ENTREVISTA / Por Wellington Soares, professor e escritor
Foi ainda quando fazia parte da Validuaté, banda de pop rock, que descobri o talento literário e musical do Thiago E. De tanto ouvir na FM Cultura, dei pra cantarolar, mesmo desafinado, “A lenda do peixe francês”, música das mais conhecidas da banda piauiense, com letra sua e melodia de José Quaresma: “Era uma vez um peixe francês/ Soturno e muito triste/ Se perguntava: será que existem maiores mágoas/ Que as minhas nestas águas?”. Depois o vi pessoalmente, em show no Centro Artesanal, dedilhando, com maestria, um cavaquinho, fato que só aumentou minha admiração por ele. A faceta poética já era perceptível nessa e noutras de suas composições.
Mas foi no livro de estreia, Cabeça de sol em cima do trem, que isso clareou de vez e em definitivo. A começar pelo autorretrato que Thiago faz de si próprio: “músico em reabilitação labiríntica, professor com problemas de visão e gago integrante da banda Validuaté”. Em capa dura e projeto gráfico primoroso, lançado pela Editora Corsário, o livro nos possibilita levitar, através de distintas formas de linguagem – versos, prosas e desenhos – em suas viagens criativas por universos estéticos, oníricos, experimentações linguísticas e doses de afetividade. Tudo movido pelo senso de humor como forma de existir, bem como sem esquecer os referenciais literários nos quais costuma beber: Torquato Neto, os irmãos Campos, Jorge Mautner e Arnaldo Antunes.
Depois de um time na escrita, que durou oito anos, ele retornou, pra felicidade dos leitores, com outro livro supimpa de bonito – Os gatos quando os dias passam, declaração de amor escancarada aos felinos que marcam e inspiram sua vida. Em poemas que vão do haikai, instantâneos marcados pelo lirismo e concisão, até a fragmentação concretista, com palavras se esparramando no chão, feito bichanos, em poses enigmáticas e múltiplos significados. Para ilustrar alguns textos, Thiago E mostra também o olhar peculiar e sensível de fotógrafo, clicando gatos que vivem dentro e fora da sua casa, em Teresina, capital do Piauí, cujos habitantes são, de acordo com pesquisa do IBGE, seus maiores amantes no Brasil.
Ao conhecer sua obra, constatamos que Thiago, em tudo que mete a mão, deixa certa graça flutuante nas coisas que inventa: letras de música, livros, instrumentos que toca, revistas que edita, CDs poéticos e projetos cultuais em que se envolve. Ele mesmo, em pessoa, encarna leveza e descontração. Não é pra menos, convenhamos, pois tem como pais Neide e Zorro, duas figuraças em quem se espelha, e, companheira de todas as horas e travessias, a bela Maíra.
Endossando o que disse sobre ele Jorge Mautner, prestemos muita atenção a tudo aquilo que este poeta, na acepção plena do termo, faz e produz em termos artísticos.
De acordo com Manoel de Barros a poesia não existe para comunicar, mas para comungar. Por meio de quais ideias e sentimentos sua arte tem atingido tal propósito?
É infinito o debate sobre arte e comunicação. Baudelaire já disse que “o mundo não marcha senão pelo mal entendido”. Augusto de Campos escreveu: “só o incomunicável comunica”. Mas com quais sentidos empregamos os termos? No dicionário do Bluteau, “comunicar” alguma coisa é dar a alguém parte dessa coisa. É “fazer comum”, “fazer participante”, unir. E o Houaiss traz “comungar” como “ter em comum, partilhar, ter relações com, comunicar”. Então, são sentidos entrançados. Mesmo quando não quer isso, a poesia pode comunicar e comungar… Meu prazer é tentar atingir “tal propósito”. Se escrevo ou componho, jogo com a tradição, intico a versificação, atiço as letras pra gerarem música, quero aprender a deixar a visão livre, sou movido pelo senso de humor como forma de existir. Gosto quando paira uma graça flutuante nas coisas que invento. É inconsciente, às vezes nem percebo. Já escrevi trabalhos sérios e depois pessoas me disseram que acharam engraçado. Tomara que meu humor seja uma espécie de ímã para a comunhão.
Que aspectos da infância e da adolescência, de garoto pobre, marcam seu itinerário musical e poético?
Desde que me desentendo por gente, minha mãe repete expressões do interior do Piauí: “Que labacé é esse?”, “Vão com relaboque pra lá”, “Isturdiinha ele caiu nos zói chorando”. Nosso piauiês é massa, faz prestar atenção nas palavras. Minha mãe batalhou por bolsas pra mim: estudei em escolas que me despertaram a delícia de ler. Com pouca grana, Dona Neide me ensinou a criar com o suficiente. Seria o começo da minha preparação à arte do haikai? Não dava pra perfumar a flor. Do dinheiro contado às sílabas contadas? Uma das primeiras músicas que lembro ter me impressionado foi “O pulso”, dos Titãs. Ainda criança, assisti no Faustão uma marionete de esqueleto dançando ao som de nomes de doenças! Eu também já adorava pagode, rap, samba e chorinho. Ficava brigando com a antena da televisão pra melhorar a imagem da TV Cultura, da TV Educativa. O sinal era péssimo! Às vezes eu só ouvia os programas Roda Viva, Provocações, Arte com Sérgio Britto, Comentário Geral, Ensaio etc. Minha família me achando doido. Eu tentando escutar as entrevistas na TV fora do ar. Nessa época, ganhei pandeiro e cavaquinho. Compus meu primeiro pagode aos 16 anos pro ônibus que eu pegava, “Buenos Aires via Aeroporto”. Nas apostilas do ensino médio, descobri Augusto dos Anjos, poesia visual e, enfim, que o cantor daquele rock era Arnaldo Antunes. Anotei o site dele e, pela primeira vez, fui à lan house, com um caderno. Copiei textos, desenhei os poemas visuais. O cara da lan house perguntou por que eu não imprimia. Só ali, soube que existia impressora! Mas era caro. No fim da adolescência, durante o Salão do Livro do Piauí, vi o livro do Arnaldo As coisas à venda. No bolso, eu só tinha a passagem do ônibus pra voltar. Li uns 3 poemas. A vendedora chegou e perguntou: “Não vai comprar?”. Agradeci, dei uma volta e retornei. Lia mais 3 ou 4 poemas. Ela de novo: “Não vai comprar?”. Eu agradecia, saía. Demorei uns 3 dias pra ler As coisas inteiro.
Na língua, me fascina a música. Na canção, me fascinam as formas da língua. Sou feito dessa mistura de música e literatura.
Em que momento da vida nasceu o desejo de ser artista e quando, de fato, você reconheceu ter chegado a esse ponto?
Talvez na adolescência, assistindo artistas incríveis na televisão, comprando cancioneiros nas bancas, buscando pegar de ouvido os chorinhos do Waldir Azevedo, do Pixinguinha. Provavelmente, me reconheci poeta em 2004, quando Demetrios Galvão me chamou pra ir à Roda de Poesia e Tambores, produzida pelo querido Elio Ferreira no Clube dos Diários, e ganhei o prêmio de melhor poesia falada. Acho que me vi como músico pela primeira vez em 2005. A Validuaté fez uma grande apresentação na Central de Artesanato, durante o Salão de Humor. Lotado. Muitos conheceram a gente ali, e o nome da banda começou a circular em Teresina.
Destaque a relação existente entre música (Validuaté) e poesia (livros) na sua obra?
Na língua, me fascina a música. Na canção, me fascinam as formas da língua. Sou feito dessa mistura de música e literatura. Começamos a Validuaté em 2004. Eu tinha 18 anos. Fiquei na banda até 2016. A letra “Pelos pátios partidos em festa” existe porque li Roberto Piva. “Mundo multidão mil” é um verso do português E. M. de Melo e Castro. “Céu%” e “O mar e o pano” elaborei quando eu estava deprimido. No consultório, esperando pra falar com o médico, tinha uma revista. Encontrei um poema do García Lorca: “o mar sorri ao longe / dentes de espuma / lábios de céu”. Inspirou. É o que a psicanalista Roudinesco fala: “por amor ao que a angústia nos proporciona”. Após leituras de Ferreira Gullar, “O Hermeto e o Gullar”. “Plaina Maravalha” surgiu do papo com o parceiro Quaresma, e da frase do Tchekhov que vi na TV: “Um cão faminto só tem fé na carne”. “Superbonder”, “A Lenda do Peixe Francês”, “O escuro”, são inúmeras referências literárias. Procuro incorporar o que as artes ensinam: os poemas ampliam a percepção, e a vida ganha mais potência, alguma alegria. Juntar poesia e música vem de ouvir Marina Lima, Jorge Mautner, Dona Ivone Lara, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Celso Borges, Adriana Calcanhotto, Racionais, Arnaldo Antunes, Rita Benneditto, Rita Lee, Grupo Rumo, Luiz Tatit, Itamar Assumpção, Cid Campos… Com Joniel Veras, lancei agora o single “Ave Mautner”. Jorge Mautner participa interpretando trechos dos seus livros Fragmentos de Sabonete e Fundamentos do Kaos.
Em 2013, ocorreu sua estreia literária, com Cabeça de sol em cima do trem. A receptividade que o livro teve, dentro e fora do Piauí, correspondeu às expectativas?
Jamais imaginei que, no geral, seria tão bem recebido. Lancei livro e disco (produzido por Jan Pablo). São trabalhos distintos. Cabeça de sol em cima do trem reúne textos extremamente diferentes. Recebeu comentários negativos e positivos. Hoje vários aspectos do livro me incomodam. É natural, não sou mais aquele autor. Enfim, há coisas que só aprendemos publicando. Uma satisfação: o livro foi bem lido. Agradeço imenso ao Manoel Ricardo de Lima, que escreveu crítica no O Globo: “Thiago, a certa altura, no poema “Manhã”, diz que estamos o tempo inteiro diante de um ‘cinema sem emprego industrial’. Isto é político: manter o poema vivo, movente, correr todos os riscos. Um pouco de aventura.” Jotabê Medeiros publicou no Estadão uma matéria sobre o disco. Até Arnaldo Antunes comentou o álbum: “Fazia tempo que eu não curtia assim um trabalho de poesia. Palavra-lâmina afiada em voz. Sua leitura, clara e expressiva, junto aos variados experimentos sonoros do Jan Pablo, resulta em quase-canções, que vitalizam os já surpreendentes poemas.”
Ao apresentar Os gatos quando os dias passam, Tarso de Melo diz que os felinos são eternas fontes de espanto-aprendizado para os poetas. Como esse binômio se materializa no seu segundo livro?
Quando morava no bairro Pirajá, adotei três gatas. Segundo o IBGE, o Piauí é o estado brasileiro que mais possui casas com gatos. Anos ao lado delas me transformaram. Pau-sa-da-men-te. Para crescer, o ser humano engatinha, anda só após imitar um gato. Recordo a sabedoria Guajajara da amiga Aliã Wamiri: “o tempo é passado de animais”. Pela felinidade, chego ao haikai, podemos adquirir uma consciência inconsciente, agir pela não ação, comunicar por um vocabulário sensorial. Repare. Neste século em que tanta gente mal dorme, e sonha pior ainda, é bom observar os gatos: dormem setenta por cento do tempo, e não separam realidade e sonho. Ouça. O sonho, antes de ser visto, é apalpado. É o cafuné que planta na cabeça o sonho. Por isso, ao pôr os dedos na moleira do gato, seus olhos se fecham em pequenos espasmos: sete vidas assistindo às pálpebras por dentro.
Este ano as luzes estarão voltadas para o centenário da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo e que deu uma boa chacoalhada na cultura nacional a partir de 1922. Quais características temáticas e formais sua obra herda desse movimento?
No ensino médio, nunca esqueci o impacto que tive ao ler: “Há poesia / Na dor / Na flor / No beija-flor / No elevador”. Esse poema do Oswald de Andrade, “Ballada do Esplanada”, mudou minha sensibilidade. Botar elevador na poesia? Em seguida, conheci o “Amor / Humor”. Poema com uma palavra? Tocou meu coração-menino. Os desdobramentos da Semana de Arte Moderna são inúmeros e bastante complexos. Sendo brevíssimo, talvez eu tenha herdado o prazer do jogo com a linguagem, uma ironia lúdica, a vitalidade do imaginário, o apreço pelo paradoxo, a contestação das formas fixas mesmo adorando versificação – por isso admiro Manuel Bandeira, ele sabia de tudo e fazia tudo diferente.