Final de 2016, tempos de maldades, era das incertezas, somos bombardeados por PECs, reformas traiçoeiras e vemos diariamente nossos direitos sendo negados. Anunciam-se 20 anos de paralisia, 20 anos de perigo ambiental, 20 anos de ponte para o passado, privatização e venda de nossas terras aos estrangeiros. Essa dura realidade, de algum modo, só provoca desalento e desamparo. Há uma certa perda de interesse de parte da população quanto ao que vem acontecendo em nosso país. Por outro lado, reacende, em muito de nós, a vontade de não esmorecer. No final de dezembro de 2016, milhares de estudantes, trabalhadores e desempregados foram às ruas contra a PEC 55 e, no meio disso tudo, Wellington Soares lança o seu mais novo livro Cu é lindo & outras histórias (2016).

Cu é lindo - FotoUm título que, de cara, nos põe em reflexão e digressão. Se pensarmos, porém, na recorrência ao cu na literatura portuguesa, podemos seguir várias vias de leitura do livro de Wellington. Opto, então, por partir de José Saramago, em História do cerco de Lisboa. Lá, Saramago costura uma escrita que, em certo momento, carnavaliza as ações de Afonso Henrique, sobretudo quando reescreve o discurso do rei através da ironia e da paródia. No caos da guerra de reconquista de Lisboa, o personagem Afonso Henrique louva Portugal pelo avesso, citando-o como o “cu do mundo”. Segundo um crítico¹, o uso de tal expressão na fala do rei indicava a “desconstrução da nação idílica e ufanista”. Pelo crivo de Saramago, a expressão indicava a situação periférica de Portugal no panorama das nações europeias, revelando o isolamento do país em razão de sua localização geográfica e da “subalternidade cultural e civilizatória”. Sob esse fluxo da escrita de Saramago, volto meu olhar para nossa realidade brasileira e cabe a pergunta: o Brasil hoje seria o cu do mundo? Deixo no ar.

Ilustro a passagem do livro do escritor português para ressaltar também que a palavra “cu” fora e dentro da literatura é mais corriqueira do que se pensa. E nós, ai se não o tivéssemos! Para além da função excretora, o cu é cantado e decantado em poemas, qual esse de Adélia no qual Wellington Soares se inspira, em canções e até exposições.

Evoco outra ocorrência poética de nossa cepa. Momento em que Caetano pensa a nação e o modo de ser do brasileiro. No show Circuladô (1992), ele afirma que o povo brasileiro “não conseguiu criar uma nação saudável, robusta e afirmada”. Sua canção “Cu do mundo” versa: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu do mundo, esse nosso sítio) / O crime estúpido, o criminoso só/ Substantivo, comum/ O fruto espúrio reluz/ À subsombra desumana dos linchadores. A mais triste nação /Na época mais podre/ Compõe-se de possíveis /Grupos de linchadores.” (Caetano Veloso). Nada por demais atual.

O livro Cu é lindo e outras histórias, de Wellington Soares, é provocador, afiado. Nele, o humor sutil perpassa as raias da escrita. Astuto, Wellington apresenta personagens masculinos na exaltação de sua virilidade e não menospreza a pulsão da sexualidade feminina, mesmo que isso, muitas vezes, soe como “um tiro saindo pela culatra”. As crônicas de Wellington abalam concepções moralizantes muito em voga que se afirmam fruto do movimento fundamentalista introjetado na mentalidade pequeno-burguesa da sociedade brasileira.

As breves narrativas de Wellington causam fricções porque são contadas percorrendo a via do escatológico, estacionando no tubo excretor para dizer das mazelas do humano. O que vem de baixo nos atinge, visto que foca o lado obscuro das relações humanas e das relações de poder. E isso incomoda.

As mazelas, o cotidiano dos expurgados (Bauman), os sentimentos menos nobres estão na palavra-fluxo de Wellington. Noutros livros do autor, as histórias escancaram taras, dão vazão às obsessões e são sustentadas por uma visão ácido-erótica do mundo. Talvez por isso, o cronista deixe viver personagens que, na busca de concretizar seus sonhos e desejos, não medem esforço para agredir, subjugar, violentar de forma implacável a mulher, o homossexual, por exemplo. De outra feita, são esses, à sua maneira, que se impõem diante da repressão. Muitas vezes, vítima e algoz estão no mesmo patamar ético, na busca incessante de aprumar-se no mundo. No entanto, Wellington não julga e dá sua cara a tapa, expõe-se seguindo a recomendação poética de O. G. Rego de Carvalho, registrada na epígrafe do livro:

“O autor não pode ter piedade de si mesmo, tem que se expor a nu, nem que seja para o ridículo, mas tem que se expor.” (O G. Rego de Carvalho)

Nas histórias de Wellington, a palavra é correnteza, alastra-se sem amarras, colocando em xeque as relações amorosas, deixando prevalecer as relações sexuais como motor contínuo da existência do macho, que parece estar sempre com seu membro fálico querendo atestar aquela virilidade já anunciada como prêmio na esfera do privado e simbolicamente público.

Aliás, a temática da sexualidade masculina parece ser recorrente nos livros de Wellington: Linguagem dos sentidos (1992), Maçã profanada (2003), Por um triz (2007) e Um beijo na bunda (2011). Em Cu é lindo & outras histórias, a astúcia da palavra condensada revela o manuseio do cronista que vai beber primordialmente em dois grandes poetas da nossa literatura brasileira: Adélia Prado e Augusto dos Anjos. Da primeira, percebemos a fonte da concepção e do argumento apontados pelo título. Todavia, uma leitura mais atenta identifica a força dos versos de Augusto dos Anjos como estímulo e norteamento na forma de conceber o mundo dos personagens. E se confirma pela ocorrência, três vezes, em crônicas diferentes, da alusão ou referência ao emblemático poema “Versos íntimos”: “a mão que afaga é a mesma que apedreja”. Tal verso do poeta paraibano, mas mineiro de coração, é retomado em “Ciúme Vermelho”, “Deixe de frescura” e “O poeta de mau gosto”. Essa última tematiza o efeito da poesia do pré-modernista na vida literária de Wellington, quando ele afirma:

A queda definitiva, do meu conforto literário, ocorreu mesmo ao passar a vista nas duas últimas estrofes de “Versos íntimos”, seu poema mais festejado: “Toma um fósforo. Acende teu cigarro!/ O beijo, amigo, é a véspera do escarro,/ A mão que afaga é a mesma que apedreja.// Se a alguém causa inda pena a tua chaga,/ Apedreja essa mão vil que te afaga,/ Escarra nessa boca que te beija!”. (…)

Após esses versos estranhos, nunca mais fui o mesmo enquanto leitor e pessoa, deixando as ilusões de lado e encarando a vida sem mistificações. Sem falar também do próprio texto literário, encarado agora como um labirinto cuja saída precisamos desvendar. (“O poeta de mau gosto”, p. 179).

Assim, Wellington jorra histórias que insultam e não deixam seus leitores ou leitoras indiferentes. Mas isso não será novidade. O cronista de mente fértil, estrategicamente, narrativiza a recepção de seus livros, como procedimento metanarrativo. Encontramos isso, por exemplo, em diversos momentos e, especificamente, na crônica do livro homônimo Um beijo na bunda. O personagem inquiridor, “representante da repressão”, ao fazer o interrogatório, sai com esta ao personagem-narrador: “vocês costumam se beijar na bunda?”. O autor então coloca em evidência o incômodo e a curiosidade e o cinismo dos outros diante do que ele escreve.

Por vezes, o autor transita pelos caminhos dos afetos. Na doçura do viver, declara amor à Lucíola, celebra o colo materno, encanta-se com as peraltices dos netos e recorre às memórias da infância. Eis o toque da mão que afaga.

Enfim, o livro de Wellington Soares soleva o gênero crônica, e o autor passa a ser uma voz piauiense que se destaca no cenário brasileiro. Firmado como cronista no cenário literário brasileiro, Wellington está bem ao lado de Marcelino Freire, Paulo J. Cuenca, Ferrez, Michel Laub, e outros escritores de nossa literatura contemporânea.

Assunção 3

 

 

Assunção Sousa – Professora Dra. em Letras / Uespi

 

¹ROANI, Gerson Luiz. No limiar do texto, literatura e história em Saramago (2002).