Por Wellington Soares, professor e escritor

A poesia é maior que a morte

O impacto foi tanto que guardo a cena até hoje na memória. Ano e local, lembro não, mas o poeta, vindo de São Luís, fixei seu nome na hora: Celso Borges, numa performance literária, reunindo versos e acordes de guitarra, soltando o verbo em Teresina: “Oi, oi, cadê a língua que se foi?/ Oi, oi, cadê a língua que se foi, hein?// Leiam minha língua/ Ouçam minha língua/ Lambam minha língua/ Rocem minha língua/ Beijem minha língua/ Chupem minha língua/ Mordam minha língua/ Comam minha língua/ Falem minha língua”.  

Maravilhado, fiquei quietinho, na cadeira, assuntando com atenção. Por nada deste mundo queria perder, do Celso, cada palavra falada e musicada dita – clarões se abrindo dentro da gente – de forma contundente e provocativa: “A posição da poesia é oposição”. Ali percebi, com ele, a força mágica da poesia, algo capaz de revolver nossas vísceras e sentimentos. Daí o medo dos tiranos, ontem hoje e sempre, dessa arte da palavra que, historicamente, desperta consciências e revoltas humanas.

Não tardou muito para Celso Borges, a meu convite, retornar à nossa capital, em 2017, a fim de participar do Salão do Livro do Dirceu (Saliceu), no campus Clóvis Moura da Uespi, onde reapresentou o mesmo espetáculo, desta vez sob o olhar curiosíssimo de uma galera jovem, formada por estudantes secundaristas e universitários. No final, o auditório quase veio abaixo, acredite, de tanto aplausos e assobios e gritos e urros e vivas. Será se gostaram?

E pensar que essa travessia poético-existencial começou em 1981, quando Celso publicou Cantanto, seu livro de estreia. Depois vieram uns outros dez títulos, entre os quais Persona Non Grata (1990), Belle Époque (2010), Fúria (2015) e Pequenos Poemas Viúvos (2020). Sem falar ainda, claro, das parcerias musicais com Zeca Baleiro e Chico César, oficinas poéticas, programas de rádio, curadoria de feiras literárias e, ufa, organização de livros coletivos (São Luís em Palavras).

A fim de espantar a morte pra longe, nestes tempos de Covid-19, que tal se ligar nas sábias palavras de Celso Borges, poeta maranhense que encanta o Brasil?

Seu novo livro, “Pequenos poemas viúvos”, tem dado o que falar, sobretudo, pelo título recebido. Pequenos poemas tudo bem, uma vez que os textos são curtos, mas a que viuvez se reporta na obra?

O prefácio assinado pelo poeta Samarone Marinho foi muito feliz na percepção dos poemas viúvos quando diz que eles invertem o sentido da perda, transformando ausência em presença, criações que vão além do inevitável universo da finitude.  Escolhi, principalmente, personagens da arte vivendo situações de limite, às vezes próximo da morte, e tentei de alguma forma encontrá-los naqueles momentos, inventá-los, poetizar fatos e experiências extremas. A palavra viuvez tem um peso muito grande, eu quis de alguma forma trazê-la para minha voz poética, tentando sentir o outro, imaginar o outro, inventar o outro. Há um sentido de perda, sim, nesses poemas, mas há sobretudo intenção de embrulhar carinhosamente, às vezes ironicamente, essa perda com poesia.

A gente morre e a poesia fica. Depois de tudo, sobreviveremos naquilo que inventamos e vivenciamos com a arte.

O que leva você afirmar, no último texto do livro, que a poesia é maior que a morte?

A gente morre e a poesia fica. Depois de tudo, sobreviveremos naquilo que inventamos e vivenciamos com a arte, com a poesia. Quero com esse verso ratificar a minha crença e percepção do real significado da poesia pra mim. Ana Cristina, Maiakovski, Pizarnik, Sousandrade, Yuka, Cortazar estão mais vivos do que nunca, maiores que a matéria que já não existe. A poesia é maior que a morte é também o título de um livro inédito que escrevi sobre a segunda morte de meu irmão Antonio José, que morreu aos 18 anos, quando eu tinha 13, em 1972. Mais de 40 anos depois, ele voltou a morrer quando a maioria de suas fotografias foi destruída pelos cupins. Criei poemas sobre a destruição, transformei em poesia. Foi uma vivência muito dolorosa, mas sobrevivemos.

Esse tempo de pandemia e isolamento social aumentou ou diminuiu sua criatividade poética e literária? Ou é indiferente?

A pandemia não me imobilizou, trabalhei muito, escrevi muitos poemas, finalizei dois livros em prosa (um ensaio biográfico e uma ficção), continuei fazendo meus livrinhos da série Poéticas afetivas, além de parcerias musicais com Nosly, Ivandro Coelho, Alê Muniz, Marcos Magah, Fernando Abreu, Sérgio Habibe e algumas canções solo. Terminei também um filme documentário, em parceria com o cineasta Beto Matuck, sobre o poeta maranhense Bandeira Tribuzi. Tudo isso, no entanto, não impediu que eu vivesse alguns momentos difíceis, crises de ansiedade e um doloroso sentimento de impotência diante da situação política. Sinto falta das ruas e dos amigos, mas a chama da criação continua acesa.

A estrutura não gosta da gente, às vezes finge que gosta ou nos tolera. Na verdade, prefere “poetinhas civilizados”.

Você ainda acredita que a posição da poesia, como expressou em performance pelo Brasil, é realmente a oposição?

Sim, cada vez mais. O sentido da oposição poética é muito mais amplo. Para mim, a posição da poesia é de enfrentamento político, de luta como cidadão e criador, não apenas partidária.  A estrutura não gosta da gente, às vezes finge que gosta ou nos tolera. Na verdade, prefere “poetinhas civilizados”, domados, acadêmicos, e eu procuro na contramão disso.

Letra de música deve ser, como as que você faz pro Zeca Baleiro, tomada como poesia ou são coisas distintas?

Não me preocupo muito com isso na hora de elaborar um poema ou uma letra de canção, mas acho que são estruturas distintas, embora possam dialogar esteticamente, se alimentar, criar atritos interessantes. Eu gosto desse desafio das possibilidades de troca entre um e outra.  Às vezes um poema de livro vira canção, outras vezes uma letra tem vida além da melodia que lhe foi sugerida. Há, também, letras de canções que precisam da melodia para se tornar grandes e  canções que enfraquecem o poema. Enfim, é um universo muito rico e cheio de nuances.  Sinto uma alegria enorme de compor com meus parceiros e privilegiado em poder dividir isso com algumas pessoas. A única palavra que não entra nessa troca é “sucesso”, um veneno que destrói a alma de muitos criadores. É claro que determinadas canções podem virar sucesso, mas nunca devemos colocar isso em primeiro plano.

Além de você, que outros poetas maranhenses, entre nomes já consagrados e contemporâneos, precisam ser lidos e amados?

Vou fugir dos consagrados (rsrs).Temos uma safra boa de poetas contemporâneos e não é tão simples nominá-los, porque toda escolha é excludente, a gente sempre deixa de lado artistas importantes. Mas vamos lá: Fernando Abreu, Luís Inácio, Josoaldo Lima Rego, Reuben Rocha, Lúcia Santos, Dyl Pires, Adriana Gama de Araújo, Jorgeana Braga, Antonio Ailton, Kissyan Castro, Carvalho Júnior etc.

O que é, para que serve e o que lhe deu a poesia até hoje?

A poesia me deu a possibilidade de reinventar a vida e dividir isso com os outros. É por meio dela e por causa dela e da arte que procuro dar um sentido à minha existência e aos diversos mundos que vivencio com as pessoas. Tudo passa pelas possibilidades da palavra e das imagens. Vivo disso e pra isso. Viva!

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