Por José Vanderlei Carneiro
“Sobre o que não se pode falar, deve-se calar.”
“Quando não se tem o que falar” é um estado meditativo sobre a felicidade e sobre as coisas essenciais que repousam no silêncio profundo. De como a constituição do sentido da vida ultrapassa as medidas do tempo, assim como o amor humano é ágape divino. Essa meditação é também uma reflexão e uma experiência. Um convite a gastronomia das emoções, degustada com cuidado e admiração. Um exercício da arte da escuta e do respeito ao coração de quem já não tem o que falar, pois aquilo que era afeto se encarnou na história e se efetivou da forma possível que a vida concedeu, multiplicando as “variações sobre o prazer”.
A fala denuncia nossos limites em formas estéticas, valores éticos, crenças religiosas, encobrindo o fundamental, que é a vida.
Era uma manhã de nuvens cinzentas e alguns fios de luz. Foi uma experiência mística em torno da felicidade. A felicidade exige pouco. Quanto menos lembrança, mais encontramos os segredos profundos do amor; quanto menos visão, mais enxergamos a beleza do ser; quanto menos interesse, mais a Graça de Deus age sobre nós e quanto menos se espera, a mágica do encanamento acontece. É conhecido da poetisa mineira que o que alimenta a pessoa não é a comida, mas o canto; não é a comida no prato, mas a comida na panela e no fundo a memória. A cozinha é o lugar do sagrado. As conversas e risadas e histórias e acontecimentos e interditos e transgressões, ficam lá como imagens, cores, aromas e sabores. O que dá alegria ao corpo são as sensações, a dança. Lembra? Indo e vindo. Um ser bailando de alegria, inquieto entre o esquecimento e a memória; na fronteira entre confusão e lucidez como expressão metafísica louca e linda, sem patrulhamento moral. Estranha vontade de degustação… Comida gostosa foi aquela que não foi servida, pois a falta é produtora de desejo. Somos nutridos pelo que não temos. Pura memória esquecida. Mas é somente quando se esquece é que se lembra do esquecido e este é o fundamental; é exatamente este o amor primeiro; o segundo, o terceiro, … existem na memória. Sempre presente. Tudo presente: Tempo. Imagens. Conceitos. Vivências…
Estava um clima de serra, vento calmo e arvores levemente imóveis. Foi um momento de aprendizagem. Tudo nos conduzia ao acolhimento. Aquela vivência dionisíaca foi menos sobre o que se tinha para dizer e mais sobre o que se tinha para viver. Quase uma manifestação sublime; quase uma necessidade de oração: bem-aventurados todos aqueles que sonham, eles herdarão as vicissitudes do coração da terra; bem-aventurados os tolos, os amantes, os esquecidos, os falíveis, … estes desfrutarão do paraíso com bananas, gargalhadas, tapiocas e cafés; bem-aventurados o Ser sonhado, pois dele faremos nossa morada e nela reina o silêncio e os brinquedos; nela se encontra a celebração da amizade e a disposição para escutar; nela se espraia a vida e a absurda vontade de retornar. Do outro lado da serra, Adélia Prado rezava lindamente: “Bem-aventurados o que pressentiu quando a manhã começou: não vai ser diferente a noite. Prolongados permanecerão o corpo sem pouso, o pensamento dividido entre deitar-se primeiro à esquerda ou à direita e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia: algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda, um vento bom entra pela janela”. Uma intuição perfeita para o inventor deste encontro de pura inspiração.
Um dia eu voltarei àquele lugar. Amei. Como não retornar à beleza! Não aceitarei o conselho do mestre da imaginação: “se você amou muito um lugar, não faça a besteira de ir visitá-lo. Porque você vai visitar pensando que vai encontrar o tempo, mas o tempo não está mais lá. É melhor você ficar com a imagem da sua cabeça”. Eu retornarei, sim, ao meu lugar. Mesmo se for preciso restaurar as imagens que guardo de lá; mesmo se for preciso acender velas aos parentes que não encontrarei mais.
Tinha sobre a mesa uma faca, cheiros-verdes e mãos excitadas. Estávamos diante do imprevisível, do devir, da surpresa, do trágico do esquecimento involuntário. Nos restava a esperança de acontecimentos originários, a irrupção da memória, a transgressão a todo transtorno neurodegenerativo que fosse impedimento a emoção se expressar. Sobre isso, temos o pensamento de que “todas as coisas significantes na vida, a memória não esquece” ou o que o coração ama, a alma guarda e lembra para sempre. Vivemos uma aventura do sonho do menino que buscava se encontrar consigo mesmo. Para compreender melhor tomei os versos do professor/poeta para afirmar que a boniteza do real é a “malinação” do sonho, da imaginação, da paixão roubada, do encontro realizado, da felicidade do outro desenhado no brilho do olhar, nas lágrimas contidas por todos; uma soma de moções muito própria das pulsões biológicas e espirituais. “Bicho besta é menino, prega cheiro nas manhãs, rindo-se delas molhadas…”. Somos, assim, atraídos pela cozinha como os meninos são fascinados pelos brinquedos. Não me contive e repetia o texto: meu irmão virou artista! Tornou-se de novo criança, fazendo mágica, unindo o desconhecido, brincando com as lembranças, degustando os sentimentos, desamarrando o tempo, transformando o cronos para sempre kairós e o esquecimento para sempre memória e a paixão para sempre desejo.
Foi chegado a hora de partir. Quando não se tem o que falar temos a verdade, mesmo confusa, nebulosa, incompreensível, aleatória, ou mesmo, a certeza, a objetividade, o dogma, o em si… na sua radicalidade, o silêncio. Como diz o filósofo Pedro Duarte, “O silêncio é o resto que fica dentro da fala, para que ela possa falar. É a ausência que deixa a presença ser. […] esse silêncio que resta não é apenas a sobra da fala, o dejeto que fica fora dela”. Mas a possibilidade de contemplação com o mundo, com as coisas, com os seres humanos, com o transcendente, desde que seja guardado internamente. A fala denuncia nossos limites em formas estéticas, valores éticos, crenças religiosas, encobrindo o fundamental, que é a vida. “Ah, meu Deus, eu sei, eu sei. Que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: É bonita, é bonita e é bonita.” A perplexidade se transformou em música; a poesia em natureza; a fala em silêncio.
Um dia eu voltarei àquele lugar. Amei. Como não retornar à beleza! Não aceitarei o conselho do mestre da imaginação: “se você amou muito um lugar, não faça a besteira de ir visitá-lo. Porque você vai visitar pensando que vai encontrar o tempo, mas o tempo não está mais lá. É melhor você ficar com a imagem da sua cabeça”. Eu retornarei, sim, ao meu lugar. Mesmo se for preciso restaurar as imagens que guardo de lá; mesmo se for preciso acender velas aos parentes que não encontrarei mais no mar; mesmo que seja somente para sentir a brisa e ver o sol e curtir no silêncio os segredos do coração. Voltarei àquele lugar para ter a confirmação de que ainda resta amor no esquecimento e sentido na devoção do sonho. Voltarei, seguindo a máxima de que o retorno é o único lugar do encontro. Retornarei simplesmente por vontade.
Assim termino essa meditação sobre a vontade por escolha, recorrendo a Wittgenstein, “Da vontade enquanto portadora do que é ético, não se pode falar. E a vontade enquanto fenômeno interessa apenas à psicologia. Se a boa ou a má volição altera o mundo, só pode alterar os limites do mundo, não os fatos.” E não o movimento do espírito. “O resto é silêncio”.
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José Vanderlei Carneiro é doutor em Linguística pela Universidade Federal do Ceará – UFC e tem pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS. É professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Piauí (PPGFIL/UFPI).