Wellington Soares

Coisas e outras

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A rebeldia ainda pulsa

Minha foto com Fonseca Neto e Osmar Júnior, publicada no Facebook e Instagram, repercutiu nas redes sociais. Pelo menos, em nível local e entre a velha guarda, se assim podemos chamar, do movimento estudantil na Universidade Federal do Piauí. A ponto do Oscar de Barros, jornalista tarimbado, sugerir que eu desenvolvesse um pouco mais, a título de contextualização, esse encontro histórico.

Três ex-presidentes do DCE da UFPI: ao centro, Fonseca Neto (Travessia – 1979/1980); à direita na foto, Osmar Júnior (Nossa Voz -1981/1982); e à esquerda, Wellington Soares (Espinho -1982/1983).

Primeiro, lembro que ele ocorreu por acaso, no último dia 4, na comemoração antecipada do aniversário do Wellington Dias, nosso estimado “índio”, hoje ministro do Desenvolvimento Social e ex-governador do estado. Mais precisamente, na quadra do Centro da Juventude Santa Cabrini, bairro Vila Irmã Dulce, zona sul de Teresina, espaço socioeducativo que atende crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade.

Depois, devo dizer que é sempre um prazer reencontrar amigos queridos que, até aqui, mantêm a chama da rebeldia e o espírito de luta por um Brasil democrático. Nossos encontros, aliás, remontam a mais de quatro décadas. Datam do comecinho dos anos 1980, quando lutávamos pelo fim da ditadura militar, tendo como palco o campus da UFPI, onde fomos dirigentes do Diretório Central dos Estudantes. Sem falar ainda, óbvio, da luta por uma universidade pública, de qualidade e gratuita.

Nossos encontros remontam a mais de quatro décadas. Datam do comecinho dos anos 1980, quando lutávamos pelo fim da ditadura militar, tendo como palco o campus da UFPI, onde fomos dirigentes do DCE.

Para tanto, precisávamos de um DCE livre e combativo, uma vez que o existente era atrelado à reitoria. Logo, a serviço dos milicos e sem interesse nessas pautas. O Congresso de Reconstrução da UNE em 1979, na Bahia, do qual participamos, foi decisivo para a retomada das lutas estudantis pelo país. Inspirados na figura heroica de Honestino Guimarães, presidente da entidade assassinado pelos “homi”, os pelegos foram enxotados para felicidade geral de nossos universitários.

Quem iniciou a peleja libertária na UFPI foi o destemido Fonseca Neto com o movimento Travessia (1979/1980), reunindo um grupo de companheiros e companheiras movido pelo desejo de transformação. Dando continuidade à luta, veio a gestão Nossa Voz (1981/1982), liderada pelo intrépido Osmar Júnior, estudante de engenharia. A chapa Espinho (1982/1983), encabeçada por mim, surgiu em seguida, não parando mais nossa utopia por uma educação emancipadora.

Sensação reconfortante é ver os “baderneiros” de ontem, como nos tachavam os reacionários da época, dando nossa contribuição profissional, cada um à sua maneira, ao engrandecimento da sociedade brasileira. No aspecto político, Osmar Júnior foi, entre nós, quem alçou voo mais alto – elegendo-se vereador, deputado e vice-governador do Estado. Por outro lado, Fonseca Neto destaca-se como historiador, professor, membro da APL e um dos intelectuais mais respeitados dentro e fora do Piauí. Quanto a este aprendiz de quase tudo, coube embriagar-se de cultura, organizando feiras e saraus literários; de amor pelo magistério de literatura e língua portuguesa, levando a “galera” ao ensino superior; e, não bastasse, publicando livros à mão-cheia.

Que encontros como esse possam ocorrer, de preferência numa mesa de bar, com mais assiduidade. A fim de celebrar a amizade, acalentar as utopias, festejar a eleição do Lula e pensar estratégias para combater o fascismo bolsonarista, inclusive dentro da UFPI. Porque, de uma coisa estejam certos: em nosso coração ainda pulsa rebeldia, indignação, vida, amor e vontade de mudar o mundo.

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Wellington Soares é professor e escritor.

 

 

 

O dia em que Caetano ligou e não pude atender

Foi isso mesmo que aconteceu, pode crer. Juro por tudo que é sagrado no mundo. Caetano ligou, mas, infelizmente, não pude atender sua ligação. De qual Caetano estou falando, você deve está se perguntando. Não é mesmo? Quem sabe duvidando que seja do cantor e compositor baiano, um dos idealizadores da Tropicália. Afinal, quem, em sã consciência, no Brasil, cometeria tamanho desatino? Pior que fui eu, ninguém menos do que eu, Wellington Soares, professor de literatura do ensino médio em Teresina e admirador da obra e da figuraça do Caetano Emanuel Viana Teles Veloso.

Tendo um tiquinho de paciência, conto essa história para você. Tudo começou em junho do ano passado, quando me submeti a uma cirurgia robótica, em São Paulo, a fim de extrair um câncer de próstata. Antes de apagar, ao tomar a anestesia, no Hospital 9 de Julho, prometi que, escapando, iria a Salvador prestar uma reverência a Iemanjá,  no dia 2 de fevereiro do ano seguinte. Dito e feito, dado o sucesso da cirurgia e, sobretudo, à graça de ter alcançado a cura do câncer.

Como íamos de carro de Teresina a Salvador (uns 1.160 km), perguntei a Lucíola – minha companheira – o que ela achava da gente dar um pulo em Santo Amaro, terra natal de Caetano, para levar-lhe cajuína e, com um pouco de sorte, conhecê-lo pessoalmente. Forma singela de expressarmos nosso carinho por ele, ainda mais depois de ter feito a música Cajuína, uma instigante tirada filosófica em homenagem a Dr. Heli, pai de Torquato Neto: “Existirmos a que será que se destina?”.

Quando chegamos lá, depois de pernoitarmos em Feira de Santana, não foi difícil encontrar a casa. Todos na cidade a conheciam – o sobrado de número 179, no centro de Santo Amaro –, bem como sentiam orgulho de ter um conterrâneo tão ilustre nacionalmente. Sem falar que é filho de dona Canô, matriarca da família Veloso e senhora muito querida no município, mesmo já tendo, aos 105 anos, se encantado em 2012. Infelizmente, Caetano e os outros irmãos, para nossa tristeza, não se encontravam na hora.

Coube ao Niro, morador da casa, nos dar as boas-vindas e receber o fardo com as 12 garrafas de cajuína, prometendo entregá-las em mãos. Ele nos pediu, gentilmente, que voltássemos na sexta (2), pois todos estariam presentes, incluindo o Caetano, na festa de Nossa Senhora da Purificação de Santo Amaro. Tomado de forte emoção, escrevi, em letra de garrancho, um bilhete ao eterno ídolo: “Caetano, estivemos aqui para deixar, em nome dos piauienses, umas cajuínas pra você e seus familiares tomarem. Obrigado por tudo – por ter sido amigo do Torquato Neto, pela obra artística genial e pela incansável luta em defesa da democracia. Abraçaço”. Caetano recebeu também, em sua homenagem, o belo texto Veloso, o sabor é nosso, do poeta Nathan Sousa.

Antes de seguirmos, demos umas voltas na cidade, onde respiramos simplicidade, muita fé e acolhimento benfazejo da parte de seus habitantes. O desejo de retornar era grande, mas sabíamos que, dificilmente, face ao intenso roteiro em Salvador, regressaríamos a Santo Amaro. Sendo isso, de fato, o que aconteceu. O que não impediu de termos à noite, em pleno dia 2, quando retornávamos ao hotel, uma agradabilíssima notícia do Niro: “Caetano não só recebeu as encomendas – as cajuínas, o bilhete e o poema – como ficou emocionado”.

A fim de dar veracidade à mensagem, via WhatsApp, ele enviou duas fotos nas quais fez questão de registrar o acontecimento. Na primeira, Caetano segura uma cajuína e, feliz com a surpresa, mostra às pessoas na sala; na segunda, lê, com atenção, os textos recebidos. Com o coração disparado, dei pulos e cambalhotas de alegria. A felicidade só não foi completa, entretanto, por não ter atendido às ligações do Niro: “Liguei pra você a pedido do Caetano, ele queria agradecer pela sua amabilidade, pelos presentes”. Puto com o vacilo, expliquei que não atendi por estar na festa Enxaguada de Yemanjá, comandada por Carlinhos Brown, uma batucada eletrizante impossível de ouvir qualquer chamada.

Talvez como consolo, Niro disse que tinha mais uma coisinha: “Bethânia gostou tanto da cajuína que levou três garrafas pra ela”. Algumas respostas vieram, naquele momento, à provocação do sentido de existirmos – o prazer em tomar suco tão delicioso, o contato direto com as belezas da cultura nordestina, o embriagar-se com a poética musical dos irmãos Veloso (Caetano e Bethânia), a celebração carnavalesca da vida em Salvador, a coragem em macetar o fascismo e o apocalipse evangélico e, principalmente, em conhecer gente legal a exemplo do Niro.

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Wellington Soares é professor e escritor.

 

 

 

 

Professores que fizeram uma revolução contando histórias

Por Ignácio de Loyola Brandão

Iaiá era o apelido familiar de Cristina Machado, minha madrinha de batismo e minha primeira professora. Nos anos 40, ela tinha uma pequena escola Primária, hoje Fundamental, em Araraquara, onde nasci. E quando meu pai comunicou que ia me matricular no Grupo Escolar, de ensino público, ela reivindicou: “Faço eu a educação de meu afilhado”. E o fez por alguns meses até que, por razões que ficaram sem entendimento, ela teve de vender sua “escolinha”, como dizia cheia de carinho. Emocionalmente nunca se recuperou, foi uma longa amargura. Passou a dizer aos mais próximos: “Você não sabe o que é ser professora e não dar aulas, um vazio”. Mistério longínquo que pretendo colocar em um conto ou romance. Iaiá morreu há décadas.

Em l965, quando levei a ela meu primeiro livro publicado, Depois do Sol, ela me disse: “Agora vejo que valeu. Você aprendeu logo as letras. Teve dificuldade no F e não entendia para que servia o W. E me lembro no dia em que chegou em casa e me disse que tinha lido A Bela Adormecida, primeiro livro que leu de cabo a rabo, e não entendia como uma princesa morta revivia com um beijo. Eu te expliquei que isso era a magia. A literatura é mágica.”

Hoje, depois de ter escrito 50 livros, sei o que ela quis dizer. Se sou um escritor e cheguei à Academia Brasileira de Letras e também à Paulista, foi por causa de meus professores. Porque, se eles são fundamentais na formação de um cidadão, são mais ainda na de um escritor.

Hoje, se sou um escritor, foi por causa de meus professores. Se eles são fundamentais na formação de um cidadão, são mais ainda na de um escritor.

 

A dúvida de uma professora

Jamais esqueço Lourdes Prado, que me ensinou, depois da Iaiá, que escrever “é olhar para a vida, conversar com as pessoas, perguntar, mas, principalmente, ouvir, sentir e passar para o papel.” E Ruth Segnini, a terceira mestra que nos dizia: “Escrever pouco, dizendo muito, é fundamental, aprendam a economizar palavras.”

As duas fizeram algo essencial, nos davam listas de palavras para trazer o significado, tínhamos de perguntar aos pais, tios, avós e, também, descobrimos o dicionário. “Quanto mais palavras souberam, melhor vão escrever,” elas repetiam como um mantra.

Quando tomei posse na Academia Brasileira de Letras, Ruth me enviou este bilhete: “Ignácio, a vida inteira carreguei uma dúvida. Teria eu escolhido certo a carreira de ensinar? Neste momento, descobri que sim. Estou aliviada.”

Ruth estava ainda viva, passara dos noventa anos, quando tomei posse na Academia Brasileira. E, por intermédio do irmão dela, me enviou este bilhete: “Ignácio, a vida inteira carreguei uma dúvida que, às vezes, me angustiava. Teria eu escolhido certo a carreira de ensinar? Neste momento, em que você toma posse nessa academia, descobri que sim. Estou aliviada.” Antes de meu discurso, li esta mensagem, aplaudida pelos meus companheiros imortais.

A palavra foi feita para dizer

No ginásio, Jurandyr Gonçalves Ferreira nos entregou uma dica fundamental: “Sigam Graciliano Ramos, que dizia: a palavra não foi feita para enfeitar. E sim para dizer.” Assim descobri uma obra- prima, Vidas Secas, que considero dos melhores romances de nossa literatura. Joaquim Pinto Machado, ou Machadinho, que lecionava química e português no curso científico, pedia: “Tragam as palavras mais estranhas, loucas, que encontrarem em um livro, ou dicionário ou jornal e revista.” Depois, ordenava: “Agora, escrevam uma história usando essas palavras.” Aprendemos a frequentar a biblioteca municipal  e a pesquisar.

Tive uma professora chamada dona Mariquita, que lecionava ciências naturais, ou biologia. Ao explicar as células ou qualquer outro ponto, ela nos contava histórias e entendíamos tudo, seduzidos. Era fascinante. Mariquita foi a mãe de Ruth Cardoso, casada com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, portanto, a primeira-dama,  também professora, que, com o Solidariedade, batalhou pela alfabetização de milhões de crianças.

A escola onde se lia muitos livros

Em toda minha carreira, a história que mais me impressionou, envolvendo professores e alunos, aconteceu no Piauí.  Há vinte anos, ao chegar em Teresina para participar do SALIPI, Salão do Livro  do Piauí, evento tradicional, fui recebido pelo cronista Wellington Soares, um dos idealizadores do evento, que, a caminho do hotel, me disse que na cidade havia  uma escola em que os alunos liam de cinco a oito livros por mês.

– O quê? No Brasil? Nem na USP ou na UnB, de Brasília, ou na Sorbonne, na França, ninguém faz isso, está inventando?

– Vou te mostrar, porque foi uma revolução provocada por professores.

Percebi que ele mudou de direção e, em vez de irmos para o centro da cidade, onde estava meu hotel, seguiu rumo à periferia. Rodamos até chegar a um bairro longínquo. Estacionamos diante de uma construção que tinha muros brancos, limpíssimos, sem um único grafite, rabisco, frase, desenho. Nas janelas, nenhum vidro quebrado, nenhuma grade.

– É aqui!

Acostumado a escolas de periferia em São Paulo, Rio de janeiro e outras, com muros altos, pesados, grafitados, janelas com barras de ferro, portões fechados com correntes, perguntei:

– É uma escola? E que bairro é este?

– A escola é a Municipal Casa Meio Norte, bairro Vale Quem Tem. Dos mais carentes da cidade, habitado por marginais de todos os tipos, violento. Uma das regiões mais complexas de Teresina.

– E quem estuda aqui?

– Ensino fundamental, do primeiro ao quinto ano, e os alunos são filhos desta gente carente, muitos marginais.

– Aqui é onde leem de cinco a oito livros por mês?

– É!

Entrei, incrédulo. Fui recebido por mulheres nordestinas magras, com enorme olhos abertos em um sorriso de satisfação, abismadas com a  súbita presença de um escritor de renome. Eram as professoras que tinham feito a “revolução”.  Fomos direto à biblioteca, bem abastecida e fui olhando fichas de retirada, incontáveis. Pois havia mesmo alunos que chegavam a oito livros por mês. Cinco, a maioria. Autores como Ziraldo, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Pedro Bandeira, Marina Colasanti, Ruth Rocha, Silvia Orthof, Monteiro Lobato, Eva Furnari, e  também Robinson Crusoe, Tarzan,  Harry Potter, Guerra nas estrelas, etc.  Fui de classe em classe, recebido com estupefação. Logo se descontraíram, uma jovem me mostrou  um poema no caderno.

“Se um dia eu

na droga cair,

faça tudo

para que dela eu possa sair”.

“O pai é dos maiores traficantes do estado”,  informou a diretora. Fui de classe em classe, me mostravam contos, crônicas, todo tipo de textos,  perguntavam como era ser escritor, fomos ficando íntimos, felizes, me apalpavam. Passei quase a tarde toda ali, não queriam me deixar sair, comi um bolo de mandioca generoso, mandado buscar, às pressas, com café, em uma cozinha limpíssima – que os alunos mesmo limpavam, porque, disse a diretora, a escola é deles, eles cuidam.

Então, as professoras e Wellington me contaram a história. Fiquei siderado. Aquela tinha sido a pior escola da cidade, do Brasil, do mundo.  Bagunça total, rebeldia absoluta. Era impossível dar aula, não havia disciplina, normas, ninguém obedecia ninguém, fumavam maconha, brigavam, assediavam as meninas, faziam o diabo, diante de professores impotentes. Então, após mil tentativas a decisão foi a de fechar a escola, jogar a toalha.

Foi quando um grupo de professorinhas determinadas, algumas da própria escola, outras vindas de outros bairros, pediram um tempo para assumirem. “Temos uma ideia, queremos tentar”. Não disseram qual era a ideia, tratava-se de uma experiência emocional.  Assumiram. E cada dia, de pé na frente da turba, o que faziam?  Contavam histórias clássicas, folclóricas, anedóticas bem humoradas, de todo os gêneros. Nada mudou, a bagunça, a rebeldia continuava. Então, uma das professorinhas percebeu que duas meninas, caladas, prestavam atenção. E ambas contaram a outras, e duas viraram, cinco, cinco se tornaram dez, homens e mulheres foram mudando gradualmente. O interesse se propagou, as classes foram silenciando, se comportando silenciosas, a ouvir, fazer perguntas, contando casos do próprio bairro, como fossem cronistas locais.

Um salto para as alturas

O silêncio e a atenção dominaram por fim, e as professoras passaram a dar aulas de matemática, português, história, geografia, etc, por meio de histórias clássicas ou por elas adaptadas, inventadas. Desenvolveram os próprios métodos que funcionaram. Não foi fácil, nem de uma hora para a outra, mas foram persistentes, resilientes, determinadas, quase se esgotavam e se refaziam. Venceram. As professoras tiveram a adesão de outros professores, idealistas, que pediam para serem transferidos para lá, adorando atuar em uma “revolução” didática, que se firmou e cresceu agigantou-se. No final de um tempo, a Casa Meio Norte recebeu um prêmio como uma das melhores escolas da capital, depois do estado, enfim, do Brasil. Cresceu, conseguiu patrocínio de empresária, tornou-se modelo. Qual é o método hoje? De acordo com Rutneia Vieira, coordenadora pedagógica da unidade de ensino, “os alunos recebem orientações singularizadas e são estimulados a conversar sobre suas emoções, com um currículo alicerçado na leitura e no raciocínio lógico”.

Ao voltar a São Paulo, publiquei uma crônica sobre a escola, que repercutiu tanto que a incluí em meu livro O Mel de Ocara. Aquele grupo audaz, de professores de vinte anos atrás, contempla hoje excelentes resultados educacionais.

A Casa Meio Norte acaba de obter o melhor Índice de Desenvolvimento da Educação (IDEB) do município. Dos anos inicias, com nota 7,9, saltaram para uma proficiência de 198,35 em 2011 e dali para 274,04 em 2021, na disciplina de Língua Portuguesa. Em Matemática, o último resultado é de 261,57.

Não fossem aquelas professorinhas a contar histórias, o que seria hoje?

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NÃO LEIA, PAI!

Por Wellington Soares, professor e escritor

Foi com estranheza que ouvi da Carolina, minha filha, essa recomendação acima. Ela se referia ao livro Rita Lee: outra biografia, lançado este ano pela Editora Globo. Diante do meu espanto, disse que o relato era triste, tristíssimo, daqueles que partem o coração de quem lê. Que tomada por forte emoção, parou a leitura nos primeiros capítulos. Desobediente como sempre, dei uma pausa em Salvar o fogo, o novo romance de Itamar Vieira Júnior, e caí de olhos na segunda autobiografia da nossa rainha do rock nacional, falecida recentemente aos 75 anos.

Ao dar cabo das quase 200 páginas, de um fôlego só, liguei pra Carol dizendo que havia amado o livro. Que, apesar do tema abordado – o tratamento a que se submeteu contra um câncer de pulmão –, Rita Lee nunca foi tão Rita Lee quanto nesse texto doloroso. Toda sua rebeldia e irreverência, bem como sua coragem em contrariar expectativas, estão presentes na linguagem crua e irônica que adotou. A começar por defender a eutanásia, não doirar os efeitos da rádio e quimioterapia e, em tom de humor, batizar o quisto cancerígeno de Jair, uma referência jocosa ao ex-presidente da República, a quem culpava pela morte de milhares de brasileiros durante a pandemia.

O câncer é uma doença das mais traiçoeiras que existe. Trabalhando em surdina, ele aparece quando menos se espera. Foi o que aconteceu com Rita Lee. Ao tomar a segunda dose da vacina contra a Covid, numa UBS de Taboão da Serra/SP, passou a noite tossindo e escarrando uma gosma estranha. Acreditando ser uma bronquite, o exame indicou câncer no pulmão. Como em todo paciente, o diagnóstico foi devastador, virando sua vida de cabeça para baixo. O consolo e alguns momentos de leveza, ela experimentou, dentre outras coisas, em contato com a natureza do sítio onde morava, com o amor do maridão e dos filhos e, sobretudo, com o carinho dos animais que criava.

Uma das passagens chocantes do livro, descrita com franqueza e honestidade, remete ao segundo ciclo da sua quimioterapia: “Fui ao banheiro fazer o número dois e qual não foi meu espanto quando fui me lavar e senti algo pendurado no meu cu que não era cocô”.  Pouco ligando à sensibilidade do leitor, Rita prossegue sem papas na língua, marca registrada da sua escrita: “Com nojo, usando papel higiênico puxei e a coisa foi saindo. Digo ‘coisa’ porque era uma espécie de tripa cor de carne crua com mais ou menos dez centímetros de comprimento”.

Finalizada a leitura, percebi o verdadeiro motivo do apelo feito pela minha filha. Além da tristeza do relato, Carolina queria me poupar dos detalhes de um tratamento oncológico em fase de metástase. Ainda mais porque seu “dad” acabou de extrair, por meio de cirurgia robótica, um câncer de próstata cujo resultado final continua em aberto. Logo, nada de grandes abalos neste momento de fragilidade emocional e física. Mas confesso que a ideia da eutanásia, defendida por Rita Lee, faz bastante sentido em determinadas circunstâncias de sofrimento. De preferência, com a gente deitado numa rede – num eterno dormir – e ouvindo Ovelha negra, Só de você, Flagra, Caso sério, Ando meio desligado, Mania de você, Lança perfume e tantas outras lindas canções da “Doce veneno” do nosso rock.

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Felipi à vista

Não é que vem aí, depois do sucesso de 2022, a 2ª edição da Feira da Literatura Piauiense. Ocorrerá entre os dias 31 deste mês e 2 de junho, das 10h às 22h, no Riverside Shopping. Os homenageados são dois expressivos nomes das nossas letras: Mário Faustino, poeta/tradutor/crítico/jornalista celebrado nacionalmente, e Clara Melo, jovem escritora que desponta como romancista e roteirista. O lema permanece o mesmo – Uma literatura que dá gosto de ler.

Os objetivos da Felipi, que   motivaram o surgimento do evento, são: “valorizar, divulgar e comercializar a produção literária piauiense, com seus respectivos autores, a fim de torná-la mais conhecida e consumida dentro e fora do estado. Além de fortalecer as editoras e livrarias locais”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nas mesas-redondas desta edição, destacam-se assuntos que levantam questões instigantes da realidade local. Primeiro, o que falta para a literatura piauiense ser adotada nas escolas e universidades do Estado? Segundo, como anda nossa menosprezada literatura de cordel? Terceiro, alguém se lembra, por acaso, de nossos escritores negros e suas obras? E, por fim, quem dos nossos autores têm se dedicado à temática erótica? Tais respostas ficarão a cargo de convidados de notório saber, bem como da plateia.

Como em toda feira literária que se preza, boa parte da programação focará as crianças, futuros leitores e, quiçá, escritores também. Para tanto, haverá um espaço dedicado somente a elas, batizado de Felipinha, onde a tônica será o lançamento de obras infantis e a contação de histórias: “A bolinha mágica”, “Cabeça de cuia”, “As aventuras de Mily” e “O computador da mente”.

As atrações musicais terão, a exemplo do ano passado, momentos privilegiados ao longo dos três dias. Nos turnos manhã e tarde, nada menos que Flávio Augusto, Amanda Santi, Preto Kedé, Mário MC e Samba no Coreto. À noite, os showzaços de Patrícia Mellodi, As Fulô do Sertão e Validuaté.

Coroando a Felipi, teremos os saraus de Fernanda Paz (Rio ao lado), Elio Ferreira (Roda de poesia & tambores) e João Henrique Vieira (Palavra em torto canto), com seus respectivos poetas convidados. Sem falar ainda de recitais com o Coletivo Piauí Poético e Coletivo Sociedade Piauiense de Poesia.

Afinal, necessitamos de literatura ao lado, parafraseando Mário Faustino, envolvendo a gente, nos abraçando, de forma profunda e livre, como um ser amado e transformador.

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