Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“É chegado o fim de tudo
E o mundo pode acabar”

Belchior

Há um extermínio do viveiro de pobres que vive em Gaza gerado pelo regime de apartheid do estado de Israel. Há, nesse momento, em todo o mundo, quase 30 conflitos armados entre nações defendendo suas linhas de controle, as fronteiras; a maioria de pobres vai morrer nesses conflitos, os mais ricos vendem as armas. Estamos, todos, ao mesmo tempo, sofrendo o horror dos efeitos produzidos pelo caráter indômito e dromológico do capitalismo no planeta: a maioria, também um viveiro de pobres, vai sufocar de calor, sede, desidratação, falta de ar. Weltschmerz, ou seja, desolação e desamparo, morte rápida, esse é o resultado da guerra civil mundial e da normalização do terrorismo privado, pode-se ler tanto em Didier Vincent ou Peter Sloterdijk quanto em Paul Virilio. O filósofo bávaro, por exemplo, lembra que nos sobra um bafio, uma ausência de renovação do ar, são os que podem pagar que mantêm uma “climatologia especial” e, assim, num revés, “manipulam o ar respirável e deixam aos pobres apenas a sua dimensão mais destrutiva.” E Virilio, noutro exemplo, diz que o capitalismo impõe “tomar tudo de assalto”, o dinheiro é uma dromomania, o movimento deixa de ser uma revolução: o movimento agora é a velocidade como política de estado, controlar tudo com o imperativo da falcatrua da lei.

A maioria de pobres vai morrer nesses conflitos, os mais ricos vendem as armas. Estamos, todos, ao mesmo tempo, sofrendo o horror dos efeitos produzidos pelo caráter indômito e dromológico do capitalismo no planeta.

Na outra ponta da vida, 60 pessoas controlam todo o dinheiro do mundo; 4 ou 5 corporações toda a comida; 5 países têm poder de veto na ONU, que é, cada vez mais um espaço conformado e conformador, esses mesmos 5 enriquecem muito imediatamente e sem parar; há uma família ou duas que enricam de modo absurdo no Brasil à custa da extração de nióbio da floresta amazônica, em 10 anos foram 30 bilhões de reais; no dia 19/11 Javier Milei, figura da extrema direita alucinatória que avança por todos os lados, tornou-se presidente da Argentina; há uma feira literária sobre pedraria escrava no litoral fluminense, o sistema de escravidão e subserviência é circular, a patrocinadora oficial da feira é a VALE, que pratica uma mineração violenta e irresponsável, mesmo depois de Fundão e Brumadinho, do outro lado, como sempre, um banco, e o viveiro de pobres continua morrendo sob o rejeito, pouquíssimas pessoas se movem para dizer não, é o pacto. Um famoso escritor brasileiro diz que só há paz na lei e na justiça, esqueceu de Franz Kafka ou não viu ou não leu, quando este diz, lendo Anaximandro, que diante da lei não há justiça nem muito menos paz. Para  que algo exista – dizia o filósofo de Mileto, simpático a um partido de trabalhadores –, algo tem que deixar de existir, daí que o ser já é, como tal, uma injustiça; e Kafka, lentamente, inverteu o lance de dados que jamais abolirá um lance de dados: Alonso, o quixote, não passa de um demônio de Sancho, o pança. Há um pacto imposto de mudez e compadrio, Pasolini disse – porque sabia que sua participação como intelectual era pública, nunca íntima ou familiar, aprendera com Gramsci – que este pacto de pafúncios é, no mínimo, cretino.

Pouquíssimas pessoas se movem para dizer não, é o pacto. Há um pacto imposto de mudez e compadrio.

Joana Corona

Numa anterioridade ao pacto, há Crostácea, livro de Joana Corona [1982-2014], publicado em 2011, editora Medusa. A vida brevíssima não impediu Joana, que expandia seu pensamento entre o poema, as artes visuais [os objetos do livro e da leitura] e seus estudos de antropologia cultural, uma etnografia urbana da língua  impossível das putas e dos que habitam as ruas, de traçar uma oscilação diferida ao seu trabalho. Diga-se aí, assim, vagarosamente, do convívio com Ricardo Corona, poeta de guerrilha, e Eliana Borges, artista impensada, tios, ou com Davi Pessoa, professor e tradutor, um pensador da política e seus desvãos às coisas do porão. Se pouco se vê e se lê, o que para Giordano Bruno eram um mesmo gesto, da poesia de João Cabral de Melo Neto hoje ao nosso redor mesmo se como mero resíduo, praticamente anulada, porque escrita, como ele apontava, não por “uma necessidade de expressão, mas por escassez de ser” –, os textos de Joana refazem a pedra do poeta de Recife como musgo e coral num mar de plástico. Ao lado, há o pouco que vem, lição da pedra, e que está na poesia de Carlito Azevedo, que reelabora a pedra em conversa direta com o que João Cabral lia, reparava, tocava, Midas ao contrário, todo ouro vira pó e força de sentido; na poesia de Júlia Studart, como um arremesso da pedra até a cabeça de quem passa, uma Krazy Kat de depois de amanhã, acrobacia, cicatriz e jogo; na poesia de Eduardo Sterzi, pedra torta, pedra de fogo, lava em chiaro-oscuro, desmembrada, mal amada, imposição do apagamento da paisagem e anotação de risco e perigo, pedra de raspar o pé; e repare-se, escrevem pouco, publicam menos ainda.

Os começos de enfrentamento do trabalho de Joana Corona não são meras impressões de uma vida própria, mas de um vento contínuo, inteiramente extimo e, sem medida, tudo que se desenha na força espiralada de um “pequeno fracasso”.

Em poemas como contracarne, Joana imprime que “somos o que retemos e o nosso desperdício mútuo”, ou em viento, uma pequena vida entre línguas, quando escreve que há “un sonido perdido en el hueco del desierto. quase devorado pelo silêncio. choca-se em: cordillera de la sal, mineral, esqueleto de anfíbio, concha, areia e outros resquícios marítimos. penetra a vasta sequidão, ensolarada e quente. estrelada e gelada. em seus bailes frequentes – deserto solitário. agigantado e solene. hace que el sonido explote sutil y agudo, imperceptible.”, está sugerido o movimento que ainda é próximo da entranha e da dança, que ainda é revolução, ou seja, antes da linguagem meramente burocrática e de fragilidade pessoal, familiar, vidinha íntima. O que se tem é uma espécie de reparação ou compensação da música vagarosa contra a velocidade da ilusão do tempo, o trabalho de Joana é um vento que sangra, do poema ao livro, do livro ao objeto exposto que a leitura é. Crostácea segue sem fluxo algum, bastariam trechos de poemas como calcário, “da epiderme pálido-dourada ressequida impregnada”; disfagia, “cabeça dentro de cabeça”; ou migalhas, “como cavoucasse pedra, batia cabeça [dura] por palavra bruta”, para que se perceba que os começos de enfrentamento do trabalho de Joana não são meras impressões de uma vida própria, mas de um vento contínuo, inteiramente extimo e, sem medida, tudo que se desenha na força espiralada de um “pequeno fracasso”.

Vestidas de vento | Foto: Rogério Von Krueger

Entre vento e ventania, importante demais, também, tocar o trabalho de Mariana Medina, uma artista de circo, professora de acrobacias de circo com pano e lira, trapézio e corda, movimentos de chão e os descompassos do corpo como brincadeira, brincar, presença das delicadezas de criança que, por sua vez, atravessam a história, tanto a que se faz, quanto, principalmente, a que se sofre. Mariana dirige o Grupo Devoar, e seu último espetáculo entre coreografia e direção realizado e apresentado em temporadas curtinhas no Rio de Janeiro agora em 2023, Vestidas de vento, nos teatros Nelson Rodrigues, da Caixa Cultural e, depois, no Dulcina – espaço cultural da Fundação Nacional de Artes – Funarte, através do Programa de Fomento Carioca, FOCA, é simplesmente encantador. Cinco artistas de circo, bailarinas, acrobatas [akrobatoi] – Amanda Pontes, Ana Cecília Menescal, Julia Sève, Lua Couto e Maju Houri – se revezam entre os emaranhados de suspensão e sustentação dos corpos uma de cada outra e, entre risco e queda, equilíbrio e muita força, numa tentativa sutil de raspar as ideias do mundo em crise, do feminino e de uma reinvenção da Terra. Importante, e isso está entre os princípios de formação de Mariana, do teatro ao circo, da geografia à psicologia, o quanto o cenário de pouca luz, vestidos leves e quase brancos [eis uma figuração do vento] e muitas folhas secas e soltas pelo chão desenham a raspa da Terra atravessada pelo rocio dos braços, das mãos, das pernas, dos pés, dos cabelos e dos olhos das personagens que cada bailarina é; mas, repare-se, só se em conjunto, unidas, juntas, composição e comunidade contingente.

O trabalho de Mariana Medina é da dimensão do político, são mulheres que se lançam ao vazio do vazio para esvaziar a desmedida do capital que é, histórica e imperativamente um círculo de homens, masculina e branca, e que reduz a vida à eficácia.

Mariana Medina | Foto: Rogério Von Krueger

E isso é o encanto imaginativo desse trabalho de Mariana Medina, tanto que é muito possível lembrar do poema-fragmento de Alejandra Pizarnik, de 1962, “un vento débil / lleno de rostros doblados / que recorto en formas de objetos que amar”, porque é nesse empenho que se apresenta no contradito do choque dos apertos de mão e da dobra dos rostos, quase sempre impassíveis mas marcados por esforço, que comparece o desejo daquilo que ainda é leveza diante do corpo, este peso, movido a sangue, carne, pele, ferida, cicatriz, veste e nudez, um móbile informe entre a gravidade e a graça numa imaginação de esvaziamento: vestir-se de vento, vestir-se com o vento, vestir-se vento. O que Simone Weil já implicara, como uma dimensão do político, ao dizer que “o trabalho contínuo da imaginação é provocar fissuras por onde a graça possa passar”, “a imaginação não preenche vazios”, “toda arte só é se coletiva” etc. E é muito isso porque o trabalho de Mariana é da dimensão do político, é telúrico, são mulheres quem vêm trançadas em espiral, a linha infinita, sem começo nem fim, que também veem e se lançam ao vazio do vazio para esvaziar, com a radicalidade de seus corpos, a desmedida assoladora do capital que é, histórica e imperativamente um círculo de homens, masculina e branca, e que reduz a vida à eficácia.  Re-habitar a Terra, recompor a Terra é, no mínimo, como um sentido de memória, reinventar o mundo, este único que criamos para alguma possibilidade de existência.

Fábio Freitas em cena da peça Cão chupando manga | Foto: Ivam Cruz

E é tal como um apagamento de toda e qualquer ideia de círculo, circularidade, o que leva a estados de violência e poder, que o aperto de mãos entre Fábio Freitas, ator e dramaturgo, e Sidnei Cruz, dramaturgo, poeta e diretor de teatro, projeta a peça Cão chupando manga, uma deseducação. E aí, procedimento expandido, a luz de Guiga Ensa, a trilha sonora de Ivam Cruz e a direção de movimentos do ator de Maria Angélica Gomes. Um texto errante permeado por objetos de cena criados por Fábio com tampinhas de garrafa de cerveja, saias e sandálias altas, máscaras e pulseiras de pulso e tornozelo, artefatos de ferrugem e chão vermelho. Em princípio é o teatro do mundo, esta falência, a vida que gorou. Ator e público descentrados em uma mesma altura, nenhuma hierarquia. Há um homem, vive num apartamento vizinho de um quintal com mangueira, no quintal há um cão que late sem parar, o homem não consegue dormir, não dorme, torna-se uma besta, deseja matar o cão, precisa dormir. Dança em giro, se move anódino, se diz sem dizer, baba, para frente a alguém, fala baixo, grita, estabelece convites, quer chupar o dedo do pé de alguém, chupa, esboça cagar na frente de todos, despe-se, posiciona-se, concentra-se, quase caga, chupa uma manga completa e visceralmente e avisa que está-se num lugar real.

Na peça “Cão chupando manga”, a confirmação de que, entre nós, humanos e humanos, não há reconciliação, nem muito menos um ombro a ombro, caminhar, caminhar mais, num projeto insubmisso contra a domesticação movida pela banalidade da palavra de ordem, da frase feita.

 

Sidnei Cruz | Foto: Ivam Cruz

A revirada da peça é a confirmação de que, entre nós, humanos e humanos, até porque muito distantes de toda animalidade, nosso res a missa, não há reconciliação, nem muito menos um ombro a ombro, caminhar, caminhar mais, num projeto insubmisso contra a domesticação movida pela banalidade da palavra de ordem, da frase feita, da vida lançada ao domínio e ao controle mímico do capital. O ponto insurgente é o como e quando, pergunta e temporalidade, Fábio Freitas se modula ao cenário vermelho, por exemplo, quando bebe água em pequenas garrafas térmicas também vermelhas dispostas ao alcance da mão e, sem parar, numa língua selvagem, abissal, desordenada, caótica, vocifera a morte do cão, da vizinha, do vizinho, da árvore, em busca de ar e com sede. O que alonga o ponto é, ainda, o que pode advir num próximo pensamento, se o mistério ou se o inacessível, estamos definitivamente, diante daquele homem incomum, pasmos e no preenchimento da vida com deuses, mitos, deus, simbologias divinas e sagradas, mas nada nos há como salvação. Assim, é também muito do que faz e imagina fazer Sidnei Cruz: a liberdade sem medo contra a normatividade do normal. Três trabalhos e tão pouca gente para nos lembrar que o que nos sugere a delicadeza da fúria e de nossa capacidade, cada vez menor, para dizer não, é a dilação figurante, exposta, vagabunda e flutuante, daquilo que somos: um animal que ri.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.