ENTREVISTA Por Wellington Soares, professor e escritor

Rogério Newton, ao centro, entre J L Rocha do Nascimento e Wellington Soares

Quando me indagam quem eu gostaria de ser ao crescer, minha resposta é imediata: Rogério Newton. Sem titubear, na bucha. Quer saber a razão? Simples, pois ele reúne tudo o que gostaria de encarnar: filho de Oeiras, cronista dos melhores, poeta, defensor público, romancista, praticante de iôga, contista, vegetariano, mestre em Direitos Humanos, um cara legal, ligado ao Teatro do Oprimido, ambientalista, nascido na Rua das Portas Verdes, democrata convicto, amante da cultura e, acima de tudo, a leveza em pessoa.

Mas é como escritor multifacetado, jogando um bolaço em todos os gêneros, que minha admiração por ele só aumenta. Na crônica literária, sobretudo, na qual desponta como biscoito fino para deleite dos leitores. O cotidiano, as memórias, os amores, a natureza fluindo sob o olhar sensível de um autêntico poeta da vida e da linguagem. Daqueles que tocam fundo a alma da gente, como podemos aferir nos livros Ruínas da memóriaConversa escrita n’água e Grão, entre outros.

Rogério fez parte de uma geração cultural, batizada de Pós-69, que deu uma boa chacoalhada no cenário artístico de Teresina. Não só lançando revista, organizando exposições e saraus, mas dando umas cutucadas na ditadura militar, na falta de liberdade e na censura vigentes no Brasil da época. E o mais importante, passado batido pela nossa crítica, o surgimento de três grandes nomes da contemporânea literatura piauiense: ele, na crônica; Paulo Machado, na poesia; e, fechando o trio, Aírton Sampaio, no conto.

Embora tenha saído de Oeiras na adolescência, constatamos que nossa primeira capital, desde a arquitetura colonial/imperial aos banhos no riacho Mocha, passando pelos becos/ruas/casarões até as procissões religiosas, nunca saiu dele e da sua obra. Como uma paráfrase, fincada no coração, dos antológicos versos de Carlos Drummond: “Oeiras é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!”.

No fundo, será uma alegria degustar esta conversa, muito instigante, a fim de compartilhar o sentido da vida, mesmo um tantinho apenas, que os textos de Rogério Newton têm descortinado ao longo dos anos – inclusive escrevendo em Revestrés desde a nossa primeira edição. Terá ele conseguido?

Que acha do que disse Aldous Huxley, escritor inglês, sobre “a memória de todo homem é sua literatura particular”?

É uma frase bonita. Os escritores gostam de fazer frases assim. Mas parece que ele tem razão: é difícil imaginar uma literatura ou a vida mesmo sem memória, que parece um reservatório misterioso de coisas guardadas, boas e ruins, sábias e tolas. O escritor recorre à memória para escrever, mesmo que ele crie uma obra ficcional. Mas aí ele fatalmente tem que fazer uma seleção do que está armazenado na memória para criar o que quer que seja. Por isso, a literatura é uma construção, ou como diria meu amigo Paulo Machado: literatura é reconstrução. E aí reside o mistério. Penso que toda pessoa humana faz sua própria “literatura particular”, à procura de sentido. Todos nós estamos procurando sentido para a vida. Mesmo numa conversa de botequim alguém estará procurando (re)construir alguma coisa. Agora, há perigos como o esquecimento e o desprezo para com a memória. Por exemplo, há pessoas que defendem a volta da ditadura no Brasil. Pessoas sensatas não fazem isso. Millôr Fernandes é autor de uma máxima que diz mais ou menos o seguinte: o futuro é o passado usado. Há algo mais desanimador do que isso? A memória é dádiva preciosa. O mais importante é usá-la adequadamente para que resulte em coisas potentes e benéficas para a humanidade.

Todos nós estamos procurando sentido para a vida. Mesmo numa conversa de botequim alguém estará procurando (re)construir alguma coisa.

De que maneira ser filho de Oeiras, nossa primeira capital, impacta sua vida e obra?

O. G. Rego de Carvalho disse uma vez que não seria escritor se não tivesse nascido em Oeiras. Não chego a tanto, mas acho que a cidade contribuiu muito para eu ser escritor. Em primeiro lugar, Oeiras tem uma atmosfera sugestiva. Refiro-me à sua arquitetura, colonial e imperial, de ruas, becos, casarões, largos em um relevo que não é plano. A cidade histórica vista, por exemplo, do Rosário e do Morro da Sociedade, oferece imagens de telhados e quintais. Cada ângulo de visão tem um recorte diferente. A primeira impressão talvez leve a um impulso lírico – e os autores da cidade enveredam muito por esse gênero. Mas tudo também reivindica incursões épicas, que considero escassas. Por que os autores preferem o lírico e não o épico? Por outro lado, além da arquitetura histórica, Oeiras possui múltiplas memórias, a partir das quais pode-se (re)construir muita coisa não só no campo da arte, da poesia e da literatura, mas também da história, da geografia, da sociologia, das etnias, da vida social etc. Matéria-prima é que não falta.

A influência de Oeiras na minha vida deve-se muito ao fato de eu ter vivido a infância toda lá e uma parte da adolescência. A casa onde eu e nove dos meus irmãos nascemos ficava de porta e janelas abertas durante o dia. Não havia um limite rígido entre a casa e a rua. Facilmente, eu saía para jogar bola, tomar banho no riacho ou simplesmente perambular por lugares, como a feira, que achava fascinante. Os primeiros violeiros eu vi na feira. A miséria e a fartura e muitas outras coisas misturadas, como as tropas de jumentos que carregavam gêneros alimentícios, provenientes das pequenas propriedades familiares. Os botecos sórdidos com seus bêbados e prostitutas, os tipos humanos etc. Numa época em que não havia chegado o supermercado e o fast-food, a feira era um espelho da sociedade.

Acho que até início da década de 1970, havia uma convivência mais ou menos harmônica entre a cidade histórica e a outra Oeiras que passou a ser construída. Claro, ninguém espera que uma cidade seja a mesma o tempo todo. Mas Oeiras está pagando preço muito alto pela sua expansão urbana, que se dá sem critérios claros e sem considerar adequadamente as áreas verdes e as belezas naturais, que lhe conferiam muita graça, especialmente o leito e as margens do Riacho Mocha, transformado em esgoto na área urbana, e os morros que circundam a cidade.

Outras coisas fascinavam meus olhos: os eventos religiosos; procissões como teatros a céu aberto; banhos e passeios no Riacho Mocha e nos morros; os ensaios da banda de música no antigo sobrado do Círculo Operário; o cinema etc. Eu ouvia os adultos falarem em histórias. Havia as bibliotecas, como a que pertenceu ao que fora o Ginásio Municipal Oeirense. Foi lá que encontrei Jorge Amado e Lima Barreto. Na biblioteca pública municipal, havia mais de uma coleção de Machado de Assis. Um dia apareceu na minha casa um exemplar de Somos Todos Inocentes, de O. G. Rego de Carvalho. Esses autores eu os li antes de sair para estudar em Teresina. Eu já tinha em Oeiras referências de escritores e músicos residentes na cidade. Próximo a mim, na Rua do Fogo, morava o escritor Expedito Rêgo. Na Rua da Feira, Possidônio Queiroz. Na Rua do Izidro, Costa Machado. Na minha família mesmo, havia um escritor, meu tio Gaudêncio Carvalho, irmão do meu pai, que guardava como uma preciosidade o livro Poemas da Íntima Habitação, primeiro lugar no primeiro concurso literário de Brasília (1961), cujo prêmio foi entregue pelo poeta Manuel Bandeira, convidado especial para a solenidade de premiação.

Gosto de pensar em Oeiras como um microcosmo: tem tudo que o Universo possui, em doses mínimas e, às vezes, em doses cavalares. Percebi isso depois que saí da cidade. O distanciamento físico, o aprendizado em outras terras, o alargamento de horizontes pelo estudo e por outras vivências me proporcionaram outras visões, outras leituras, outras formas de sentir. Oeiras faz parte da minha “literatura particular” e da literatura que produzo. Saí de Oeiras, mas Oeiras nunca saiu de mim.

Acho que não seria cronista se, além dos jornais, revistas e filmes, não tivesse lido boas obras de ficção, de poesia, de teatro, letras de música, histórias em quadrinho e, naturalmente, crônicas.

Há quem veja em suas crônicas traços de poesia, um tipo de “cronemas”. Esse aspecto o aproxima ou o distancia dos leitores?

O escritor Aírton Sampaio, na orelha do livro Grão, foi quem falou que minhas crônicas eram “cronemas”, ou crônicas-poemas. Fico todo orgulhoso com esse elogio, porque, de uma maneira ou de outra, a poesia é quase uma presença “obrigatória” na crônica literária. Foram necessárias décadas para evoluir a um texto leve, aparentemente simples, com seu “quantum satis” de poesia, como diria Antonio Cândido. Não que a crônica tenha se rendido à poesia. Uma e outra permanecem sendo discursos específicos. Muitas vezes, o cronista recorre à poesia, e isso deve ocorrer sempre com naturalidade, porque a crônica moderna e a poesia dão muito certo uma com a outra. Mas isso é compreensível também porque o cronista usa também recursos de outras formas literárias, como o conto. Não há nada demais nisso, muito pelo contrário. Por exemplo, Manuel Bandeira foi muito ousado na época ao escrever “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Seu poema tem sabor da notícia de jornal, mas também do conto e da crônica. O nosso Geraldo Borges leu o Grão e disse que O Pequeno Engraxate parece um conto. Eu acho que tudo isso aproxima os leitores da crônica.

Na sua opinião, a crônica se identifica mais com o jornalismo ou a literatura?

Pesquisadores destacam que a crônica nasceu do antigo folhetim do século XIX, que era um espaço, geralmente, situado na parte inferior dos jornais, destinado à crítica literária e a assuntos políticos, sociais etc. Portanto, é impossível negar a filiação da crônica ao jornalismo impresso. Diz-se também que “grandes escritores brasileiros do século XIX passaram por jornais”, escrevendo o romance-folhetim e o romance em folhetim, este com preocupações temáticas e estruturais maiores que o primeiro. Mas sua pergunta é sobre crônica. Por isso acho necessário falar sobre a coluna Ao Correr da Pena, de José de Alencar, escrita nos jornais Correio Mercantil e Diário do Rio, em 1954-55. São textos longos, se comparados à crônica contemporânea, que “encurtou de tamanho”, mas têm certo tom de conversa, como as crônicas de hoje em dia.  Os textos da coluna de Alencar tinham também certo tom de literatura. Tomando esse exemplo histórico, a crônica se identifica com o jornal, mas com o passar dos anos, ela foi como que se emancipando e se transformando num texto literário ou numa mistura de literatura com jornalismo. O certo é que o jornal impresso passou a conviver, claro, com crônica jornalística, mas também com a crônica literária. Mas acho que isso só veio a ocorrer na primeira metade do século XX, embora seja bom mencionar Machado de Assis, que, em 1877, portanto, século XIX, escreveu O Nascimento da Crônica. No Piauí, acho que merecem atenção as crônicas escritas por Vítor Gonçalves Neto, no jornal “O Curare”. É difícil dizer onde ali começa o jornalismo e termina a literatura. No final das contas, há espaço tanto para a crônica jornalística como para a crônica literária e até para um misto das duas, porque as fronteiras não são bem delimitadas, nem acho que devem ser. Falando por mim, prefiro escrever – e ler – crônicas literárias, mas escrevo também crônicas jornalísticas. No final das contas, o que interessa mesmo é a qualidade do texto.

Em 2015, você estreia no romance, com No coração da noite estrelada, surpreendendo a todos. Como leitores e críticos receberam o livro?

Surpresa tive eu com a recepção ao livro. Pelo menos, quatro pessoas, que eu saiba, escreveram positivamente: Aírton Sampaio o chamou de “romance geracional”; Eulália Teixeira achou o livro “uma bela história”; Geraldo Borges, “um romance de ideias”; Dagoberto Carvalho Jr também elogiou o livro, puxando mais pro lado oeirense. O Geraldinho me falou que leu duas vezes: após a última página, voltou imediatamente para a primeira, relendo o livro todo. Acho que isso é o principal elogio para o escritor: saber que um leitor leu seu livro por duas vezes, de uma assentada. Logo após o lançamento, encontrei o Cineas Santos em um posto de gasolina, na estrada. Ele vinha acho que de São Raimundo Nonato e eu, de Oeiras. Ele falou com entusiasmo sobre o romance. Desde o início, Cineas tem sido generoso para comigo. Um professor do Ensino Médio de uma escola de Oeiras adotou o livro. Com os alunos, ele fez o percurso por ruas, praças, becos e arredores da cidade, onde a ação se desenrola, e tentou reconstruir a história, de forma teatralizada. Deu pra sentir o interesse e motivação dos alunos. Em nosso meio, não é comum os leitores se manifestarem. Os poucos que falaram comigo gostaram do romance. Um poeta de Oeiras, Edilberto Vilanova, fez a mim, pessoalmente, comentários bastante pertinentes sobre o livro. Acho que ele foi um leitor bem atento.

 Augusto de Campos comparou um bom poema não lido ao canto do uirapuru na floresta, que talvez poucos ou nenhum ser humano ouça, mas está cumprindo sua parte para o encantamento do mundo.

Não bastasse, foi mais além ao publicar, em 2019, a Outra face, segunda obra poética. Que sensações esses gêneros distintos marcam sua escrita e alma?

Na verdade, é muito difícil determinar fronteiras rígidas entre as várias formas literárias. Claro que cada uma delas tem suas características próprias que a identificam como tal, mas isso não impede a intercomunicação. Comecei como quase todo mundo começa, isto é, tentando escrever poemas, depois contos e artigos. Não pensava em ser cronista. Eu queria mesmo era escrever ficção. E aconteceu que, após chegar em Teresina, em 1977, passei a ler muito os jornais da chamada “imprensa nanica”, sobretudo, O Pasquim. Poxa, esse jornal usava uma linguagem que muito me agradava: havia a crítica, a ironia, o humor mordaz. Era uma linguagem ao mesmo tempo “participante”, antenada com o Brasil e o mundo, e uma linguagem “sem paletó e gravata”, altamente comunicativa. Lá pela metade da década de 1990, eu lia os colunistas da Folha de São Paulo e senti que poderia escrever daquele jeito. E  então comecei a publicar artigos no jornal O Dia, de Teresina. Mas lá pelo terceiro artigo, me cansei daquilo e, naturalmente, passei a escrever de um jeito mais solto e pessoal, sem estar vinculado a uma lógica argumentativa. Foi aí que fui migrando para a crônica, porque o tom passou a ser de conversa, às vezes, de “conversa fiada”. Eu achava que não estava fazendo nada demais, mas, um dia, me deparei com um texto de Aírton Sampaio elogiando minhas crônicas. Aí parei para pensar, porque eu admirava Aírton pelo seu livro Contos da Terra do Sol, e já naquela época era um crítico perspicaz. E mais: não era ainda meu amigo. A gente só se cumprimentava – “Ôi, tudo bem?! – de modo que achei seu elogio sincero. Ele não escreveria só para me agradar, não era do seu feitio. A partir de então, passei a dialogar com ele e a refletir sobre o que estava escrevendo e dando o que falar, porque eu encontrava conhecidos na rua e eles me falavam bem das crônicas. Uma vez, um leitor de Picos escreveu para a redação do jornal – era uma carta para mim -, dizendo que adorava minhas crônicas. E então passei a ler mais os cronistas brasileiros e tudo que eu via sobre crônica, pois ali eu me sentia bem, em casa, como leitor e escritor. Mas digo para vocês: acho que não seria cronista se, além dos jornais, revistas e filmes, não tivesse lido boas obras de ficção, de poesia, de teatro, letras de música, histórias em quadrinho e, naturalmente, crônicas. Acho que tudo isso marca minha escritura e minha vida, sendo que a poesia, para a vida e para a crônica, tem uma vitalidade sutil e muito especial. Por isso, cheguei a publicar dois livros de poemas: Último Round e A Outra Face. Mas, sem dúvida, fazer poemas é muito mais difícil que escrever crônicas, contos ou romances.

Tem valido a pena dedicar, desde a estreia em 1994, tantos anos de vida a uma atividade pouco valorizada no Piauí /Brasil?

1994 foi o ano da minha estreia em livro, mas minha primeira crônica foi publicada em 1981, no Jornal da Manhã. Eu também já havia publicado no tabloide Floretim, editado pelos poetas Paulo Machado e Nelson Nunes, na década de 1980, além dos jornais mimeografados Mafrense e O Beco, de Oeiras, e nos principais jornais de Teresina. Assim, comecei mesmo foi em jornal. Portanto, sou de uma geração que aprendeu a escrever, escrevendo pra jornal. Escrever é uma das atividades mais vitais para mim. Mesmo que não deem valor. Mas sinto que não é isso que acontece. Em geral, os leitores apreciam o que escrevo. Por falar em dar valor ou não, o poeta, crítico e tradutor Augusto de Campos respondeu a uma pergunta semelhante: ele comparou um bom poema não lido ao canto do uirapuru na floresta, que talvez poucos ou nenhum ser humano ouça, mas está cumprindo sua parte para o encantamento do mundo.

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