devida resposta.
De forma comovente, relembra passagens da infância no interior de Minas Gerais, o desejo de ser ator, nascido ainda na meninice, a mudança para a Cidade Maravilhosa, a fim de abraçar a carreira artística, o emprego de dublador, os inúmeros trabalhos em novelas e filmes, a relação afetiva com os pais e irmão, sobretudo, com a mãe, dona Selva, portadora de Alzheimer.
Se já o admirava como ator e diretor, agora passei a admirá-lo enquanto ser humano. Uma figura iluminada, talentosa e inspiradora na produção de arte, para quem “a realidade não basta, eu preciso de componentes mais mágicos. Assim tenho caminhado: vivendo do trabalho e sobrevivendo dos sonhos”.
Além do livro, nada melhor que viajar também nos filmes de sua autoria, verdadeiras obras-primas do cinema brasileiro: Feliz natal (2008), O palhaço (2011) e O filme da minha vida (2017), bem como noutros em que simplesmente atua: Lisbela e o prisioneiro (2003), Lavoura arcaica (2001), O cheiro do ralo (2007).
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Wellington Soares é professor e escritor.

Elio Ferreira: “Poesia é o que sou, o que sinto, o que penso e vivo no mundo”

ENTREVISTA / Por Wellington Soares, professor e escritor

 

 

Muitas são as pessoas que escrevem poesia, mas poucas as que encarnam, literalmente, o significado do termo. Uma dessas é, sem dúvida, o Élio Ferreira, florianense da gema que, aos oito anos, já improvisava os primeiros versos. Mas tudo começou, faz questão de frisar, ao ouvir as fábulas orais de matriz africana e indígena, bem como as narrativas de experiências vividas, contadas pelos pais, familiares e amigos.

Depois vieram as leituras, na adolescência, de grandes nomes da literatura nacional. Entre eles, Machado de Assis, José de Alencar, Gonçalves Dias, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Foi essa combinação de “escrevivências” e gosto pelos livros que o arrastou, de forma irremediável, aos braços sedutores da poesia – a ser o que é, o que sente, o que pensa e, sobretudo, a encontrar sentido em viver.

São muitas as imagens que guardo na memória dessa relação, íntima e amorosa, do Elio com a poesia declamada ou lida, dentro e fora do estado. Primeiro, ele recitando seus textos, como autêntico poeta-performer, em tudo que é canto. Praças, escolas, universidades, rodoviárias e Palácio do Karnark, sede do governo do Piauí. Para tanto, pintava a cara de branco, usava um blusão colorido (ou capa preta) e, o mais importante, empunhava um pequeno megafone, por meio do qual soltava o verbo e petardos de versos.

Ao homenageá-lo em 2019, na Balada Literária/PI, tive a oportunidade de conhecê-lo melhor e de perto. Estivemos juntos em Floriano (sua terra natal), Oeiras, Parnaíba, Teresina e São Paulo, onde também é conhecido e celebrado. Foram dias compartilhando paixões comuns sobre livros, música, cinema, educação, cultura e sonhos de um Brasil realmente democrático e solidário. Nessas travessias, deparei-me com, além de poeta extraordinário, uma figuraça humana sem igual.

Como bom papeador, aqui Elio Ferreira fala de quase tudo, sobretudo, das obras lançadas – Poemartelos, O contra-lei, América negra, entre outras –, das autoras e dos autores que ama, das histórias ouvidas dos pais e tias, da formação acadêmica e, humildemente, dá “conselhos” aos jovens que estão pensando em trilhar esse desafiador caminho de ser escritor. Antes, porém, avisa: “O poeta negro é um estado permanente de amor e indignação, um cavalo de Ogum em compromisso com a História e a vida das pessoas negras”.

 

Conceição Evaristo diz que o importante não é ser o primeiro ou primeira, o importante é abrir caminhos. Sua literatura reflete essa ideia também?

Não tenho como afirmar, categoricamente, em que circunstâncias Conceição Evaristo fez essa afirmação. Mas sei o que isso significa para nós, escritores negros e escritoras negras. De certo, minha poesia abriu caminhos para mim mesmo e, creio que, de algum modo, para a consciência da negritude dos jovens leitores e poetas negros. Poesia é o que sou, o que sinto, o que penso e vivo no mundo. Não sei o que seria da humanidade sem a poesia e os poetas. Isso pode parecer para muitos que estou blefando ou perdi a razão. Poesia é fogo no monturo. Poesia é incêndio silencioso no oleoduto. Poesia é água de beber para matar a sede da gente. Temos o anseio inadiável de contar as experiências de dor e esperança pessoal e coletiva das pessoas negras. Vivenciamos o presente e o passado para restabelecer a tradição de cantar/contar como a performance dos griots/diéli, a herança oral dos nossos ancestrais contadores de história oriundos da África, transmitida de geração em geração pelos nossos pais e avós. O significado de abrir caminhos também diz respeito à recusa do preconceito, do racismo estrutural, da invisibilidade social, da crueldade, do genocídio brutal e costumaz contra as crianças e os jovens negros e pobres no Brasil. O que é de fato abrir caminhos? Reporto-me aqui à sabedoria dos provérbios africanos, em particular a esses versos bambaras: “O que eu sei/eu aprendi de alguém/o que se diz hoje/desde sempre existiu”. Nada me faz crer, se, em alguma ocasião, fui “o primeiro”, tampouco tenho a dimensão exata do que seja “abrir caminhos”. Improvisei os primeiros versos aos oito anos. Mas só escrevi o primeiro aos dezessete. Antes disso, não pensava em escrever livros. Eu queria ser jogador de futebol. Mas a poesia me acessou. Se “abri caminhos”, foi como protagonista de determinadas intervenções literárias, culturais, educacionais de caráter étnico-racial. O poeta negro é um estado permanente de amor e indignação, um cavalo de Ogum em compromisso com a História e a vida das pessoas negras. Um povo é respeitado quando sua história é contada por seus poetas. Não foi por acaso, que o Movimento Negro Unificado – MNU, os Cadernos Negros e demais grupos literários e sociais afro-brasileiros foram avante até resultar na Lei 10.639/2003, assinada pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tornando obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola de Ensino Básico do Brasil. Anos posteriores à abertura política de 1978, deu-se o início ao ingresso de autores/as negras no MNU-Movimento Negro Unificado, Negrícia etc., incluo-me entre os ingressos no MNU/Brasília, em 1984. Essa experiência me levou a tomar consciência do papel social como autor negro, embora, antes disso, os versos do Canto sem viola (1982/1983) já contassem minha história, dos meus pais, tias, avós negros e amigos da rua do Ouro, hoje rua Fernando Marques, em Floriano (PI). O fato é que os autores negros tomaram mais consciência e o compromisso de interferir na realidade a favor da população negra, narrando e cantando suas “escrevivências”, termo postulado por Conceição Evaristo para significar as experiências pessoais e coletivas vivenciadas por autoras e autores negros, o que difere em vários aspectos da autobiografia dos autores brancos.

Poesia é o que sou, o que sinto, o que penso e vivo no mundo. Não sei o que seria da humanidade sem a poesia e os poetas

O que você lembra dos primeiros passos na leitura e na escrita?

Falar de escrita sem antes me reportar à tradição oral, como as histórias contadas sob a luz do luar da minha antiga rua do Ouro, hoje rua Fernando Marques, na periferia de Floriano, seria um grande equívoco da minha parte. Fui iniciado pelos contadores/as de contos e fábulas orais de matriz africana e indígena, as narrativas de experiências vividas, contadas por pessoas mais velhas, como meus pais, tias e amigos. Além das cantigas de roda, de ninar, de bumba meu boi, macumba, reisado, Casimiro Coco, repentes, versos de cordel, canções do rádio, filmes sobre a mitologia grega e romana, dramas circenses, entre outros, foram esses os primeiros contatos com a cultura literária. Quando menino, enquanto puxava o fole para esquentar o ferro, na oficina de ferreiro do meu pai, ele me contou que “os americanos” tinham ido à Lua e, desde então, haviam estabelecido relações comerciais de compra e venda com os habitantes da Lua. Isso antes de o primeiro homem pisar na Lua. Mas foi, de fato, na REVISTA NORDESTE que tive os primeiros contatos com a poesia de autores letrados. Sou órfão de mãe desde os 6 anos. Meu pai era um amante dos livros, embora tenha cursado apenas o terceiro ano primário. Lembro da pequena quantidade de livros na estante da minha casa, como a Bíblia Sagrada, ilustrada; a Coleção da Gramática Ilustrada da Língua Portuguesa, de Alpheu Tersariol; o romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Dos 17 aos 20 anos, ainda em Floriano, li Machado de Assis, José de Alencar, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Gonçalves Dias, Cecília Meireles, João de Deus, cordéis, gibis e livros de faroeste. No mesmo período, comecei a recitar os meus poemas nos eventos da escola e publicá-los no Jornal Tribuna do Sul, em Floriano. De 1976 a 1979, cursei Letras no CEUB/Brasília. Nesse período, estreei no teatro como ator no papel de Severino, personagem principal de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Tornei-me um leitor voraz de poesia, romance, conto e teatro. Li de Homero a Pound, passando por Sousândrade, concretistas, tropicalistas e Beat Generation, sem falar de Solano Trindade e Luiz Gama, bem como dos meus autores contemporâneos, os chamados “poetas marginais” dos anos 1980 (denominação que repudio). Em 1983, publiquei os livros Canto sem viola e Poemas de Nordeste. Junto com os poetas jovens Alex Fraga, Altair, Gutemberg, Guimarães Rocha, entre outros, criamos o Movimento dos Escritores Independentes de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, quando oxigenamos a literatura daquela cidade. Organizamos a Antologia dos poetas independentes do MS. Realizamos a Primeira Noite de Poesia, no Paço Municipal de Campo Grande/MS, com show musical e a presença de um grande público. Fizemos uma grande Caminhada de Poesias em homenagem ao poeta Manoel de Barros, de quem me tornei amigo e tomei lições de poesia. Tornei-me ativista dos movimentos de preservação do Pantanal contra a matança indiscriminada de jacarés e a poluição dos rios. Escrevi poemas de denúncia contra a morte do líder indígena Marçal de Souza (Tupã Y), motivado pela grilagem de terra feita pelos ruralistas do agronegócio.

O rio Parnaíba é tema recorrente em quase todos os poetas piauienses. De que maneira ele aparece em sua obra?

“O que fizeram das águas do rio Piauí,/O que fizeram de mim,/Nesta noite de alecrim” (Canto sem viola, 1982). Floriano é situada num estuário. Ali as águas de 26 riachos desembocam direto ou indiretamente no rio Parnaíba. O meu imaginário infantil emergiu das águas dos riachos da minha cidade, os quais fazem parte das experiências e descobertas da infância, como o riacho do Cacimbão, que passava detrás do fundo do quintal da minha casa, os riachos Irapuá, Meladão, Veredinha, entre outros, onde aprendi a nadar. Já os riachos da Onça e do Gato entram no poema pelas imagens do leito poluído e o mau cheiro dos esgotos, lançados pelos sobrados e hospitais do centro da cidade: “riacho da onça grunia/as vísceras do sobrado” (Poemartelos, 1986). Nossa casa ficava no alto da cidade, no morro, à distância de 1,5km do rio Parnaíba. O meu pai proibiu, terminantemente, a mim e ao meu irmão, Vitorino, que tomássemos banho no rio, por razão dos constantes afogamentos de crianças e adolescentes. Minha experiência corporal e afetiva com o Parnaíba dá-se, em particular, entre 17 e 18 anos, quando, aos domingos, ou à noite, pescava para completar as refeições de algum dia da semana. Anos mais tarde, quando retornei de Brasília, o rio Parnaíba ocupou, de vez, o meu imaginário poético. Mas os tempos eram outros, de espaço de diversão e deleite, pertencimento identitário, motivo de preocupação pelo assoreamento do seu leito. No entanto, o Canto sem viola, meu livro de estreia, narra episódio de aparecimento do Cabeça-de-cuia no rio Parnaíba. No Poemartelos, o rio é testemunha e cúmplice da travessia de casais enamorados que fogem para se casarem na outra margem do rio, na cidade do Barão de Grajaú (MA), sob a anuência do Padre José. O rio é também lugar de infortúnio, onde, especialmente, mulheres pobres e negras penitenciam na miséria das casas de prostituição. Em O contra-lei, o rio é cantado em dimensões lírica e metafísica: “à margem da imagem/é o rio correndo dentro de mim/atravesso a cidade,/onde não sou mais/nem o começo,/nem o fim”.

Que os jovens poetas negros contem sua própria história. Escrevam a partir das experiências vivenciadas por eles, elas e das experiências coletivas, protagonizadas pelo sujeito negro como seus pais, tias, irmãos.

Os autores negros têm merecido, a exemplo de Carolina Maria de Jesus e Lima Barreto, o reconhecimento necessário no Brasil?

Antes, quero me reportar aos CADERNOS NEGROS, o mais importante e longevo periódico da literatura afro-brasileira contemporânea, fundado em 1978. Desde então, tem sido publicado todos os anos, ininterruptamente. Quanto a Carolina Maria de Jesus e Lima Barreto, esses autores não têm ainda o merecido reconhecimento. Quarto de despejo (1960) foi o maior sucesso da época, com a venda de 80 mil exemplares durante um pequeno espaço de tempo, além de sua tradução em 13 línguas diferentes. Apesar do sucesso, no final de sua vida, Carolina tornou a ficar muito pobre e a catar papel para sobreviver. O que, certamente, não ocorreria, caso fosse branca, pois, sem dúvida, lhe teriam ofertado uma coluna literária em jornais impressos famosos da época. Algo semelhante ocorrera a Lima Barreto, que morreu muito pobre, vitimado pelo racismo e pela falta de oportunidade, inegavelmente, a causa principal de sua depressão e do mergulho no alcoolismo. Lima é lembrado pela crítica oficial apenas como autor Pré-Modernista, negligenciando-se o talento do romancista, contista e cronista perspicaz da vida urbana da sociedade carioca dos primeiros anos do século XX. Cruz e Souza também não foi poupado do racismo à brasileira, ao ser impedido de assumir o posto de Juiz, por ser negro, na sua cidade natal. As grandes editoras nacionais, excetuando-se algum caso especial, ainda têm reservas no que tange à publicação da obra de autores/as negras. Contudo, nos últimos dez anos, observa-se o reconhecimento de obras da literatura negra no Brasil, motivado, especialmente, pela crítica literária afrodescendente procedente dos estudos investigativos dos núcleos de pesquisa afro e programas de pós-graduação de várias universidades brasileiras. Autores negros de sucesso em sua época, posteriormente silenciados, como os citados acima, e novos nomes, como Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Itamar Vieira, Jefferson Tenório, entre outros, têm se projetado nacional e internacionalmente para um número considerável de leitores. Contudo, o reconhecimento dos autores e autoras negras brasileiras continua sendo um ideal a ser conquistado.

Qual dos seus livros expressa, de forma satisfatória, as inquietações políticas, sociais e estéticas que permeiam sua existência?

A parte I do Canto sem viola já anuncia alguns temas, cantares e estéticas da minha poesia atual. Mas foi o Poemartelos a explosão inicial notabilizada pelas inquietações do projeto político, social e estético da minha experiência poética. Escrevi a grande parte deste livro em apenas uma noite. Foi como um vulcão saindo da minha cabeça ‒ sons de martelos contra o ferro na bigorna, memórias das vozes da oficina de ferreiro do mestre Aluízio Ferreira, o meu pai; os sons das histórias e cantigas das minhas tias e da oficina de flandreira de tia Aleluia. Aquela velocidade e os ritmos da fala tomaram conta da minha escrita oral como uma teia de aranha, uma espiral de poetar e contação de histórias vividas e inventadas, que atravessaram os caminhos da infância e entraram porta adentro naquela noite/madrugada adentro num quarto de Hotel, em Manaus. Lugar esse que me pareceu ser mais uma nave do que um quarto de dormir. O contra-lei (1994) foi outro momento de conquista para o poeta performar, do poema de versos curtos e longos tão musicais por sons onomatopaicos que, segundo Rubeni Miranda, eram mais musicais do que a própria música e, por isso, difíceis de serem musicados. Enfim, versos de reivindicações políticas e sociais, muitos dos quais se tornaram letras de rap na década de 1990, quando fui MC, junto com Gomes Brasil, da banda Os contra-lei. Esse livro foi intenso e vital para ganhar as ruas, praças, rodoviárias, estação de metrô, escolas e universidades, portando megafone, uma capa preta, o parangolé da bandeira do Brasil. Nasceu à proporção que ia lendo a Mitologia dos Orixás, a teoria do Big Bang, O livro de gênesis, O livro do apocalipse, As mil e uma noites, relendo Sousândrade, Os Lusíadas etc. O livro América negra (2004) foi o grande salto para a negritude. Os poemas cantam, particularmente, a história da resistência negra, da diáspora africana, da ancestralidade, da mitologia dos orixás, embora as obras anteriores tratem das experiências e estéticas da poesia negra. Por último, o livro América negra & outros poemas afro-brasileiros (2014) é o livro que traduz o ponto mais alto dos temas, princípios filosóficos e estética da negritude na minha poesia.

Faça a poesia saltar do papel. Escreva uma poesia para ser falada, com palavras sonorizadas. Faça o que for possível para a poesia ser ouvida, cantada, sentida, aplaudida ou mesmo vaiada.

Que sensações você experimentou ao ser homenageado na Balada Literária 2019, evento cultural da maior importância no país?

Só sei dizer que foi bom demais. Foi mais do que emocionante. Algo deslumbrante, uma epifania de experiências e sentimentos, que somente a Balada poderia me proporcionar. Reencontrei amigos. Conheci nomes e grupos de poetas da nova geração de autores brasileiros. A Balada me recolocou no itinerário das performances poéticas das cidades Oeiras, Floriano, Paranaíba, Teresina e São Paulo. Foi uma verdadeira maratona de performances e cenas literárias e poéticas. Vivenciei momentos que marcaram minha vida de escritor e homem comum.

Aos jovens que desejam ser poetas, os negros em especial, que sugestões você daria?

Em primeiro lugar, que contem sua própria história. Escrevam a partir das experiências vivenciadas por eles/elas e das experiências coletivas, protagonizadas pelo sujeito negro como seus pais, tias, irmãos, pessoas do grupo étnico-racial e dos ancestrais. Peço que leiam os Cadernos Negros (publicação mais longeva da literatura brasileira contemporânea) e autores como, entre outros, Ana Maria Gonçalves, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Cruz e Sousa, Cuti, Geni Guimarães, Itamar Vieira Júnior, Jefferson Tenório, Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis, Salgado Maranhão, Tânia Lima. Reescrevam tantas vezes quanto for necessário para pegar o ritmo da fala e/ou o cantar/olar na batida dos tambores. A literatura escrita por autores negros requer música e oralidade, do jeito da fala, das vozes, motivos temáticos e cantares da nossa ancestralidade. A história pessoal e da comunidade negra é o trunfo mais prolífero e promissor de boa literatura, porque é nosso lugar de pertencimento e experiências vividas e compartilhadas. Tony Morrison, romancista negra dos EUA, Prêmio Nobel de Literatura, afirmou, certa feita, que a literatura negra está, intrinsecamente, ligada à música e às narrativas contadas oralmente pelas pessoas mais velhas da nossa família. Intuitivamente, essa estratégia é comum, de cantar e contar, à poesia do livro Canto sem viola (1983), meu livro de estreia. Isso me tornou mais consciente da minha história e do meu estar/agir no mundo enquanto poeta. Façamos também da herança griot, dos contos e das canções de matriz africana, o lúmpen da nossa poesia. Recomendo ainda o estudo da História do negro no Brasil, a Diáspora negra nas Américas e a História da África. Enfim, não há pessoa mais indicada para contar a sua história e a dos ancestrais negros, senão o próprio negro. Cada poeta tem sua própria experiência de vida e poesia.

Outra sugestão importante: faça a poesia saltar do papel. Escreva uma poesia para ser falada, com palavras sonorizadas. Faça o que for possível para a poesia ser ouvida, cantada, sentida, aplaudida ou mesmo vaiada. Em outras palavras, não há limites para o poeta, nem do ponto de vista temático, nem estético. As duas coisas andam juntas, de mãos dadas, lado a lado – unha e carne. Essas foram algumas das dicas do e para o poeta-performance que me tornei, falando poemas com megafone nas ruas, praças, rodoviárias, escolas, em tudo que era canto. Sem faltar ainda cara pintada, blusão ou casaco colorido (depois capa preta), parangolé da bandeira do Brasil (quando ainda era proibido vestir a bandeira do Brasil). Hoje, infelizmente, virou uma selvageria cheia de ódio saindo pelas ventas. Se possível, recite poesia acompanhada (ou não) por instrumentos musicais. Digo isso também porque se o poeta não souber tocar um instrumento ou não tiver um músico que o acompanhe, ele poderá emitir fonemas onomatopaicos, repetir versos e palavras no início, no meio e/ou no final de cada verso, conforme o imperativo exigido pelo poema para ser falado, gritado, guturalizado ou cantado.

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