Wellington Soares

Coisas e outras

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Márcia Tiburi, querida

 

Somente agora dou cabo da leitura de O que não se pode dizer experiências do exílio, reunião de cartas trocadas entre você e o Jean Wyllys, livro publicado pela Civilização Brasileira, em 2022. De toda sua obra, essa foi a que mais tocou fundo meu coração. Não só pelo caráter epistolar, mas por senti-la inteira como pessoa e intelectual. Mexeu tanto que fui lendo aos poucos, de trás pra frente, sem pressa de terminar. Até porque, mesmo querendo, dificilmente conseguiria, de tão emocionado. A começar pelo fato de vocês serem obrigados a deixar o Brasil, inseguros de viver aqui, e buscarem abrigo em outros países. Tudo graças à campanha difamatória e às ameaças de morte, tendo à frente o famigerado MBL, patrocinadas pelos fascistas tupiniquins.

Pior é saber que essa perseguição, passados cinco anos, continua até hoje. Sem trégua nem piedade. Uma campanha de ódio bem orquestrada e difundida pelas redes sociais, fazendo uso de montagens criminosas de suas entrevistas e frases. É como você diz num certo trecho de carta: “Somos os inimigos do regime fascista que é especialista em forjar inimigos para continuar seu projeto de mistificação”. Mal sabiam os canalhas que, apesar da distância, sua luta continuaria em defesa de um Brasil democrático, generoso e inclusivo. Que você, Márcia, não é mulher de abandonar o campo de batalha, tampouco de largar a mão dos milhões de brasileiros esfomeados e do compromisso com a verdade.

Entre várias coisas, duas marcaram meus olhos tão fatigados. Primeiro, devido ao exílio, você não ter vindo se despedir do seu pai, homem simples a quem tanto amou, ao partir, vítima de uma bactéria no coração. Em tributo, pintou seu retrato, deixando claro que, embora ausente das exéquias, o genitor permanecia eternamente na memória. Segundo, o belo exemplo de amizade e companheirismo entre você e o Jean Wyllys, ex-deputado federal que, na votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, transmitida ao vivo e em cores pelas TVs, protagonizou a cena mais corajosa daquela triste sessão na Câmara: cuspiu na cara do Bolsonaro para deleite de milhões de espectadores.

Na sua última carta, datada de 31 de janeiro de 2022, você afirma que o exílio é um ato de resistência, com o que concordo plenamente. Vocês são um exemplo disso. Ao tempo que diz também, por não suportar tal limbo, querer voltar ao Brasil. Espero que a eleição e a posse do Lula, a despeito da ameaça golpista dos fascistas, apressem essa sua decisão. Motivo: estamos morrendo de saudade de você e de suas reflexões filosóficas presenciais. Mesmo expressando o desejo de morar num assentamento do MST, ao mudar de vez pra cá, não deixe de visitar o Piauí, estado mais lulista da federação (onde o Cara teve 76,86% dos votos no segundo turno presidencial). Aproveitaríamos sua estadia, entre outras atividades, para lançar esse livro tão instigante e necessário. Te amamos, Márcia: eu, Lucíola e um montão de piauienses.

Uma história de amor

 

Wellington Soares (Professor)

Não é novidade para ninguém a relação de amor do presidente Lula com o Piauí. Ele não perde a oportunidade, mesmo em situações inesperadas, de expressar tal sentimento pelo estado nordestino. Paixão que vem, aliás, de longas datas. Pra sermos mais exatos, desde os anos de 1980, quando iniciou suas andanças pelo Piauí. Não somente com o objetivo de criar o PT, mas de construir amizades duradouras na “terra querida, Filha do Sol do Equador”. Sem falar ainda de futuramente, como veio a ocorrer, ajudar o Piauí a melhorar seus indicadores econômicos e sociais.

Entre outros exemplos, basta lembrar a cerimônia do último dia 1º, no Congresso Nacional, quando Lula fez questão de assinar o termo de posse, dando ênfase ao fato, com uma caneta recebida de companheiro local em 1989 (no caso, Fernando Menezes). Com esse gesto, manifestou enorme carinho aos piauienses. “Essa caneta é uma homenagem ao povo do estado do Piauí”, destacou. Tudo dito em cadeia nacional de televisão para o Brasil e o mundo ouvirem.

Na primeira entrevista concedida à imprensa, tão logo foi confirmado eleito pelo TSE, Lula também expressou seu amor e gratidão ao Piauí. Quando indagado pela jornalista Cinthia Lages, em hotel de São Paulo, sobre o que achava do nosso estado, ele não economizou elogios: “Ao Piauí, eu sou eternamente grato. O Piauí é um estado fantástico”. Não é pra menos, afinal o Cara, como o tratou Obama, obteve 76,86% dos votos dos eleitores piauienses no 2º turno. Proporcionalmente, o estado mais lulista do país.

Não satisfeito, convidou o senador eleito Wellington Dias, maior liderança política do estado e amigo dileto, para ser o ministro do Desenvolvimento Social do novo governo. Pasta estratégica por cuidar do Bolsa Família e da erradicação da fome no Brasil, que hoje atinge 33,1 milhões de pessoas. A eleição de Rafael Fonteles ao governo estadual, no primeiro turno, teve seu apoio irrestrito, com Lula marcando presença durante a campanha eleitoral. Em troca afetiva, ganhou uma gigantesca bandeira verde e amarela, desfraldada naquele dia histórico.

Segundo o fundador local do PT, o sociólogo Antônio José Medeiros, somente durante a pandemia e da prisão injusta, Lula deixou de vir ao Piauí. Em algumas delas, protagonizando histórias engraçadas, como a de pegar uma jiboia na mão, em Guadalupe, e trazê-la a Teresina para doar à Universidade Federal do Piauí. Tal relação amorosa tão bonita nasceu, parafraseando Guimarães Rosa, nessas horinhas de amizade plantada ao longo das últimas décadas.

Marcelino Freire: “Sem a literatura, eu despenco…”

ENTREVISTA / Por Wellington Soares, professor e escritor

 

Eu o conheci pessoalmente em 2012, mas já ouvira falar muito dele no meio artístico. A nosso convite, Marcelino Freire veio ao 10º Salão do Livro do Piauí (Salipi), realizado, à época, na Praça Pedro II, papear sobre “Amar é crime e outras paradas culturais”.

Em novembro do mesmo ano, fui a São Paulo, retribuindo a visita, a fim de conhecer a Balada Literária, evento cultural idealizado por ele em 2006, e considerado um dos mais importantes do país. Depois desses encontros, não nos largamos mais. Foi amizade à primeira vista.

O filho de Sertânia (PE) veio a Teresina outras vezes, foi o entrevistado da Revestrés#16 e iniciou o projeto Quebras, do Itaú Cultural, por nossa capital; eu, por outro lado, estive noutras edições do projeto e, atualmente, sou o curador, a seu convite, da Balada Literária no Piauí, desde 2017, quando Torquato Neto foi o poeta homenageado.

Além de um grande “agitado cultural”, como prefere ser chamado – organizando feiras de livros e ministrando oficinas de escrita criativa –, Marcelino Freire ainda inscreve seu nome na contemporânea literatura brasileira, destacando-se como prosador dos mais criativos e irreverentes da língua portuguesa.

Contos Negreiros (Prêmio Jabuti 2006/Conto) e Nossos ossos (Vencedor do Prêmio Machado de Assis/Romance) são exemplos, para ficarmos apenas em duas obras, da sua maestria com as palavras. Tem livros publicados na Argentina, México, França e Portugal. O teatro, outra de suas paixões, é espaço onde seus textos costumam reverberar positivamente.

Trancado em seu apartamento, na grande São Paulo, Marcelino nos concedeu uma baita entrevista, na qual deixa claro que, sem a literatura, que exige entrega total, ele despenca literalmente. Bora conferir?

Evocando Fernando Pessoa, indago:  tem valido a pena você dedicar tantos anos à literatura?

Quando alguém chega para mim e pergunta se a dedicação à literatura vale a pena, eu devolvo com uma pergunta: “Se tirarem a literatura da tua vida, o que é que sobra?”. A pessoa fica olhando para mim, pensativa. Uns respondem: “não sobra muita coisa”. Então vá fundo. Enfie o pé nos teus parágrafos e versos e siga, avante e confiante. Agora se a literatura for apenas “mais uma entre tantas coisas, caia fora”. Para qualquer ofício que você escolher, a dificuldade será grande. É preciso entrega. Daí, a literatura é só o que eu sei fazer da vida. Então minha vida é essa… Nenhum arrependimento. Foi feita a escolha e seguirei com ela até o fim dos dias. Sem a literatura, eu despenco…

De que maneira os prêmios literários ganhos impactaram sua vida e definem sua escrita até hoje?  

Prêmio literário é consequência. Se vier, estará ótimo. E, se for prêmio em dinheiro, melhor ainda. Com a literatura, eu gastei todo o dinheiro que eu não tinha. Daí qualquer centavo é lucro. Eu, na minha trajetória, não tenho tantos prêmios assim. Só mais indicações. Das indicações, venci dois: o Jabuti de Melhor Livro de Contos e o Machado de Assis de Melhor Romance. No entanto, longe de ser resposta de efeito, o maior prêmio para mim é quando aparece um leitor, uma leitora. Ou quando eu sou adaptado para o teatro. Amo teatro e sempre que eu sou procurado por um grupo teatral é um prêmio que eu recebo. Muitas peças de teatro, a partir de textos meus, foram premiadas. E muita gente passou a me conhecer a partir do teatro. Isso, de fato, me trouxe mais leitores e leitoras. Logo, o impacto na minha vida, vindo do teatro, é bem grande. Eu me sinto mais vivo quando meus textos sobem ao palco…

 Na sua vasta experiência, um escritor já nasce com talento literário ou aprende em oficinas de escrita criativa?

Um escritor, uma escritora, tem de ter vontade. Tem de ler, experimentar. Tem gente que chega às oficinas que eu coordeno e querem publicar, não querem escrever. Tem gente que quer escrever, mas não quer ler. Todo ofício, o de um motorista, o de um artesão, o de um bailarino, todo ele tem de ter dedicação, estudo, energia depositada ali. Se o cara tem talento, mas não exercita os músculos da escrita, de que vale? Encontre seus parceiros e parceiras de caminhada, eles e elas vão também te ajudar a escrever. É bom você não se sentir tão sozinho nem sozinha nessa estrada… Trabalhe, trabalhe, trabalhe… Fazer é milagroso…

Por que em Ossos do Ofídio, seu livro mais recente, observa-se certa desmistificação da figura do autor e do glamour literário?

Não gosto de me levar a sério. Não gosto de sentir que eu já cheguei lá. Cheguei lá aonde? Odeio solenidade, odeio medalha. Eu sou um trabalhador, entende? Estou em permanente construção. O livro Ossos do Ofídio é um livro para acordar até a mim mesmo. Quando estou sentindo que estou ficando com cara de Jabuti, sacudo o rosto, caio na real. Eu penso em autores feito Osman Lins, em autoras feito Noémia de Souza. Muita gente o conhece, muita gente a conhece, mas muita gente ainda falta conhecer. Daí a fila de leitura é grande. Eu estou na rabeira dessa fila. Não posso me sentir o primeiro em nada. Nem posso me sentir melhor do que ninguém: estamos todos e todas a caminho do mesmo abismo. Escrevi o Ossos do Ofídio para lembrar, a mim mesmo, que sou apenas um entre tantos autores… Lá eu até, às vezes, cago regras. Mas escrevi lá: “eu cago regras, mas dou a descarga”. É bem isso…

Um escritor, uma escritora, tem de ter vontade. Tem gente que chega às oficinas que eu coordeno e querem publicar, não querem escrever. Tem gente que quer escrever, mas não quer ler.

 O que tem levado você, ultimamente, a escrever para o teatro e a aceitar seus textos adaptados para o audiovisual? 

Já falei lá em cima: amo o teatro. Eu escrevo pensando em teatro, sempre. Eu escrevo em voz alta. Estou me aproximando ainda mais do teatro nesses últimos tempos. Recentemente, fui convidado pelo diretor Antônio Araújo para escrever para o Teatro da Vertigem. Os convites não param de chegar. Isso se deve a tanta gente que levou meus textos aos palcos. Aí outros atores e atrizes vão chegando e eu vou indo, vou indo. Também gosto de misturar meu ofício a outros ofícios. Note que sempre convido um artista plástico para um livro meu, um desenhista… Recentemente, convidei um arquiteto para fazer a capa do meu Ossos do Ofídio. Se a gente fica convivendo só com os nossos, a gente atrofia. Eu quero conhecer mais astronautas no meu caminho, entende?

 Que sensação você experimentou ao ser convidado pela José Olympio a abrir uma coleção histórica da editora – no caso, Seleta de Contos de Marcelino Freire – que fez muito sucesso no passado?

Quando eu fui convidado para relançar a série Seleta, e com capa exclusiva do mestre Ciro Fernandes, eu disse para mim: “agora já posso morrer”. Eta danado! Eu tenho comigo a Seleta em prosa de Clarice Lispector, a Seleta em Poesia de João Cabral. Daí figurar nessa série é uma glória. A ideia da Seleta é que o autor ou autora escolha, dentro de sua própria obra, seus textos preferidos. Eu escolhi meus contos preferidos a partir de todos os meus livros publicados. Eu dei à Seleta o subtítulo de Por Pior Que Pareça. Para não parecer que estou escolhendo meus melhores contos. Longe disso. Escolhi, sobretudo, os contos que as pessoas mais me pedem, mais comentam, mais adaptam para o teatro. É uma Seleta coletiva essa, de alguma forma.

Em 2017, a Balada Literária homenageou lindamente Torquato Neto em três capitais: Teresina, Salvador e São Paulo. Qual o motivo dessa celebração e que papel exerce o referido evento na cultura nacional?  

Olha, eu posso dizer que, entre todas as edições da Balada Literária, essa de 2017, em homenagem ao Torquato, foi a melhor de todas. Porque aí começou a parceria com Teresina de fato. A Balada Literária acontece no Piauí, desde lá. E nunca vi, na história da Balada Literária, uma edição que trouxesse tanta gente ligada ao homenageado. Vieram leitores e leitoras piauienses e gente de todo o canto do Brasil. E senti que o evento, de alguma forma, ajudou a relembrar e a impulsionar ainda mais a obra maravilhosa do Torquato. A Balada é outra desde esse tempo… Agradeço muito ao escritor e parceiro Wellington Soares. Sem ele, essa forma renovadora da Balada Literária não existiria. E também agradeço ao parceiro e poeta Nelson Maca, que, há tempo, faz com a gente a Balada acontecer na Bahia. A Balada Literária me deu muitos irmãos, mas Wellington e Maca são sanguíneos, viu? Sem contar toda a equipe baladeira… Ave nossa! A nossa batalha é grande. A Balada é sempre punk de fazer. Já é referência no Brasil. Fico feliz que ela aconteça, a duras batalhas, desde 2006. Eu me sinto mais atuante quando realizo algo assim… Com ela, não me sinto um escritor bundão, entende?

THIAGO E: “Gosto quando paira uma graça flutuante nas coisas que invento”

ENTREVISTA / Por Wellington Soares, professor e escritor 

 

Foi ainda quando fazia parte da Validuaté, banda de pop rock, que descobri o talento literário e musical do Thiago E. De tanto ouvir na FM Cultura, dei pra cantarolar, mesmo desafinado, “A lenda do peixe francês”, música das mais conhecidas da banda piauiense, com letra sua e melodia de José Quaresma: “Era uma vez um peixe francês/ Soturno e muito triste/ Se perguntava: será que existem maiores mágoas/ Que as minhas nestas águas?”. Depois o vi pessoalmente, em show no Centro Artesanal, dedilhando, com maestria, um cavaquinho, fato que só aumentou minha admiração por ele. A faceta poética já era perceptível nessa e noutras de suas composições.

Mas foi no livro de estreia, Cabeça de sol em cima do trem, que isso clareou de vez e em definitivo. A começar pelo autorretrato que Thiago faz de si próprio: “músico em reabilitação labiríntica, professor com problemas de visão e gago integrante da banda Validuaté”. Em capa dura e projeto gráfico primoroso, lançado pela Editora Corsário, o livro nos possibilita levitar, através de distintas formas de linguagem – versos, prosas e desenhos – em suas viagens criativas por universos estéticos, oníricos, experimentações linguísticas e doses de afetividade. Tudo movido pelo senso de humor como forma de existir, bem como sem esquecer os referenciais literários nos quais costuma beber: Torquato Neto, os irmãos Campos, Jorge Mautner e Arnaldo Antunes.

Depois de um time na escrita, que durou oito anos, ele retornou, pra felicidade dos leitores, com outro livro supimpa de bonito – Os gatos quando os dias passam, declaração de amor escancarada aos felinos que marcam e inspiram sua vida. Em poemas que vão do haikai, instantâneos marcados pelo lirismo e concisão, até a fragmentação concretista, com palavras se esparramando no chão, feito bichanos, em poses enigmáticas e múltiplos significados. Para ilustrar alguns textos, Thiago E mostra também o olhar peculiar e sensível de fotógrafo, clicando gatos que vivem dentro e fora da sua casa, em Teresina, capital do Piauí, cujos habitantes são, de acordo com pesquisa do IBGE, seus maiores amantes no Brasil.

Ao conhecer sua obra, constatamos que Thiago, em tudo que mete a mão, deixa certa graça flutuante nas coisas que inventa: letras de música, livros, instrumentos que toca, revistas que edita, CDs poéticos e projetos cultuais em que se envolve. Ele mesmo, em pessoa, encarna leveza e descontração. Não é pra menos, convenhamos, pois tem como pais Neide e Zorro, duas figuraças em quem se espelha, e, companheira de todas as horas e travessias, a bela Maíra.

Endossando o que disse sobre ele Jorge Mautner, prestemos muita atenção a tudo aquilo que este poeta, na acepção plena do termo, faz e produz em termos artísticos.

De acordo com Manoel de Barros a poesia não existe para comunicar, mas para comungar. Por meio de quais ideias e sentimentos sua arte tem atingido tal propósito? 

É infinito o debate sobre arte e comunicação. Baudelaire já disse que “o mundo não marcha senão pelo mal entendido”. Augusto de Campos escreveu: “só o incomunicável comunica”. Mas com quais sentidos empregamos os termos? No dicionário do Bluteau, “comunicar” alguma coisa é dar a alguém parte dessa coisa. É “fazer comum”, “fazer participante”, unir. E o Houaiss traz “comungar” como “ter em comum, partilhar, ter relações com, comunicar”. Então, são sentidos entrançados. Mesmo quando não quer isso, a poesia pode comunicar e comungar… Meu prazer é tentar atingir “tal propósito”. Se escrevo ou componho, jogo com a tradição, intico a versificação, atiço as letras pra gerarem música, quero aprender a deixar a visão livre, sou movido pelo senso de humor como forma de existir. Gosto quando paira uma graça flutuante nas coisas que invento. É inconsciente, às vezes nem percebo. Já escrevi trabalhos sérios e depois pessoas me disseram que acharam engraçado. Tomara que meu humor seja uma espécie de ímã para a comunhão.

Que aspectos da infância e da adolescência, de garoto pobre, marcam seu itinerário musical e poético? 

Desde que me desentendo por gente, minha mãe repete expressões do interior do Piauí: “Que labacé é esse?”, “Vão com relaboque pra lá”, “Isturdiinha ele caiu nos zói chorando”. Nosso piauiês é massa, faz prestar atenção nas palavras. Minha mãe batalhou por bolsas pra mim: estudei em escolas que me despertaram a delícia de ler. Com pouca grana, Dona Neide me ensinou a criar com o suficiente. Seria o começo da minha preparação à arte do haikai? Não dava pra perfumar a flor. Do dinheiro contado às sílabas contadas? Uma das primeiras músicas que lembro ter me impressionado foi “O pulso”, dos Titãs. Ainda criança, assisti no Faustão uma marionete de esqueleto dançando ao som de nomes de doenças! Eu também já adorava pagode, rap, samba e chorinho. Ficava brigando com a antena da televisão pra melhorar a imagem da TV Cultura, da TV Educativa. O sinal era péssimo! Às vezes eu só ouvia os programas Roda Viva, Provocações, Arte com Sérgio Britto, Comentário Geral, Ensaio etc. Minha família me achando doido. Eu tentando escutar as entrevistas na TV fora do ar. Nessa época, ganhei pandeiro e cavaquinho. Compus meu primeiro pagode aos 16 anos pro ônibus que eu pegava, “Buenos Aires via Aeroporto”. Nas apostilas do ensino médio, descobri Augusto dos Anjos, poesia visual e, enfim, que o cantor daquele rock era Arnaldo Antunes. Anotei o site dele e, pela primeira vez, fui à lan house, com um caderno. Copiei textos, desenhei os poemas visuais. O cara da lan house perguntou por que eu não imprimia. Só ali, soube que existia impressora! Mas era caro. No fim da adolescência, durante o Salão do Livro do Piauí, vi o livro do Arnaldo As coisas à venda. No bolso, eu só tinha a passagem do ônibus pra voltar. Li uns 3 poemas. A vendedora chegou e perguntou: “Não vai comprar?”. Agradeci, dei uma volta e retornei. Lia mais 3 ou 4 poemas. Ela de novo: “Não vai comprar?”. Eu agradecia, saía. Demorei uns 3 dias pra ler As coisas inteiro.

Na língua, me fascina a música. Na canção, me fascinam as formas da língua. Sou feito dessa mistura de música e literatura.

Em que momento da vida nasceu o desejo de ser artista e quando, de fato, você reconheceu ter chegado a esse ponto? 

Talvez na adolescência, assistindo artistas incríveis na televisão, comprando cancioneiros nas bancas, buscando pegar de ouvido os chorinhos do Waldir Azevedo, do Pixinguinha. Provavelmente, me reconheci poeta em 2004, quando Demetrios Galvão me chamou pra ir à Roda de Poesia e Tambores, produzida pelo querido Elio Ferreira no Clube dos Diários, e ganhei o prêmio de melhor poesia falada. Acho que me vi como músico pela primeira vez em 2005. A Validuaté fez uma grande apresentação na Central de Artesanato, durante o Salão de Humor. Lotado. Muitos conheceram a gente ali, e o nome da banda começou a circular em Teresina.

Destaque a relação existente entre música (Validuaté) e poesia (livros) na sua obra? 

Na língua, me fascina a música. Na canção, me fascinam as formas da língua. Sou feito dessa mistura de música e literatura. Começamos a Validuaté em 2004. Eu tinha 18 anos. Fiquei na banda até 2016. A letra “Pelos pátios partidos em festa” existe porque li Roberto Piva. “Mundo multidão mil” é um verso do português E. M. de Melo e Castro. “Céu%” e “O mar e o pano” elaborei quando eu estava deprimido. No consultório, esperando pra falar com o médico, tinha uma revista. Encontrei um poema do García Lorca: “o mar sorri ao longe / dentes de espuma / lábios de céu”. Inspirou. É o que a psicanalista Roudinesco fala: “por amor ao que a angústia nos proporciona”. Após leituras de Ferreira Gullar, “O Hermeto e o Gullar”. “Plaina Maravalha” surgiu do papo com o parceiro Quaresma, e da frase do Tchekhov que vi na TV: “Um cão faminto só tem fé na carne”. “Superbonder”, “A Lenda do Peixe Francês”, “O escuro”, são inúmeras referências literárias. Procuro incorporar o que as artes ensinam: os poemas ampliam a percepção, e a vida ganha mais potência, alguma alegria. Juntar poesia e música vem de ouvir Marina Lima, Jorge Mautner, Dona Ivone Lara, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Celso Borges, Adriana Calcanhotto, Racionais, Arnaldo Antunes, Rita Benneditto, Rita Lee, Grupo Rumo, Luiz Tatit, Itamar Assumpção, Cid Campos… Com Joniel Veras, lancei agora o single “Ave Mautner”. Jorge Mautner participa interpretando trechos dos seus livros Fragmentos de Sabonete e Fundamentos do Kaos.

Em 2013, ocorreu sua estreia literária, com Cabeça de sol em cima do trem. A receptividade que o livro teve, dentro e fora do Piauí, correspondeu às expectativas? 

Jamais imaginei que, no geral, seria tão bem recebido. Lancei livro e disco (produzido por Jan Pablo). São trabalhos distintos. Cabeça de sol em cima do trem reúne textos extremamente diferentes. Recebeu comentários negativos e positivos. Hoje vários aspectos do livro me incomodam. É natural, não sou mais aquele autor. Enfim, há coisas que só aprendemos publicando. Uma satisfação: o livro foi bem lido. Agradeço imenso ao Manoel Ricardo de Lima, que escreveu crítica no O Globo: “Thiago, a certa altura, no poema “Manhã”, diz que estamos o tempo inteiro diante de um ‘cinema sem emprego industrial’. Isto é político: manter o poema vivo, movente, correr todos os riscos. Um pouco de aventura.” Jotabê Medeiros publicou no Estadão uma matéria sobre o disco. Até Arnaldo Antunes comentou o álbum: “Fazia tempo que eu não curtia assim um trabalho de poesia. Palavra-lâmina afiada em voz. Sua leitura, clara e expressiva, junto aos variados experimentos sonoros do Jan Pablo, resulta em quase-canções, que vitalizam os já surpreendentes poemas.”

Ao apresentar Os gatos quando os dias passam, Tarso de Melo diz que os felinos são eternas fontes de espanto-aprendizado para os poetas. Como esse binômio se materializa no seu segundo livro? 

Quando morava no bairro Pirajá, adotei três gatas. Segundo o IBGE, o Piauí é o estado brasileiro que mais possui casas com gatos. Anos ao lado delas me transformaram. Pau-sa-da-men-te. Para crescer, o ser humano engatinha, anda só após imitar um gato. Recordo a sabedoria Guajajara da amiga Aliã Wamiri: “o tempo é passado de animais”. Pela felinidade, chego ao haikai, podemos adquirir uma consciência inconsciente, agir pela não ação, comunicar por um vocabulário sensorial. Repare. Neste século em que tanta gente mal dorme, e sonha pior ainda, é bom observar os gatos: dormem setenta por cento do tempo, e não separam realidade e sonho. Ouça. O sonho, antes de ser visto, é apalpado. É o cafuné que planta na cabeça o sonho. Por isso, ao pôr os dedos na moleira do gato, seus olhos se fecham em pequenos espasmos: sete vidas assistindo às pálpebras por dentro.

Este ano as luzes estarão voltadas para o centenário da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo e que deu uma boa chacoalhada na cultura nacional a partir de 1922. Quais características temáticas e formais sua obra herda desse movimento? 

No ensino médio, nunca esqueci o impacto que tive ao ler: “Há poesia / Na dor / Na flor / No beija-flor / No elevador”. Esse poema do Oswald de Andrade, “Ballada do Esplanada”, mudou minha sensibilidade. Botar elevador na poesia? Em seguida, conheci o “Amor / Humor”. Poema com uma palavra? Tocou meu coração-menino. Os desdobramentos da Semana de Arte Moderna são inúmeros e bastante complexos. Sendo brevíssimo, talvez eu tenha herdado o prazer do jogo com a linguagem, uma ironia lúdica, a vitalidade do imaginário, o apreço pelo paradoxo, a contestação das formas fixas mesmo adorando versificação – por isso admiro Manuel Bandeira, ele sabia de tudo e fazia tudo diferente.

VALÉRIA SILVA: “Escrevia para mitigar a ausência da minha mãe”

ENTREVISTA / Por Wellington Soares, professor e escritor 

 

Estava em casa, deitado na rede, numa malemolência gostosa, quando recebo uma mensagem da Valéria Silva, via WhatsApp, dizendo que acabara de escrever um livro sobre a família dela. Na verdade, fez questão de destacar, um tributo à sua mãe. E gostaria de ouvir, por ser uma escritora de primeira viagem, a opinião de alguém experiente nessa área. No caso, este aprendiz das labutas literárias, seu amigo desde as lutas estudantis na Universidade Federal do Piauí (UFPI), nos anos de 1980.

Queria saber, com franqueza, se valia a pena ou não publicar o livro. Um calhamaço de quase 500 páginas, O Baú de Faustina, já todo digitado e capa desenhada pelo filho. Diante de tal apelo, só restou-me iniciar a leitura imediatamente. Logo nas primeiras 30 linhas senti, maravilhado, o fôlego da história dessa brava nordestina que, a exemplo de tantas outras, simboliza a luta pela terra e o amor pelos filhos.

Sob a perspectiva de Faustina, a narrativa resgata sua trajetória de vida, pelejas no campo, valores e crendices, necessidades suportadas em silêncio, dureza em criar os filhos, conflitos familiares, amor pelo marido e luta tenaz por um pedaço de terra. Tudo contado, o que dá maior veracidade ao relato, com seu próprio vocabulário interiorano, por meio de suas referências linguísticas. Ao final, temos um perfil comovedor de uma mulher que alia humildade e determinação.

Foi ao ler O Baú de Faustina, virando algumas noites, que conheci melhor a Valéria Silva, autora do romance. Percebi ali de quem ela herdara, quando defendíamos a democracia e o fim da ditadura militar, tanta coragem nos embates com a repressão e na defesa intransigente das universidades públicas. Apesar das misérias humanas causadas, sobretudo, pelos latifundiários, gananciosos e desumanos, o livro traz uma mensagem de esperança.

Não tenho dúvida de que a Valéria, com essa obra de estreia, conseguiu aplacar, se não de todo, pelo menos um pouco da ausência da querida e saudosa mãe. Como também inscrever seu nome entre as promissoras revelações da literatura piauiense contemporânea. No mais, torcer para que ela continue nos presenteando com outras belas histórias.

No romance Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, encontramos a seguinte frase: “O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois chega galopando, como se andasse a cavalo”. Que acha dessa afirmação? 

Percebo-a cheia de verdades. De fato, sempre estamos trilhando nas sendas das nossas pertenças ancestrais, culturais etc. Especialmente, nos enredamos com os afetos, aqueles que nos fazem como pessoa. Por vezes, não percebemos, mas seguramente aquilo que construímos pela vida afora, repousa no “sangue do passado”. Claro, matizado pela experiência única de cada pessoa, contudo inextrincavelmente articulado à sua memória.

Quando comecei a escrever O Baú o que mais me chamou a atenção foi a quantidade de memórias que eu havia guardado. Na verdade, memórias de mim. Normalmente, demandava-as aqui e ali, entretanto sem perceber a dimensão do que eu havia retido. Primeiro, chegavam despretensiosamente, uma a uma. Depois, realmente em corredeira, como um imperativo, um sujeito desejante de luz. E aí, já precisava anotar esta, aquela e mais outra para, oportunamente, escrevê-las de modo adequado.  E surpreendi-me também com a força que tem a oralidade nas dinâmicas da convivência humana.

Quando você percebeu estar grávida de O baú de Faustina? 

Demorei a perceber. Eu escrevia para mim. Escrevia para mitigar a ausência da minha mãe. Para revisitar nosso convívio e sua própria trajetória de muita labuta e resiliência. Para conciliar meus afetos, meu “sangue do passado”. Talvez escrevesse também para conferir a Faustina o reconhecimento profundo pelo que foi, o qual ela não teve, assim como tantas mulheres de sua geração, tempo e lugar. Por isso, só depois de escrever por mais de dois anos, acionada sempre por minhas demandas interiores, foi que olhei para tudo aquilo de modo diferente. E pensei: “E se eu fizesse um livro com as histórias de mamãe?”. Ali, houve a fecundação e fui cuidar de uma longa gravidez atemporal, (des)alimentada também pela realidade cotidiana de uma professora universitária, mãe, esposa, militante, sitiante e pessoa interessada na vida em sua complexidade.

A estreia literária teve uma boa acolhida por parte dos leitores/críticos ou ficou aquém do esperado? 

Veja, O Baú tem sido motivo de grandes surpresas para mim. Desde a pré-venda, onde foram vendidos 158 exemplares, até os últimos retornos que recebo de quem vem lendo a obra. Sinceramente? Não esperava tanto. Eu não tinha (e continuo não tendo) condições técnicas de apreciar o trabalho. Minha tradição é acadêmico-científica, a minha vivência com a literatura tem sido meramente enquanto leitora. E me vi escrevendo memórias, então me fugia a capacidade de dizer sobre o livro. Não obstante, o/as leitores/as me fazem apreciações muito entusiasmadas, geralmente se reportando a ricos encontros identitários, partilha de lugares estéticos e culturais de muito conforto. Assim, para mim o livro está se mostrando para além do esperado, tanto na relação com o público quanto à alegria que vem me proporcionando.

Escrevia para mitigar a ausência da minha mãe. Para revisitar nosso convívio e sua própria trajetória de muita labuta e resiliência.

Quem foi realmente, cá entre nós, essa mulher que encanta do começo ao final da história? 

Sabe, penso que, no fundo, Faustina é uma mulher muito comum. Sim, é uma mulher de força indescritível – à sua maneira -, resignada, de certezas inabaláveis, hoje obsoletas, mas decisivamente necessárias à vida que viveu. É uma mulher que viveu uma epopeia! Mas acredito que este ser povoa quase todas as famílias rurais de Teresina, do Piauí, de um modo ou de outro. São mulheres que carregaram todo o fardo de desafios, dificuldades, exigências que um contexto patriarcal as legou e ainda as lega. E que, diante da inexorabilidade sócio-político-cultural, o fizeram da melhor maneira, com a sabedoria que a própria dureza da vida engendrava. Vejo Faustina com delicadeza e amor particulares por se tratar de minha mãe. Mas, sei que no mundo rural piauiense teríamos muitas outras histórias de mulheres fantásticas para contar.

De que maneira a luta pela terra e a garra em ser mãe se entrelaçam e conduzem a narrativa? 

Mãe e terra me chegam sempre muito vinculadas. Para mim, sinônimos de segurança, generosidade, complexidade, geração de vida, dinâmica vital cíclica, muito embora o modo de vida geral que nós, os humanos, escolhemos construir no Planeta seja desagregador de uma e de outra, bem como da relação entre ambas.

No livro, a terra surge evidenciada em sua extrema necessidade enquanto recurso e lugar de ancoragem da vida camponesa. A sua constante negação ou mesmo a dificuldade de acesso à terra ali relatadas, atentam contra a viabilidade da vida das pessoas que, à época, não conheciam, por assim dizer, outro modo de existência. E não falo só do trabalho e do aprovisionamento, mas da vida em sua plenitude. De seres existindo naquele mundo. Nesse contexto camponês, a mãe também é indispensável para dar viabilidade a este modo de vida. O seu trabalho – normalmente sem visibilidade – os vínculos e sentidos comunitários que tece, o seu papel no universo da reprodução da família… sem a mãe, sem a mulher camponesa nada disso existiria. Então, a mulher e a terra são condições indispensáveis para a existência do modo de vida camponês.

Em que autores e obras você encontrou inspiração para construir saga familiar nordestina tão envolvente e impactante? 

Certamente, me inspirei em tudo que já li da literatura e da cultura rural nordestina. Mas devo dizer que a minha pertença rural e o meu trabalho, enquanto pesquisadora de temas rurais, animaram muito a escrita do livro. As várias etnografias me fizeram revisitar aquele “sangue do passado”, levando-me novamente, e mais a fundo, à alma do nosso jeito piauiense de estar no mundo. Pude recolocar cada questão sob lupa, analisá-la, atualizá-la, senti-la mais uma vez… A minha vivência com a Agroecologia também contribuiu para a construção de certo olhar para as questões rurais. Talvez a inspiração venha disso tudo, ao mesmo tempo.

Pretende parar por aqui ou vem mais livros pela frente? 

Inicialmente, não havia nenhum propósito neste sentido. Mas, O Baú e seus gentis leitores e leitoras têm me feito, mais recentemente, refletir sobre esta possibilidade. Escrever uma história foi algo que me deu muito prazer, portanto, algo que poderia ser retomado. Deixemos o tempo aquilatar as alegrias e frutos deste primeiro trabalho. Quem sabe?