Por Wellington Soares, professor e escritor
Foi com estranheza que ouvi da Carolina, minha filha, essa recomendação acima. Ela se referia ao livro Rita Lee: outra biografia, lançado este ano pela Editora Globo. Diante do meu espanto, disse que o relato era triste, tristíssimo, daqueles que partem o coração de quem lê. Que tomada por forte emoção, parou a leitura nos primeiros capítulos. Desobediente como sempre, dei uma pausa em Salvar o fogo, o novo romance de Itamar Vieira Júnior, e caí de olhos na segunda autobiografia da nossa rainha do rock nacional, falecida recentemente aos 75 anos.
Ao dar cabo das quase 200 páginas, de um fôlego só, liguei pra Carol dizendo que havia amado o livro. Que, apesar do tema abordado – o tratamento a que se submeteu contra um câncer de pulmão –, Rita Lee nunca foi tão Rita Lee quanto nesse texto doloroso. Toda sua rebeldia e irreverência, bem como sua coragem em contrariar expectativas, estão presentes na linguagem crua e irônica que adotou. A começar por defender a eutanásia, não doirar os efeitos da rádio e quimioterapia e, em tom de humor, batizar o quisto cancerígeno de Jair, uma referência jocosa ao ex-presidente da República, a quem culpava pela morte de milhares de brasileiros durante a pandemia.
O câncer é uma doença das mais traiçoeiras que existe. Trabalhando em surdina, ele aparece quando menos se espera. Foi o que aconteceu com Rita Lee. Ao tomar a segunda dose da vacina contra a Covid, numa UBS de Taboão da Serra/SP, passou a noite tossindo e escarrando uma gosma estranha. Acreditando ser uma bronquite, o exame indicou câncer no pulmão. Como em todo paciente, o diagnóstico foi devastador, virando sua vida de cabeça para baixo. O consolo e alguns momentos de leveza, ela experimentou, dentre outras coisas, em contato com a natureza do sítio onde morava, com o amor do maridão e dos filhos e, sobretudo, com o carinho dos animais que criava.
Uma das passagens chocantes do livro, descrita com franqueza e honestidade, remete ao segundo ciclo da sua quimioterapia: “Fui ao banheiro fazer o número dois e qual não foi meu espanto quando fui me lavar e senti algo pendurado no meu cu que não era cocô”. Pouco ligando à sensibilidade do leitor, Rita prossegue sem papas na língua, marca registrada da sua escrita: “Com nojo, usando papel higiênico puxei e a coisa foi saindo. Digo ‘coisa’ porque era uma espécie de tripa cor de carne crua com mais ou menos dez centímetros de comprimento”.
Finalizada a leitura, percebi o verdadeiro motivo do apelo feito pela minha filha. Além da tristeza do relato, Carolina queria me poupar dos detalhes de um tratamento oncológico em fase de metástase. Ainda mais porque seu “dad” acabou de extrair, por meio de cirurgia robótica, um câncer de próstata cujo resultado final continua em aberto. Logo, nada de grandes abalos neste momento de fragilidade emocional e física. Mas confesso que a ideia da eutanásia, defendida por Rita Lee, faz bastante sentido em determinadas circunstâncias de sofrimento. De preferência, com a gente deitado numa rede – num eterno dormir – e ouvindo Ovelha negra, Só de você, Flagra, Caso sério, Ando meio desligado, Mania de você, Lança perfume e tantas outras lindas canções da “Doce veneno” do nosso rock.
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