Quando menos espero, sabe-se lá por qual razão, a frase surgiu inteira na minha cabeça. Pior, ou melhor, ao gosto do leitor: foi dita em voz alta, sem cerimônia, pegando a todos de surpresa, inclusive eu. Depois de certo espanto, o riso brotou escancarado na turma de amigos. Luta foi convencê-los de que tal expressão, de caráter escatológico, não tinha nada a ver comigo, menos ainda com os textículos que costumo rabiscar.CU 1

Trata-se, na realidade, de um verso polêmico de Adélia Prado, uma das grandes vozes da poética nacional. Sua consagração se deu, em grande parte, aos elogios recebidos por Carlos Drummond: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo – esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis”. Mais calmos, quiseram conhecer essa poeta que encanta ao misturar religiosidade com erotismo, nascida numa pacata cidade do interior de Minas Gerais. CU 5Comecei dizendo que o verso faz parte de um belo texto de sua autoria, intitulado Objeto de amor, constituído de uma única estrofe com nove versos, no qual a poeta diz ser impossível guardar, em tom lírico e pungente, esse segredo tão fundamental – “De tal ordem é e tão precioso/ o que devo dizer-lhes/que não posso guardá-lo sem a sensação de um roubo:/cu é lindo!”. Para o torpor não ser ainda maior, falei pra eles, tampouco cair no sorriso estéril, basta ler/ouvir com olhos/ouvidos de criança, esquecendo de vez a malícia dos adultos. Ou, parafraseando Oscar Wilde, não existem poemas morais ou imorais. Os poemas são bem ou mal escritos. E recitei os versos restantes aos caros amigos: “Fazei o que puderdes com esta dádiva./Quanto a mim dou graças/pelo que agora sei/e, mais que perdoo, eu amo.”

A estreia de Adélia Prado ocorreu em 1976, com Bagagem, coletânea de poesias que mereceu elogios de grandes nomes da literatura brasileira, a exemplo de Carlos Drummond, Affonso Romano, Clarice Lispector, Nélida Piñon e Antônio Houaiss. Sua obra é vasta e diversificada, englobando os gêneros lírico (poesia), narrativo (prosa) e CU 2dramático (teatro), tendo merecido inúmeros prêmios, entre eles o Jabuti, em 1978, com O coração disparado. Além de poeta e filósofa, abraçou também o magistério em Divinópolis, cidade onde nasceu e mora até hoje. A temática de seus textos gira em torno de assuntos caros à autora: espiritualismo, cotidiano e erotismo. Uma escrita autêntica, singular, sem medo de agradar ou não o leitor, como deixa claro em Com licença poética, um de seus textos mais conhecidos: “Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina./Inauguro linhagens, fundo reinos/ – dor não é amargura.”

Caso alguém tenha ficado chocado com tal afirmação, de que o cu é lindo, basta recordar que aconteceu na França, em 2013, a polêmica EXPOCU, uma exposição de fotografias sobre o ‘esfíncter anal’. O sucesso foi tamanho, em termos de público e crítica, que a exposição foi levada a outros países. E o que é mais interessante, com o rótulo de cultura. Não satisfeitos apenas com a beleza de tal orifício, os gringos ainda o batizaram de arte contemporânea em galeria de Paris. CU 4Diante disso, fica a lição para todos nós, frente ao clichê o ‘Piauí é o cu do mundo’, de que não devemos mais pular na jugular de pessoas tão desinformadas. Ao contrário, devemos tirar um sarro delas dizendo que nossa terra é uma peça artística de rara beleza. Se não entenderem, basta explicar o silogismo: O cu é lindo; o Piauí é o cu do mundo; logo, o Piauí é o lugar mais bonito do planeta.