Por Herasmo Braga

 

No imaginário moderno, há inúmeras formulações equivocadas que as tomamos sem muita análise e até as concebemos como verdades. Podemos destacar a questão da individualidade, da autossuficiência, e que tudo só depende de nós. Ideias que são levadas al fin y al cabo sem muitas dificuldades e constituem motes discursivos de infindas produções de autoajuda ou de narrativas ficcionais frágeis. No entanto, se só crer nestas fantasias não fossem suficientes, as consequências destas tornam a vida social cada vez mais árdua com muitas razões e poucos argumentos.

José Ortega y Gasset em Meditações do Quixote teve uma das suas frases tornada célebre: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo, não me salvo eu; Benefac loco illi quo natus es”. Diante deste pensamento, sem sobressaltos, podemos perceber o tom realista e de possibilidades em relação a qualquer ação, seja ela no campo externo do contexto social, cultural, histórico, ou mesmo no âmbito da subjetividade. Todavia, todas as ações partem de um único ponto e, de certa forma, retomam a ele mesmo: o próprio sujeito. Com essa ideia, não queremos deturpar o que nós colocamos logo no início contra, mas ratificar o equívoco da individualidade, da autossuficiência, pois, ao perceber que qualquer transformação à qual estamos limitados, precisando da minha atitude, ela só terá efeito se for pensada na coletividade e realizada com o auxílio de outrem.

Diante destas observações iniciais, iremos identificar que o erro na condução de nossos atos e pensamentos está vinculado às interpretações que fazemos, pois, muitas vezes, não são condizentes com os sentidos expressos. Para ilustrarmos esta assertiva, tomemos a própria ideia de realidade. Reconhecemos que toda e qualquer tentativa de definição, seja ela de ordem filosófica, social, histórica, entre outras, estará incompleta e sujeita a questionamentos. Para não ficarmos à mercê de inúmeras propostas, sugerimos a formulada pelo teatrólogo espanhol José Sanchis Sinisterra que, em Da Literatura ao Palco diz-nos: “É fundamental não esquecer que o que chamamos de realidade é uma imagem construída culturalmente, socialmente […] A noção de realidade, portanto, também é relativa e variável”. Aproximemos essas ideias de outra de Ortega y Gasset, quando nos enuncia: “Todo labor de cultura é uma interpretação – esclarecimento, explicação ou exegese – da vida”. Dessarte, ao entender por realidade, na expressividade dos dois pensadores, teremos que a vida é algo construído de maneira relativa e variável, mas a nossa interpretação não nos dará apenas a compreensão dela, mas até mesmo sentido, pois entender sem sentir é apenas informar-se, situar-se, e nisso nada irá compor o ser.

Em outro momento da sua obra, Gasset irá nos esclarecer: “Do mesmo modo como há um ver que é um olhar, há um ler que é um intelligere ou ler por dentro, um ler pensativo. Só diante deste último é que se apresenta o sentido profundo do Quixote”, e exemplificando este pensamento, tomemos essa passagem da obra de Cervantes mediante o diálogo do nosso cavaleiro com o seu escudeiro: “– Para que vejas, Sancho, o bem que em si encerra a andante cavalaria e quão a pique estão os que em qualquer ministério dela se exercitam de virem logo a ser honrados e estimados pelo mundo, quero que aqui ao meu lado e na companhia desta boa gente te sentes, e que sejas uma mesma coisa comigo, que sou teu amo e natural senhor; que comas do meu prato e bebas donde eu beber, pois da cavalaria andante se pode dizer o mesmo que do amor se diz: que todas as coisas iguala”. Sentimento ético por parte do cavaleiro de triste figura ratifica a ideia de Ortega y Gasset, quando feita a interpretação convergente ao sentido sugerido faz o sujeito ressignificar o seu olhar.

Desse modo, quando o homem é consciente de ser constituído por narrativas e, consequentemente, interpretativo, irá atentar-se que nesta relação não cabe nenhuma individualidade, autossuficiência ou apenas da vontade própria, pois desenvolvemos narrativas com outros personagens, participamos de outras histórias, e somos recepcionados por terceiros próximos ou distantes, presentes ou futuros.