Wellington Soares

Coisas e outras

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ENEM: Haja coração!

Além do carnaval, fevereiro é o mês de o Inep divulgar o resultado do Enem 2021. Para ser mais exato, será no próximo dia 11. Haja coração, do estudante, até essa data. Dependendo das notas obtidas, nas cinco áreas do conhecimento, ele terá motivo ou não para bebemorar. Antes, vai enfrentar uma via-crúcis das grandes. De sofrimento e noites mal dormidas. Tão penosa, ou mais, quanto a angústia experimentada nas provas. Fala-se da inscrição no Sisu, de 15 a 18 deste mês. O Sisu é o Sistema de Seleção Unificada que leva ao ensino superior. Sobretudo, às universidades públicas, espalhadas pelo país, em razão do caráter nacional do vestibular. Ter calma, confiar no próprio taco e tomar suco de maracujá são coisas mais que aconselháveis neste momento.

Enquanto a pontuação não chega, o aluno dá uma espiada no termo de adesão da universidade onde pretende estudar. Todas as informações ele vai encontrar lá: cursos e vagas ofertados, turnos disponíveis, nota de corte e, importante observar, os programas de assistência estudantil. Sem esquecer também, sob pena de “dançar”, os documentos exigidos no ato de efetivação da matrícula. Afinal, são apenas seis dias, a contar de 23 a 28 de fevereiro, para o enemzeiro dar conta desse processo. E, como sabemos, não é novidade nenhuma, que o brasileiro deixa tudo pra última hora. Como a concorrência é pesada – 2,1 milhões de candidatos disputando pouco mais de 200 mil vagas –, qualquer descuido é fatal.

Quem fez o Exame Nacional do Ensino Médio, em novembro passado, acabou sendo beneficiado sem querer. A razão? O número de participantes foi o menor registrado desde 2005. Essa queda resulta, a rigor, de dois fatores. Primeiro, o estrago causado pela pandemia, que afetou tanto o emocional como disseminou o medo na “galera”. Segundo, a desastrosa condução do Enem pelo Ministério da Educação (MEC), cuja gestão autoritária levou servidores a pedirem exoneração do Inep, instituto responsável pela execução do certame. Basta comparar os números: 8,7 milhões de candidatos em 2014, no governo Dilma Rousseff, e 3,1 milhões em 2021, no governo Jair Bolsonaro. Desnecessário dizer que esse contingente enorme de excluídos tem origem em famílias pobres, são pretos e vêm de escola pública.

Caso seu nome não apareça na chamada regular, a ser divulgada no dia 22/02, o candidato ainda gozará da prerrogativa de se inscrever na lista de espera – de 22 a 28 do presente mês. E o que é melhor, o Inep ainda disponibiliza, conforme sobrem vagas, outras listas de espera. Ao longo do ano, ocorrem várias chamadas no primeiro e no segundo semestres. O estudante só não pode é abrir mão, depois de ter ralado tanto, do sonho de um futuro promissor. Sem falar também das oportunidades abertas com o Prouni (Programa Universidade para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), que dão acesso a faculdades privadas. Até a confirmação da matrícula, recomenda-se cantarolar, no espírito festivo do carnaval, a velha marchinha do Pinduca: “Alô papai, alô mamãe/ Põe a vitrola pra tocar/ Podem soltar foguetes/ Que eu passei no vestibular”.

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Wellington Soares é professor e coordenador do Pré-Enem Seduc Piauí.

ROGÉRIO NEWTON: Fazemos literatura à procura de sentido para a vida

ENTREVISTA Por Wellington Soares, professor e escritor

Rogério Newton, ao centro, entre J L Rocha do Nascimento e Wellington Soares

Quando me indagam quem eu gostaria de ser ao crescer, minha resposta é imediata: Rogério Newton. Sem titubear, na bucha. Quer saber a razão? Simples, pois ele reúne tudo o que gostaria de encarnar: filho de Oeiras, cronista dos melhores, poeta, defensor público, romancista, praticante de iôga, contista, vegetariano, mestre em Direitos Humanos, um cara legal, ligado ao Teatro do Oprimido, ambientalista, nascido na Rua das Portas Verdes, democrata convicto, amante da cultura e, acima de tudo, a leveza em pessoa.

Mas é como escritor multifacetado, jogando um bolaço em todos os gêneros, que minha admiração por ele só aumenta. Na crônica literária, sobretudo, na qual desponta como biscoito fino para deleite dos leitores. O cotidiano, as memórias, os amores, a natureza fluindo sob o olhar sensível de um autêntico poeta da vida e da linguagem. Daqueles que tocam fundo a alma da gente, como podemos aferir nos livros Ruínas da memóriaConversa escrita n’água e Grão, entre outros.

Rogério fez parte de uma geração cultural, batizada de Pós-69, que deu uma boa chacoalhada no cenário artístico de Teresina. Não só lançando revista, organizando exposições e saraus, mas dando umas cutucadas na ditadura militar, na falta de liberdade e na censura vigentes no Brasil da época. E o mais importante, passado batido pela nossa crítica, o surgimento de três grandes nomes da contemporânea literatura piauiense: ele, na crônica; Paulo Machado, na poesia; e, fechando o trio, Aírton Sampaio, no conto.

Embora tenha saído de Oeiras na adolescência, constatamos que nossa primeira capital, desde a arquitetura colonial/imperial aos banhos no riacho Mocha, passando pelos becos/ruas/casarões até as procissões religiosas, nunca saiu dele e da sua obra. Como uma paráfrase, fincada no coração, dos antológicos versos de Carlos Drummond: “Oeiras é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!”.

No fundo, será uma alegria degustar esta conversa, muito instigante, a fim de compartilhar o sentido da vida, mesmo um tantinho apenas, que os textos de Rogério Newton têm descortinado ao longo dos anos – inclusive escrevendo em Revestrés desde a nossa primeira edição. Terá ele conseguido?

Que acha do que disse Aldous Huxley, escritor inglês, sobre “a memória de todo homem é sua literatura particular”?

É uma frase bonita. Os escritores gostam de fazer frases assim. Mas parece que ele tem razão: é difícil imaginar uma literatura ou a vida mesmo sem memória, que parece um reservatório misterioso de coisas guardadas, boas e ruins, sábias e tolas. O escritor recorre à memória para escrever, mesmo que ele crie uma obra ficcional. Mas aí ele fatalmente tem que fazer uma seleção do que está armazenado na memória para criar o que quer que seja. Por isso, a literatura é uma construção, ou como diria meu amigo Paulo Machado: literatura é reconstrução. E aí reside o mistério. Penso que toda pessoa humana faz sua própria “literatura particular”, à procura de sentido. Todos nós estamos procurando sentido para a vida. Mesmo numa conversa de botequim alguém estará procurando (re)construir alguma coisa. Agora, há perigos como o esquecimento e o desprezo para com a memória. Por exemplo, há pessoas que defendem a volta da ditadura no Brasil. Pessoas sensatas não fazem isso. Millôr Fernandes é autor de uma máxima que diz mais ou menos o seguinte: o futuro é o passado usado. Há algo mais desanimador do que isso? A memória é dádiva preciosa. O mais importante é usá-la adequadamente para que resulte em coisas potentes e benéficas para a humanidade.

Todos nós estamos procurando sentido para a vida. Mesmo numa conversa de botequim alguém estará procurando (re)construir alguma coisa.

De que maneira ser filho de Oeiras, nossa primeira capital, impacta sua vida e obra?

O. G. Rego de Carvalho disse uma vez que não seria escritor se não tivesse nascido em Oeiras. Não chego a tanto, mas acho que a cidade contribuiu muito para eu ser escritor. Em primeiro lugar, Oeiras tem uma atmosfera sugestiva. Refiro-me à sua arquitetura, colonial e imperial, de ruas, becos, casarões, largos em um relevo que não é plano. A cidade histórica vista, por exemplo, do Rosário e do Morro da Sociedade, oferece imagens de telhados e quintais. Cada ângulo de visão tem um recorte diferente. A primeira impressão talvez leve a um impulso lírico – e os autores da cidade enveredam muito por esse gênero. Mas tudo também reivindica incursões épicas, que considero escassas. Por que os autores preferem o lírico e não o épico? Por outro lado, além da arquitetura histórica, Oeiras possui múltiplas memórias, a partir das quais pode-se (re)construir muita coisa não só no campo da arte, da poesia e da literatura, mas também da história, da geografia, da sociologia, das etnias, da vida social etc. Matéria-prima é que não falta.

A influência de Oeiras na minha vida deve-se muito ao fato de eu ter vivido a infância toda lá e uma parte da adolescência. A casa onde eu e nove dos meus irmãos nascemos ficava de porta e janelas abertas durante o dia. Não havia um limite rígido entre a casa e a rua. Facilmente, eu saía para jogar bola, tomar banho no riacho ou simplesmente perambular por lugares, como a feira, que achava fascinante. Os primeiros violeiros eu vi na feira. A miséria e a fartura e muitas outras coisas misturadas, como as tropas de jumentos que carregavam gêneros alimentícios, provenientes das pequenas propriedades familiares. Os botecos sórdidos com seus bêbados e prostitutas, os tipos humanos etc. Numa época em que não havia chegado o supermercado e o fast-food, a feira era um espelho da sociedade.

Acho que até início da década de 1970, havia uma convivência mais ou menos harmônica entre a cidade histórica e a outra Oeiras que passou a ser construída. Claro, ninguém espera que uma cidade seja a mesma o tempo todo. Mas Oeiras está pagando preço muito alto pela sua expansão urbana, que se dá sem critérios claros e sem considerar adequadamente as áreas verdes e as belezas naturais, que lhe conferiam muita graça, especialmente o leito e as margens do Riacho Mocha, transformado em esgoto na área urbana, e os morros que circundam a cidade.

Outras coisas fascinavam meus olhos: os eventos religiosos; procissões como teatros a céu aberto; banhos e passeios no Riacho Mocha e nos morros; os ensaios da banda de música no antigo sobrado do Círculo Operário; o cinema etc. Eu ouvia os adultos falarem em histórias. Havia as bibliotecas, como a que pertenceu ao que fora o Ginásio Municipal Oeirense. Foi lá que encontrei Jorge Amado e Lima Barreto. Na biblioteca pública municipal, havia mais de uma coleção de Machado de Assis. Um dia apareceu na minha casa um exemplar de Somos Todos Inocentes, de O. G. Rego de Carvalho. Esses autores eu os li antes de sair para estudar em Teresina. Eu já tinha em Oeiras referências de escritores e músicos residentes na cidade. Próximo a mim, na Rua do Fogo, morava o escritor Expedito Rêgo. Na Rua da Feira, Possidônio Queiroz. Na Rua do Izidro, Costa Machado. Na minha família mesmo, havia um escritor, meu tio Gaudêncio Carvalho, irmão do meu pai, que guardava como uma preciosidade o livro Poemas da Íntima Habitação, primeiro lugar no primeiro concurso literário de Brasília (1961), cujo prêmio foi entregue pelo poeta Manuel Bandeira, convidado especial para a solenidade de premiação.

Gosto de pensar em Oeiras como um microcosmo: tem tudo que o Universo possui, em doses mínimas e, às vezes, em doses cavalares. Percebi isso depois que saí da cidade. O distanciamento físico, o aprendizado em outras terras, o alargamento de horizontes pelo estudo e por outras vivências me proporcionaram outras visões, outras leituras, outras formas de sentir. Oeiras faz parte da minha “literatura particular” e da literatura que produzo. Saí de Oeiras, mas Oeiras nunca saiu de mim.

Acho que não seria cronista se, além dos jornais, revistas e filmes, não tivesse lido boas obras de ficção, de poesia, de teatro, letras de música, histórias em quadrinho e, naturalmente, crônicas.

Há quem veja em suas crônicas traços de poesia, um tipo de “cronemas”. Esse aspecto o aproxima ou o distancia dos leitores?

O escritor Aírton Sampaio, na orelha do livro Grão, foi quem falou que minhas crônicas eram “cronemas”, ou crônicas-poemas. Fico todo orgulhoso com esse elogio, porque, de uma maneira ou de outra, a poesia é quase uma presença “obrigatória” na crônica literária. Foram necessárias décadas para evoluir a um texto leve, aparentemente simples, com seu “quantum satis” de poesia, como diria Antonio Cândido. Não que a crônica tenha se rendido à poesia. Uma e outra permanecem sendo discursos específicos. Muitas vezes, o cronista recorre à poesia, e isso deve ocorrer sempre com naturalidade, porque a crônica moderna e a poesia dão muito certo uma com a outra. Mas isso é compreensível também porque o cronista usa também recursos de outras formas literárias, como o conto. Não há nada demais nisso, muito pelo contrário. Por exemplo, Manuel Bandeira foi muito ousado na época ao escrever “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Seu poema tem sabor da notícia de jornal, mas também do conto e da crônica. O nosso Geraldo Borges leu o Grão e disse que O Pequeno Engraxate parece um conto. Eu acho que tudo isso aproxima os leitores da crônica.

Na sua opinião, a crônica se identifica mais com o jornalismo ou a literatura?

Pesquisadores destacam que a crônica nasceu do antigo folhetim do século XIX, que era um espaço, geralmente, situado na parte inferior dos jornais, destinado à crítica literária e a assuntos políticos, sociais etc. Portanto, é impossível negar a filiação da crônica ao jornalismo impresso. Diz-se também que “grandes escritores brasileiros do século XIX passaram por jornais”, escrevendo o romance-folhetim e o romance em folhetim, este com preocupações temáticas e estruturais maiores que o primeiro. Mas sua pergunta é sobre crônica. Por isso acho necessário falar sobre a coluna Ao Correr da Pena, de José de Alencar, escrita nos jornais Correio Mercantil e Diário do Rio, em 1954-55. São textos longos, se comparados à crônica contemporânea, que “encurtou de tamanho”, mas têm certo tom de conversa, como as crônicas de hoje em dia.  Os textos da coluna de Alencar tinham também certo tom de literatura. Tomando esse exemplo histórico, a crônica se identifica com o jornal, mas com o passar dos anos, ela foi como que se emancipando e se transformando num texto literário ou numa mistura de literatura com jornalismo. O certo é que o jornal impresso passou a conviver, claro, com crônica jornalística, mas também com a crônica literária. Mas acho que isso só veio a ocorrer na primeira metade do século XX, embora seja bom mencionar Machado de Assis, que, em 1877, portanto, século XIX, escreveu O Nascimento da Crônica. No Piauí, acho que merecem atenção as crônicas escritas por Vítor Gonçalves Neto, no jornal “O Curare”. É difícil dizer onde ali começa o jornalismo e termina a literatura. No final das contas, há espaço tanto para a crônica jornalística como para a crônica literária e até para um misto das duas, porque as fronteiras não são bem delimitadas, nem acho que devem ser. Falando por mim, prefiro escrever – e ler – crônicas literárias, mas escrevo também crônicas jornalísticas. No final das contas, o que interessa mesmo é a qualidade do texto.

Em 2015, você estreia no romance, com No coração da noite estrelada, surpreendendo a todos. Como leitores e críticos receberam o livro?

Surpresa tive eu com a recepção ao livro. Pelo menos, quatro pessoas, que eu saiba, escreveram positivamente: Aírton Sampaio o chamou de “romance geracional”; Eulália Teixeira achou o livro “uma bela história”; Geraldo Borges, “um romance de ideias”; Dagoberto Carvalho Jr também elogiou o livro, puxando mais pro lado oeirense. O Geraldinho me falou que leu duas vezes: após a última página, voltou imediatamente para a primeira, relendo o livro todo. Acho que isso é o principal elogio para o escritor: saber que um leitor leu seu livro por duas vezes, de uma assentada. Logo após o lançamento, encontrei o Cineas Santos em um posto de gasolina, na estrada. Ele vinha acho que de São Raimundo Nonato e eu, de Oeiras. Ele falou com entusiasmo sobre o romance. Desde o início, Cineas tem sido generoso para comigo. Um professor do Ensino Médio de uma escola de Oeiras adotou o livro. Com os alunos, ele fez o percurso por ruas, praças, becos e arredores da cidade, onde a ação se desenrola, e tentou reconstruir a história, de forma teatralizada. Deu pra sentir o interesse e motivação dos alunos. Em nosso meio, não é comum os leitores se manifestarem. Os poucos que falaram comigo gostaram do romance. Um poeta de Oeiras, Edilberto Vilanova, fez a mim, pessoalmente, comentários bastante pertinentes sobre o livro. Acho que ele foi um leitor bem atento.

 Augusto de Campos comparou um bom poema não lido ao canto do uirapuru na floresta, que talvez poucos ou nenhum ser humano ouça, mas está cumprindo sua parte para o encantamento do mundo.

Não bastasse, foi mais além ao publicar, em 2019, a Outra face, segunda obra poética. Que sensações esses gêneros distintos marcam sua escrita e alma?

Na verdade, é muito difícil determinar fronteiras rígidas entre as várias formas literárias. Claro que cada uma delas tem suas características próprias que a identificam como tal, mas isso não impede a intercomunicação. Comecei como quase todo mundo começa, isto é, tentando escrever poemas, depois contos e artigos. Não pensava em ser cronista. Eu queria mesmo era escrever ficção. E aconteceu que, após chegar em Teresina, em 1977, passei a ler muito os jornais da chamada “imprensa nanica”, sobretudo, O Pasquim. Poxa, esse jornal usava uma linguagem que muito me agradava: havia a crítica, a ironia, o humor mordaz. Era uma linguagem ao mesmo tempo “participante”, antenada com o Brasil e o mundo, e uma linguagem “sem paletó e gravata”, altamente comunicativa. Lá pela metade da década de 1990, eu lia os colunistas da Folha de São Paulo e senti que poderia escrever daquele jeito. E  então comecei a publicar artigos no jornal O Dia, de Teresina. Mas lá pelo terceiro artigo, me cansei daquilo e, naturalmente, passei a escrever de um jeito mais solto e pessoal, sem estar vinculado a uma lógica argumentativa. Foi aí que fui migrando para a crônica, porque o tom passou a ser de conversa, às vezes, de “conversa fiada”. Eu achava que não estava fazendo nada demais, mas, um dia, me deparei com um texto de Aírton Sampaio elogiando minhas crônicas. Aí parei para pensar, porque eu admirava Aírton pelo seu livro Contos da Terra do Sol, e já naquela época era um crítico perspicaz. E mais: não era ainda meu amigo. A gente só se cumprimentava – “Ôi, tudo bem?! – de modo que achei seu elogio sincero. Ele não escreveria só para me agradar, não era do seu feitio. A partir de então, passei a dialogar com ele e a refletir sobre o que estava escrevendo e dando o que falar, porque eu encontrava conhecidos na rua e eles me falavam bem das crônicas. Uma vez, um leitor de Picos escreveu para a redação do jornal – era uma carta para mim -, dizendo que adorava minhas crônicas. E então passei a ler mais os cronistas brasileiros e tudo que eu via sobre crônica, pois ali eu me sentia bem, em casa, como leitor e escritor. Mas digo para vocês: acho que não seria cronista se, além dos jornais, revistas e filmes, não tivesse lido boas obras de ficção, de poesia, de teatro, letras de música, histórias em quadrinho e, naturalmente, crônicas. Acho que tudo isso marca minha escritura e minha vida, sendo que a poesia, para a vida e para a crônica, tem uma vitalidade sutil e muito especial. Por isso, cheguei a publicar dois livros de poemas: Último Round e A Outra Face. Mas, sem dúvida, fazer poemas é muito mais difícil que escrever crônicas, contos ou romances.

Tem valido a pena dedicar, desde a estreia em 1994, tantos anos de vida a uma atividade pouco valorizada no Piauí /Brasil?

1994 foi o ano da minha estreia em livro, mas minha primeira crônica foi publicada em 1981, no Jornal da Manhã. Eu também já havia publicado no tabloide Floretim, editado pelos poetas Paulo Machado e Nelson Nunes, na década de 1980, além dos jornais mimeografados Mafrense e O Beco, de Oeiras, e nos principais jornais de Teresina. Assim, comecei mesmo foi em jornal. Portanto, sou de uma geração que aprendeu a escrever, escrevendo pra jornal. Escrever é uma das atividades mais vitais para mim. Mesmo que não deem valor. Mas sinto que não é isso que acontece. Em geral, os leitores apreciam o que escrevo. Por falar em dar valor ou não, o poeta, crítico e tradutor Augusto de Campos respondeu a uma pergunta semelhante: ele comparou um bom poema não lido ao canto do uirapuru na floresta, que talvez poucos ou nenhum ser humano ouça, mas está cumprindo sua parte para o encantamento do mundo.

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Márcia Evelin: “As histórias alimentam a criança que há em mim”

Por Wellington Soares, professor e escritor

Essa afirmação dita acima, pela Márcia, não é jogo de retórica, não. Pode acreditar, pois quem a vê atuando, sozinha ou no Grupo Cafundó, percebe ser ela, entre todas, a criança mais feliz da roda. Animada, de olhos brilhando e sorriso aberto. Caso alguém duvide, recorro à expressão do velho cacique timbira, de Gonçalves Dias: “– Meninos, eu vi!”. Sempre que posso, assisto a seus espetáculos mágicos e envolventes.

Também pudera, Márcia Evelin teve uma infância povoada de livros e histórias. Sua família foi importantíssima, como faz questão de destacar, nesse gosto pela e com a palavra. Quer escrita ou oralizada. A primeira chegava, comprada pelos pais, em coleções e enciclopédias vendidas de porta em porta, uma vez que ainda não havia livrarias em Teresina. A segunda, através de contação de histórias, muito comuns na época, que varava as noites.

Daí para as outras manifestações artísticas foi um pulo, uma coisa puxando outra, levando-a, desde cedo, a perceber que, em termos culturais, quanto mais artes estiverem juntas e misturadas, melhor. Não tardou pra surgir então, com ajuda dos irmãos, o teatro, a dança e a música no cotidiano de todos, recursos fundamentais no seu futuro trabalho de contadora de histórias. Márcia Evelin se apresenta em praças, ruas, hospitais e encontros literários. Sem falar ainda da publicação de três livros autorais e dois em coautoria.

Conhecedor da paixão pelo que faz, costumo frequentemente convidá-la para as feiras literárias que organizo na capital e cidades do interior do estado. Salão do Livro do Dirceu (Saliceu) e Salão do Livro de José de Freitas (Salijo), pra ficarmos apenas em duas, são bons exemplos dessa nossa parceria. São os “baixinhos” e os “grandões”, nesses momentos, que ganham com atividades tão lúdicas e didáticas.

A inspiração para tantos afazeres – mãe, professora, contadora de histórias e escritora –, ela tira do verde das árvores e do canto dos pássaros do sítio onde mora, próximo a Teresina. Eis aqui, nesta entrevista, um pouco da Márcia Evelin, eterna criança deslumbrada com a poética das linguagens e com o universo enigmático da vida.

 

O escritor irlandês C. S. Lewis afirmou que uma história infantil que só pode ser apreciada por crianças não é uma boa história infantil. Que acha disso? 

Concordo plenamente com o escritor. Uma boa história sempre será apreciada por leitores de qualquer idade. Há uma ampla discussão em torno do adjetivo “infantil” para a literatura que é destinada a esse público, já que o infantil deve estar ligado a quem se destina e não a uma simplificação da linguagem para que seja entendida pela criança. A literatura que recebe o rótulo de infantil deve ser interativa, criativa, rica em metáforas, simbologias e não ditos, a fim de que o leitor possa preencher esses vazios com a sua própria história. Se o escritor enxerga essa literatura somente como pretexto para ensinamentos e conselhos morais, faz com que ela perca sua essência estética e fique sem espaços para o leitor habitar. Assim, ele não constrói leitores, não contribui para transformar leitores, nem faz uma literatura que agrade a todos. Por isso prefiro adotar para essa literatura a terminologia de livros para todas as idades. Dessa forma me sinto incluída, pois adoro comprar, ler e contar essas histórias. Elas alimentam a criança que há em mim.

Como surgiu em você a paixão pelos livros, em particular os infantis? 

Tive uma infância povoada de livros e histórias. Nesse tempo não havia muitas livrarias em Teresina e a venda de livros era feita de porta em porta, por vendedores ambulantes e suas grandes malas recheadas de livros, principalmente as coleções e enciclopédias (nosso Google de hoje). Tenho essa imagem muito viva em minha memória, desses livreiros que montavam expositores em nossos terraços. Eu ficava fascinada com a variedade de formas, tamanhos, cores… dos livros. Acredito que foi aí que nasceu minha paixão pelo objeto livro. Meus pais souberam passar para os filhos o valor e importância dos livros para nossas vidas, o que perdura até os dias de hoje. Eu e meus irmãos aprendemos a ler e a amar os livros debruçados nessas enciclopédias que traziam literatura e outros conhecimentos, por onde viajávamos em busca de aventuras. A Coleção O Mundo da Criança (da capa vermelha) foi uma dessas referências. Mais tarde veio a vida acadêmica, a escolha pela docência, a criação da livraria e Clube de Incentivo à Leitura Crie e Conte, a maternidade e a minha paixão pela palavra poética, pela narração de histórias, desembocando na escrita de livros literários destinados, principalmente, às crianças, mas que podem e devem ser lidos por todas as idades.

Nos seus três livros autorais lançados – O Boi do Piauí (2015), O Segredo da Chita Voadora (2017) e A Flor do Pequeno Principezinho (2019) -, que temas e lições de vida os leitores vão encontrar? 

O Boi do Piauí (2015/2021) foi minha primeira história, uma adaptação da cultura popular, que nasceu na oralidade e, depois de ser contada em vários lugares, virou livro impresso, a convite do editor Leonardo Dias, da Editora Nova Aliança (PI). O livro tem a força de manter no imaginário do leitor essa manifestação cultural tão importante que é o ritual do Bumba meu Boi. É um livro brincante e cantante que ganhou uma 2ª edição em 2021, tem a narrativa permeada por canções do Boi e podem ser ouvidas através de um QR Code localizado na contracapa do livro, que direciona o leitor para meu canal no YouTube, onde as músicas se encontram hospedadas.

O Segredo da Chita Voadora (2017) é um livro-homenagem onde referencio e enalteço a beleza da mulher negra e do tecido chita, numa linda história de amor, espécie de conto de fadas do sertão. Homenagem também ao continente africano, de onde eu trouxe o nome Abayomi para a protagonista da história. Nele, o leitor recebe como mimo uma bonequinha feita somente de nós, simbolizando essa personagem, que confecciono com minhas próprias mãos para cada um dos livros.

A Flor do Pequeno Principezinho (2019) é fruto de uma paixão que cultivo, desde a infância, pelo personagem do livro O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint Exúpery, obra que inspirou sua criação. É uma história em que coloco a Flor como protagonista, juntamente com o Principezinho e que mostra a força de se criar laços de amizade, de buscarmos nossas raízes ancestrais. Uma história que leva o leitor a um processo de construção de sua própria identidade étnica, quando apresenta um Pequeno Príncipe que se transforma ao pisar no solo do continente africano.

Todas as minhas histórias foram editadas pela Editora Nova Aliança (PI) e trazem o elemento mágico, a musicalidade, a valorização da cultura e do ser humano como tônicas da narrativa. Agora em janeiro de 2022 lanço meu novo livro, intitulado Menino do Congo, um presente de gratidão aos brincantes do Grupo de Congos de Oeiras (PI), com quem dividi minha pesquisa de mestrado, intitulada Tradição Oral e Literatura: laços de matriz cultural africana em crianças brincantes dos Conguinhos, cidade de Oeiras (PI), no ano de 2012. O livro também traz um QR Code, onde o leitor poderá ouvir as músicas cantadas no ritual.

Na sua opinião, a obra de Monteiro Lobato, que despertou o hábito da leitura em muita gente, ainda continua atual? 

Lobato foi muito importante para toda uma geração de leitores e escritores conceituados e tem sua relevância dentro da história da literatura infantil brasileira, isso não pode ser negado. Infelizmente sua obra, analisada com as lentes da contemporaneidade, apresenta muitos problemas relacionados a preconceitos e racismo, tanto na ilustração como na linguagem utilizada, o que tem contribuído para criar polêmicas em torno da aceitação e adoção pelas escolas e pelo público mais consciente do lugar que a literatura infantojuvenil ocupa como incentivadora de práticas antirracistas.

Além dos livros impressos, você leva também à criançada, através do Grupo Cafundó, contação de histórias. Qual dessas atividades desperta mais alegria em você? 

Ambas me alegram muito, porque faço por dom, desejo, paixão… Gosto muito de narrar histórias, de descobrir elementos que possam torná-las mais próximas das crianças, como a musicalidade presente no texto, as várias vozes dos personagens, as expressões corporais e toda a performance criada para contar. Primeiro nasceu a Márcia contadora de histórias, com o grupo Cafundó de Contadores de Histórias, na companhia de Anna Miranda (parceira de invencionices, que traz o dom de narrar na voz e no corpo), acompanhadas pelo musicista Garibaldi Ramos, mais tarde substituído por Fernando Ferreira e Tauana Queiroz, também musicistas. Juntos contamos histórias em praças, escolas, hospitais… em todos os lugares que tenham pessoas atentas a palavra narrada. Só depois de muitos anos dessa prática, me veio a vontade de experimentar a escrita. Diria que me considero uma contadora de histórias que de tanto contar histórias e visitar universos mágicos acabou tendo vontade de escrever.

A literatura infantil no Brasil, dentre todos os gêneros, é a que tem melhor acolhida junto aos leitores e às escolas. Como anda o nosso estado nesse cenário nacional? 

Produzimos muito, mas a nossa literatura ainda não tem grande visibilidade no cenário nacional. Precisamos acreditar no potencial literário dos escritores piauienses, na qualidade estética dos livros publicados por editoras do nosso estado e deixar de achar que o que produzimos é uma literatura menor. Somos muito bons e temos todas as qualidades para nos lançarmos no mercado editorial nacional. Infelizmente as escolas particulares e órgãos públicos ligados à educação do estado do Piauí ainda não pensam assim, não valorizam, como deveriam, a literatura infantojuvenil produzida por escritores piauienses, no que tange a conhecimento dos escritores, suas obras e adoção de títulos. Penso que temos um longo caminho a trilhar objetivando a mudança desse cenário, a começar pela união dos escritores e entidades literárias do Piauí.

Por que você costuma dizer que não conseguiria viver sem a literatura? 

Venho de uma família de artistas, das diferentes linguagens da arte. Sou apaixonada pela palavra poética e vivo cercada por ela. A literatura é meu instrumento de trabalho, minha arma contra o tédio, o ócio, a paralisação… Entendo a literatura como arte, criação e possibilidade de crescimento humano. Ela transforma, acalma, alimenta, nutre e responde a questionamentos. Como viver sem ela?

 

 

Maria das Graças Targino: “Meu pai foi meu grande mestre”

 

 

Por Wellington Soares, professor e escritor

Seu nome completo é Maria das Graças Targino, com o qual assina os livros já lançados e os que estão por vir, pois adora viajar com e através das palavras. No trato pessoal, costuma ser chamada apenas de Graça Targino. É paraibana de João Pessoa, tendo chegado a Teresina no distante ano de 1971. Dos pais herdou a paixão pelo jornalismo e magistério.

Fora isso, ama cinema e teatro, áreas nas quais já arriscou uns passos. A música a transporta para o além, enquanto o voluntariado a acalma e lhe faz bem. Mas, por anos, fez tapeçaria e, acredite, ensaiou pintura de porcelana. Ama cozinhar, viajar, tem a casa como refúgio preferido e gosta de idiomas. Como ela se vê emocional e psicologicamente? “Sinto-me camaleão, luto como leão e sobrevivo como um pássaro azul”.

A estreia literária ocorreu em 2008, com o lançamento de Palavra de honra: palavra de graça. Depois veio Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos, em 2014. O livro mais recente, publicado em 2019, recebeu o sugestivo título de Amar, viver, escrever – síntese das veredas que marcam indelevelmente sua atribulada existência. Todos de crônica, focados em temas do cotidiano, linguagem simples, tom de esperança e marcados pela leveza do gênero.

Mas o que Graça sempre quis e conseguiu, evocando aqui o famoso texto de Simone de Beauvoir, “foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida. Unicamente o sabor da minha vida. Acredito que eu consegui fazê-lo. Vivi num mundo de homens, guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei e nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos”.

Bom ouvir agora, sem mais delongas, esta Cidadã Teresinense, título merecidamente recebido da nossa Câmara Municipal, o que ela tem a nos dizer sobre literatura, crônica, textos acadêmicos, opção pelo magistério, crítica literária e, não podia faltar, sob que ponto de vista as relações humanas aparecem em sua obra. Dificilmente você não irá se apaixonar, feito eu, pela Maria das Graças Targino. Vamo que vamo!

 

Frida Kahlo dizia que a pintura dela trazia consigo a mensagem da dor. Quanto à sua literatura, traz o quê?

Talvez, esta seja uma pergunta a ser respondida pelos meus leitores mais assíduos. De qualquer forma, ouso afirmar que meus textos trazem uma mensagem de VIDA: vida e morte, alegria e tristeza, esperança e desesperança, amor e desamor, encanto e desencanto, paz e guerra, céu azul e céu cinzento… VIDA!

Qual escritor(a) a impactou tanto a ponto de querer trilhar também esse tortuoso caminho?

Respondo de imediato e sem vacilo: meu pai foi meu grande mestre. Partiu quando eu era ainda criança, aos 12 anos. Dentre todos os acontecimentos que marcaram minha infância e adolescência, esta foi a dor maior. Passei a vida inteira buscando “pai”, querendo colo, um desassossego só. Dele, do meu pai, herdei o temperamento irrequieto, a vontade de ler e escrever…
Ele, jornalista sem diploma. Ele, sem qualquer instrução formal. Ele, sem jardim de infância. Ele, sem bancos escolares. Ele, sem farda engalanada ou lanches achocolatados. Sob outro ângulo, ele, com inteligência, persistência, obstinação e imenso amor às letras. Letras que se tornam frases, textos, contos, livros, matérias jornalísticas, etc. Meu pai, autodidata, numa época em que vocação era magia e encantamento, tornou-se, em curto espaço de tempo, escritor, ghost-writer (termo inexistente, à época) de grandes políticos paraibanos e, sobretudo, jornalista, numa vida curta, mas vivida com intensidade, fervor e furor. Por suas mãos, desde muito cedo, descobri, pouco a pouco, escritores e poetas, considerados, à época, grandes nomes nacionais e internacionais, a exemplo de José de Alencar, Franz Kafka, Marcel Proust, Honoré de Balzac, José Lins do Rêgo, Machado de Assis, Fedor Dostoievski, Érico Veríssimo, Augusto dos Anjos e muitos outros. Por isso, evito, categoricamente, mencionar livros-chave ou autores-chave. Temo cometer injustiças, desde que, de uma forma ou de outra, todos me propiciaram momentos inesquecíveis de sonho e, principalmente, de descoberta de mundo. Mas, não titubeio: meu pai foi, sim, apesar de sua partida precoce, o escritor que me mostrou a estrada a percorrer e me deixou como herança a vontade insana de trilhar esse adorável caminho, não importa, se, vez por outra, tortuoso e íngreme.

O fato de eu ou alguém escrever um romance ou um conto não lhe assegura a garantia de bom literato. Há péssimos contistas, romancistas, poetas e assim por diante. O gênero não é determinante da qualidade dos textos.

Por que a escolha da crônica dentre as várias opções do gênero narrativo?

Não diria que foi uma escolha. Como desde jovem, vivo a compulsão de ver e enxergar as pessoas, numa busca quase obsessiva de autenticidade e verdade, a crônica instalou-se em meus escritos. Afinal, é ela o gênero que permite, com relativa facilidade, denunciar as mazelas sociais, o cotidiano de quem nem tem voz nem vez. Independentemente dos conceitos formais que rondam a crônica, sem dúvida, é este o cerne da crônica: olhares acertados ou enviesados acerca da linha tortuosa das cidades e do viver, ou seja, o registro bem ou mal humorado do dia a dia das coletividades. Aliás, o delicioso livro de Carlos Drummond de Andrade, “De notícias e não notícias faz-se a crônica”, ano 1974, reforça, desde o título, a concepção de crônica: as notícias, simbolizando o real; as não notícias, o imaginário do cronista.

Foi a escritora que a levou ao magistério superior ou o contrário?

Impossível delinear: vocações que se cruzam e entrecruzam. Aos que me perguntam algo similar, retrocedo na linha mágica e, ao mesmo tempo, cruel do tempo. E lembro, então, do que tão sabiamente o escritor colombiano Gabriel García Márquez diz, no preâmbulo do livro “Viver para contar”: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” Pois bem, me enxergo, rascunhando ou esboçando anotações em busca de imprimir feição definitiva a meus textos de menina e, logo depois, de adolescente, guardados, como não poderia deixar de ser, a sete chaves, ou melhor, a uma única, pequenina e frágil chave de um diário cor-de-rosa. Por outro lado, sempre brinquei de professora. Cedo, descobri ser este o caminho para desvendar com mais propriedade o viver. Como os pensamentos são sombras que vêm e que passam, às vezes, me pego a imaginar que nasci professora: revejo a sala grande de uma casa grande, onde aos meus irmãos cabia a função de atuar como endiabrados alunos. Quando resistiam, restavam minhas bonecas, de verdade ou de fantasia. Passados os anos, bonecas transmutadas em filhos, continuei a escrever.

Há preferência por algum de seus três livros e qual deles teve melhor acolhida pelos leitores?

Antes de meus três livros de crônicas aos quais se refere – “Palavra de honra: palavra de graça”, 2008; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos”, 2014; “Amar, viver, escrever”, 2019 – e concomitantemente a eles, como acadêmica, que ingressou muito jovem como aluna, aos 17 anos na Universidade Federal de Pernambuco e aos 22, como profissional bibliotecária e adiante como docente junto à Universidade Federal do Piauí (UFPI), tenho escrito bastante nos campos da Biblioteconomia, Ciência da Informação e Comunicação Social (Jornalismo). Textos de diferentes naturezas: livros, capítulos de livros, artigos técnico-científicos, comunicações em eventos científicos, tanto em suporte impresso quanto eletrônico. Segundo resgate do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do Currículo Lattes, até esta data, são nove livros; 66 capítulos de livros; 16 livros organizados; 181 artigos técnico-científicos; 33 artigos em revistas (magazines); 67 trabalhos publicados em anais de eventos; e 871 artigos em jornais.
O que ocorre é que os textos técnicos e científicos, lançados por instituições de ensino superior e editoras comerciais exigem do autor menor esforço de divulgação porque elas mantêm uma infraestrutura adequada e um público-alvo definido. Por exemplo, possuo capítulo em livro da renomada Editora Atlas; da Universidade de Brasília e de muitas outras IES. Lancei em coautoria com a Professora Sueli Mara S. P. Ferreira (USP), trilogia sobre editoração de revistas a cargo do SENAC-SP e minha tese de pós-doutoramento conquistou o Prêmio The Information for All Programme da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), fato ignorado pela mídia local. No auge do surgimento da internet, lancei capítulo sobre as decorrências sociais que adviriam da Rede, em capítulo do livro “Cultural ecology” do International Institute of Communications (Londres), ainda em 1997, com a ressalva de que, curiosamente, os impactos previstos se confirmaram.
Aliás, poderia discorrer muito mais sobre esta faceta de minha produção. Porém, retornando à questão específica alusiva aos livros de crônicas, empiricamente, têm nível de aceitação similar, com o adendo de que o primeiro deles está completamente esgotado. São livros editados sob meu encargo e sem qualquer ajuda de custo nem da instituição a que dediquei toda minha vida (UFPI) nem tampouco de órgãos governamentais. Jornada silenciosa e solitária… Consequentemente, divulgação lenta e capenga….

Que acha dos críticos que afirmam ser a crônica um texto literário menor, inferior?

Para falar a verdade, não tenho a pretensão, aqui e agora, de discorrer sobre crônica como gênero literário ou jornalístico, até porque os gêneros nada mais são do que um conjunto de traços característicos, mas instáveis, que marcam a obra dos autores. Aliás, o fato de eu ou alguém escrever um romance ou um conto não lhe assegura a garantia de bom literato. Há péssimos contistas, romancistas, poetas e assim por diante, como há péssimos cronistas. O gênero não é determinante da qualidade dos textos.
Indo além, dificilmente, um mesmo autor se prende a vida inteira a um só tipo de texto. Por exemplo, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, trio que parece resgatar a crônica do limbo em que estava no contexto da literatura brasileira, à época, apesar de considerados os maiores cronistas do Brasil, também transitam em outros segmentos literários. Sabino, romancista, contista e novelista. Paulo Mendes, poeta e crítico literário. Otto, contista, novelista e romancista. Para ideia mais precisa, a Wikipedia, que ocupa, mais e mais, o espaço antes destinado à Britannica Online, em seu verbete – cronistas do Brasil –, arrola cerca de 100 nomes, dentre os quais, estão: Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, José de Alencar, José Lins do Rego, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, Mário Prata, Martha Medeiros, Nelson Rodrigues, Olavo Bilac, Rachel de Queirós, Rubem Alves, Rubem Braga, e assim quase indefinidamente. As exceções dos “cronistas de carteirinha” ficam por conta de alguns poucos. É o caso de Dom Hélder Câmara, polêmico arcebispo de Recife e Olinda, que dedicou parte de seu tempo a escrever belas e expressivas crônicas sobre as duas cidades. É o caso, também, de Paulo Fernando Craveiro, do tradicional Diário de Pernambuco (Recife), cujas crônicas auxiliam a reconstituir nosso tempo.
Logo, a fala dos críticos que afirmam ser a crônica um texto literário menor ou inferior não produz eco na esfera de meu viver ou ser…

Sob que enfoque aparecem as relações humanas em sua obra?

Tento – não sei se consigo – dar espaço, como falei anteriormente, a temas que afetam a existência dos que estão afundados (não alojados) em estratos sociais mais depreciados. Não falo somente de (des)nível social, cultural e/ou econômico. Imigrantes, homossexuais, velhos, doentes mentais, prostitutas e michês, drogaditos, quilombolas, indígenas, todos estes são temas recorrentes em meus escritos… Mas não há só dor. O canto das baleias nos encanta. Livros, leitura e bibliotecas dão esperança aos que integram o Projeto da Remição pela Leitura do Sistema Penitenciário Federal. O amor e a amizade incondicional valem muito! Em suma, há muito a ser visto e revisto nas relações humanas, o que nos fazem repensar a vida e a morte.

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Edmar Oliveira: “Eu só desejo conversar com meus fantasmas”

Por Wellington Soares, professor e escritor

 

Podem não acreditar, mas já conhecia o Edmar Oliveira antes de conhecê-lo pessoalmente. Conhecia e, por conseguinte, o admirava bastante, uma vez que, dificilmente, acredite, alguém o conhece sem render-se aos seus encantos tanto como ser humano e intelectual, quanto como psiquiatra, militante da luta antimanicomial e comunista utópico.

Antes o conhecia pelo que falavam dele dentro e fora de Teresina. Que coeditou, em mimeógrafo, o jornal alternativo Gramma; que produziu filme com Torquato Neto, nos anos 1970; que comandava o Piauinauta, um blogue de contato entre os perdidos do espaço que tentam compreender a vida; e que não só foi diretor do Instituto Nise da Silveira (RJ) como também inspirou Stênio Garcia a encarnar, na novela “Caminho das Índias”, da Rede Globo, o personagem Dr. Castanho.

Os primeiros contatos com Edmar vieram através da leitura de Ouvindo vozes Von Meduna, títulos focados em saúde mental, área em que atua; e, depois, Sitiado e Não existe pretérito perfeito, romances que dialogam – de forma crítica – com o passado histórico brasileiro: Coluna Prestes e Ditadura Militar. Afinal, os escritores costumam se desnudar por meio de seus escritos.

Sua entrevista à Revestrés (#25) serviu para estreitar nossas relações. O encontro, na casa do seu irmão Moisés, bairro Aeroporto,  transcorreu num clima de franqueza e cordialidade. E o mais importante, sem tabu sobre qualquer assunto, desde a incumbência em dar eletrochoque no antigo Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro, que ele driblou de maneira genial, até classificar-se como doido que não deseja cura. O lançamento dessa edição no Rio de Janeiro, em 2016, contou com o apoio integral do Edmar, inclusive mobilizando pessoas, e selou de vez a amizade com a trupe da revista.

Mas, enquanto esse piauiense arretado de bom, filho do município de Palmeirais, deseja conversar com os seus fantasmas, talvez ansioso por se conhecer melhor, os leitores desta entrevista só queremos embarcar nas suas viagens literárias e existenciais. Quem sabe nossos fantasmas não sejam os mesmos?

 

Mia Couto afirmou que o poeta, no sentido amplo, é aquele que conversa com as sombras. Que acha disso? 

Acho que o Mia Couto assume o papel político de tirar das sombras o passado de Moçambique, quase todo sustentado por uma frágil cultura oral, que o colonizador português sempre tentou apagar. Nesse sentido, conversar com as sombras, é uma missão da literatura de Mia para não deixar morrer a cultura que constituiu Moçambique. Mas no sentido amplo ele também tem razão. Quem escreve dialoga com seus fantasmas numa necessidade de manter viva a memória que constituiu o escritor. O velho Graça é soberbo na reconstituição de sua infância na obra que assim nomeou. O que faz a literatura não é a recuperação memorialista cronológica, mas esse diálogo com os fantasmas que nos constituíram, que apesar de deformar a realidade, aproxima o real fantasmagórico da ficção criada. E como nada se cria – a química da literatura ficcional contém pedaços do escritor na ficção.

O que faz a literatura não é a recuperação memorialista cronológica, mas o diálogo com os fantasmas que nos constituíram.

Que motivos o levaram a deixar o Piauí e migrar pro Rio de Janeiro? Já pensou em voltar? 

Já faz bastante tempo. Saí muito jovem. Teresina tinha a metade da população que tem hoje e o provincianismo era muito forte. Talvez hoje não tivesse saído. Como me envolvi com a cultura desde muito cedo, a visibilidade com que conquistei (sem querer) dificultava exercer minha profissão. Buscava naquele momento um anonimato que só uma cidade grande poderia me dar. Hoje, olhando pra trás, tenho muito mais tempo de vida no Rio do que vivi em Teresina. Teresina me passou de relance, um pouco de adolescente e pouquinho do adulto. Toda a minha infância foi em Codó, no Maranhão, apesar de ter nascido em Palmeirais. Não tenho mais dúvidas de que me casei com o Rio, apesar das dificuldades que a cidade atravessa. Teresina é uma namorada antiga inesquecível. De vez em quando a vejo, mas não tenho mais idade para uma paixão juvenil. Vou ficando no Rio.

Há afinidades entre psiquiatria e literatura, duas áreas nas quais você atua? 

Diria que as duas trabalham com o inconsciente. A prática em Saúde Mental, diferente da prática médica, trabalha uma clínica da narrativa e não uma clínica da evidência. Explicando: num infarto o médico tem de atuar rapidamente com os sintomas evidentes da crise. Na Saúde Mental, mesmo o paciente em crise, é preciso paciência do médico para entender a narrativa da história que o paciente conta. Portanto no método, minha profissão está muito próxima da literatura. Passo de uma à outra sem dificuldades.

Retomar a ditadura militar em Não existe pretérito perfeito, seu livro mais recente, foi mero resgate histórico de uma época ou um alerta aos que defendem um regime de exceção sem saber o que isso representa de fato? 

Fui tomado pela história que narro em “Não existe pretérito perfeito” logo após a eleição de Bolsonaro. O enredo foi aparecendo com um diálogo com os fantasmas do passado. E todos os elementos estão ali: o torturador como uma pessoa entre nós no papel de homem de bem; a prática da tortura sem a culpa do nosso homem de bem nas dores infringidas em quem ousa discordar do “bem”. O namoro da psicanálise com a tortura, que na vida real foi representada por Amílcar Lobo, de triste memória; o parentesco entre torturados e torturadores; e o Brasil, um casarão, onde moram todos os personagens. Duas revelações: namorei um casarão em Botafogo, de fato, para fazer dele meu personagem principal e nele coloquei meus personagens-fantasmas. Um desses personagens, o filho do militar torturador (nenhum personagem tem nome) tomou vida durante a escrita e ficou bem maior do que tinha imaginado. De fato, é nele que me encontro com os fantasmas que nos assombraram no passado. E o livro é um aviso medroso do que podia nos acontecer. E, para desgraça de todos nós, minha previsão vem se concretizando. Ainda tenho esperança de que o livro perca a razão. E fico muito triste por estar acertando.

Dois personagens são emblemáticos em Sitiado: o matuto Teodoro, alma pura do povo, e o fascinante Manuel Bernardino da Mata, síntese de espírita/vegetariano/socialista. Com qual deles você e os leitores se identificam mais? 

Manuel Bernardino, o Lenine da Mata, de fato existiu. Tentei fazer uma pesquisa em Dom Pedro, mas quando liguei para a biblioteca pública da cidade fui informado que nada existia sobre o personagem, mas que muitos velhos na cidade sabiam de sua história. Não fiz uma viagem até lá para pesquisar melhor e me ative ao Diário da Coluna Prestes, de Lourenço Moreira Lima, escrito no calor da luta. De lá tiro o personagem da realidade para jogar na ficção. Depois de ter escrito meu livro, soube de um média-metragem da Maranhense Rose Panet – um documentário sobre a memória de Manuel Bernardino. Entrei em contato com ela e mandei meu livro. Tínhamos programado fazer uma exibição do filme junto com um relançamento do livro no Maranhão, mas aí veio a pandemia e não foi possível. Aqui vai o link para o filme da Rose: https://www.youtube.com/watch?v=UVGNmU3afYU

. Foi uma grata surpresa e, embora eu não a conheça pessoalmente, posso dizer que somos amigos e trocamos muitas informações sobre literatura e cinema. Outra curiosidade, no filme é Zeca Baleiro que faz a voz nos discursos de Bernardino. Quando estive no Piauí no último Salipi, fiquei no mesmo hotel que o Zeca e Salgado Maranhão nos apresentou. Dei um livro para o Zeca Baleiro que gostou de saber que o Bernardinho estava no livro. Mas voltando à pergunta feita, Teodoro – o ingênuo da ficção e Bernardino são dois personagens marcantes, que facilmente cativam os leitores (muitos falaram deles). Mas o meu preferido é o mascate Abdon, que representa os árabes que ajudaram a formar o Maranhão e Piauí com suas viagens pelo sertão tocando matraca e trazendo objetos cobiçados pelas mulheres que viviam naquelas brenhas. O nome do personagem foi tirado de uma música do Gonzaga, que certamente homenageava os árabes do sertão.

Antes de cometer suicídio, Torquato Neto deixou um bilhete ao filho Tiago. Que bilhete você, que o conheceu pessoalmente, escreveria a ele depois de 49 anos após sua triste partida? 

“Rapaz, você não foi muito apressado em 72? Gostei não”.

A literatura piauiense tem muitos poetas e poucos romancistas. Há da sua parte, com cinco livros publicados, intenção de ocupar esse vazio em nossa ficção? 

Uma confissão: a poesia é a mais maravilhosa das artes e engana muitos que se dizem poetas. E hoje é para quem sabe usar o “paideuma” poundiano (Erza Pound – 1885/1972) com sabedoria. No mundo da pressa ninguém quer gastar tempo como escreviam os clássicos. Outra característica do poeta é arrancar das palavras o indizível. Tanto na onomatopeia do mestre Da Costa e Silva (“Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda”), seja na cirurgia de Salgado Maranhão limando a palavra para lhe dar novo sentido (“não cantarás aos muros de arrimo tua fantasia de pássaro”). Confesso que não tenho esse talento e fazer versos onde apenas se quebre o pé das palavras e se supõe que a rima já faz a poesia é falsificar o poeta. Acho mais fácil o romance, mas é preciso não ter preguiça no enredar a trama. Mas não me vejo ocupando qualquer lugar na literatura piauiense. Já temos muito bons escritores. Eu só desejo conversar com meus fantasmas.

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