ENTREVISTA / Por Wellington Soares, professor e escritor 

 

Estava em casa, deitado na rede, numa malemolência gostosa, quando recebo uma mensagem da Valéria Silva, via WhatsApp, dizendo que acabara de escrever um livro sobre a família dela. Na verdade, fez questão de destacar, um tributo à sua mãe. E gostaria de ouvir, por ser uma escritora de primeira viagem, a opinião de alguém experiente nessa área. No caso, este aprendiz das labutas literárias, seu amigo desde as lutas estudantis na Universidade Federal do Piauí (UFPI), nos anos de 1980.

Queria saber, com franqueza, se valia a pena ou não publicar o livro. Um calhamaço de quase 500 páginas, O Baú de Faustina, já todo digitado e capa desenhada pelo filho. Diante de tal apelo, só restou-me iniciar a leitura imediatamente. Logo nas primeiras 30 linhas senti, maravilhado, o fôlego da história dessa brava nordestina que, a exemplo de tantas outras, simboliza a luta pela terra e o amor pelos filhos.

Sob a perspectiva de Faustina, a narrativa resgata sua trajetória de vida, pelejas no campo, valores e crendices, necessidades suportadas em silêncio, dureza em criar os filhos, conflitos familiares, amor pelo marido e luta tenaz por um pedaço de terra. Tudo contado, o que dá maior veracidade ao relato, com seu próprio vocabulário interiorano, por meio de suas referências linguísticas. Ao final, temos um perfil comovedor de uma mulher que alia humildade e determinação.

Foi ao ler O Baú de Faustina, virando algumas noites, que conheci melhor a Valéria Silva, autora do romance. Percebi ali de quem ela herdara, quando defendíamos a democracia e o fim da ditadura militar, tanta coragem nos embates com a repressão e na defesa intransigente das universidades públicas. Apesar das misérias humanas causadas, sobretudo, pelos latifundiários, gananciosos e desumanos, o livro traz uma mensagem de esperança.

Não tenho dúvida de que a Valéria, com essa obra de estreia, conseguiu aplacar, se não de todo, pelo menos um pouco da ausência da querida e saudosa mãe. Como também inscrever seu nome entre as promissoras revelações da literatura piauiense contemporânea. No mais, torcer para que ela continue nos presenteando com outras belas histórias.

No romance Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, encontramos a seguinte frase: “O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois chega galopando, como se andasse a cavalo”. Que acha dessa afirmação? 

Percebo-a cheia de verdades. De fato, sempre estamos trilhando nas sendas das nossas pertenças ancestrais, culturais etc. Especialmente, nos enredamos com os afetos, aqueles que nos fazem como pessoa. Por vezes, não percebemos, mas seguramente aquilo que construímos pela vida afora, repousa no “sangue do passado”. Claro, matizado pela experiência única de cada pessoa, contudo inextrincavelmente articulado à sua memória.

Quando comecei a escrever O Baú o que mais me chamou a atenção foi a quantidade de memórias que eu havia guardado. Na verdade, memórias de mim. Normalmente, demandava-as aqui e ali, entretanto sem perceber a dimensão do que eu havia retido. Primeiro, chegavam despretensiosamente, uma a uma. Depois, realmente em corredeira, como um imperativo, um sujeito desejante de luz. E aí, já precisava anotar esta, aquela e mais outra para, oportunamente, escrevê-las de modo adequado.  E surpreendi-me também com a força que tem a oralidade nas dinâmicas da convivência humana.

Quando você percebeu estar grávida de O baú de Faustina? 

Demorei a perceber. Eu escrevia para mim. Escrevia para mitigar a ausência da minha mãe. Para revisitar nosso convívio e sua própria trajetória de muita labuta e resiliência. Para conciliar meus afetos, meu “sangue do passado”. Talvez escrevesse também para conferir a Faustina o reconhecimento profundo pelo que foi, o qual ela não teve, assim como tantas mulheres de sua geração, tempo e lugar. Por isso, só depois de escrever por mais de dois anos, acionada sempre por minhas demandas interiores, foi que olhei para tudo aquilo de modo diferente. E pensei: “E se eu fizesse um livro com as histórias de mamãe?”. Ali, houve a fecundação e fui cuidar de uma longa gravidez atemporal, (des)alimentada também pela realidade cotidiana de uma professora universitária, mãe, esposa, militante, sitiante e pessoa interessada na vida em sua complexidade.

A estreia literária teve uma boa acolhida por parte dos leitores/críticos ou ficou aquém do esperado? 

Veja, O Baú tem sido motivo de grandes surpresas para mim. Desde a pré-venda, onde foram vendidos 158 exemplares, até os últimos retornos que recebo de quem vem lendo a obra. Sinceramente? Não esperava tanto. Eu não tinha (e continuo não tendo) condições técnicas de apreciar o trabalho. Minha tradição é acadêmico-científica, a minha vivência com a literatura tem sido meramente enquanto leitora. E me vi escrevendo memórias, então me fugia a capacidade de dizer sobre o livro. Não obstante, o/as leitores/as me fazem apreciações muito entusiasmadas, geralmente se reportando a ricos encontros identitários, partilha de lugares estéticos e culturais de muito conforto. Assim, para mim o livro está se mostrando para além do esperado, tanto na relação com o público quanto à alegria que vem me proporcionando.

Escrevia para mitigar a ausência da minha mãe. Para revisitar nosso convívio e sua própria trajetória de muita labuta e resiliência.

Quem foi realmente, cá entre nós, essa mulher que encanta do começo ao final da história? 

Sabe, penso que, no fundo, Faustina é uma mulher muito comum. Sim, é uma mulher de força indescritível – à sua maneira -, resignada, de certezas inabaláveis, hoje obsoletas, mas decisivamente necessárias à vida que viveu. É uma mulher que viveu uma epopeia! Mas acredito que este ser povoa quase todas as famílias rurais de Teresina, do Piauí, de um modo ou de outro. São mulheres que carregaram todo o fardo de desafios, dificuldades, exigências que um contexto patriarcal as legou e ainda as lega. E que, diante da inexorabilidade sócio-político-cultural, o fizeram da melhor maneira, com a sabedoria que a própria dureza da vida engendrava. Vejo Faustina com delicadeza e amor particulares por se tratar de minha mãe. Mas, sei que no mundo rural piauiense teríamos muitas outras histórias de mulheres fantásticas para contar.

De que maneira a luta pela terra e a garra em ser mãe se entrelaçam e conduzem a narrativa? 

Mãe e terra me chegam sempre muito vinculadas. Para mim, sinônimos de segurança, generosidade, complexidade, geração de vida, dinâmica vital cíclica, muito embora o modo de vida geral que nós, os humanos, escolhemos construir no Planeta seja desagregador de uma e de outra, bem como da relação entre ambas.

No livro, a terra surge evidenciada em sua extrema necessidade enquanto recurso e lugar de ancoragem da vida camponesa. A sua constante negação ou mesmo a dificuldade de acesso à terra ali relatadas, atentam contra a viabilidade da vida das pessoas que, à época, não conheciam, por assim dizer, outro modo de existência. E não falo só do trabalho e do aprovisionamento, mas da vida em sua plenitude. De seres existindo naquele mundo. Nesse contexto camponês, a mãe também é indispensável para dar viabilidade a este modo de vida. O seu trabalho – normalmente sem visibilidade – os vínculos e sentidos comunitários que tece, o seu papel no universo da reprodução da família… sem a mãe, sem a mulher camponesa nada disso existiria. Então, a mulher e a terra são condições indispensáveis para a existência do modo de vida camponês.

Em que autores e obras você encontrou inspiração para construir saga familiar nordestina tão envolvente e impactante? 

Certamente, me inspirei em tudo que já li da literatura e da cultura rural nordestina. Mas devo dizer que a minha pertença rural e o meu trabalho, enquanto pesquisadora de temas rurais, animaram muito a escrita do livro. As várias etnografias me fizeram revisitar aquele “sangue do passado”, levando-me novamente, e mais a fundo, à alma do nosso jeito piauiense de estar no mundo. Pude recolocar cada questão sob lupa, analisá-la, atualizá-la, senti-la mais uma vez… A minha vivência com a Agroecologia também contribuiu para a construção de certo olhar para as questões rurais. Talvez a inspiração venha disso tudo, ao mesmo tempo.

Pretende parar por aqui ou vem mais livros pela frente? 

Inicialmente, não havia nenhum propósito neste sentido. Mas, O Baú e seus gentis leitores e leitoras têm me feito, mais recentemente, refletir sobre esta possibilidade. Escrever uma história foi algo que me deu muito prazer, portanto, algo que poderia ser retomado. Deixemos o tempo aquilatar as alegrias e frutos deste primeiro trabalho. Quem sabe?