Por Estevan de Negreiros Ketzer
gnvqi seauton /gnote theauton/ escrito no Oráculo de Delphos, significa simplesmente “conhece-te a ti mesmo”. Perturbador que algumas palavras ainda sejam tão cercadas de mistério e tão incompreendidas na história ocidental como esta. Agora, neste momento de desespero humano, epidemia traumática, pungente e, talvez, incontornável, em que nossos ideais foram desfeitos, a violência polarizada age contra nós. Teríamos nos perdido em nos adentrarmos em busca de nossas origens mais idiossincráticas?
Ainda que se possa dizer que um adolescente possui preocupações hormonais mais correntes que o princípio de realidade imposto à sociedade, não deixa de ser alarmante a produção em série de adolescentes atemporais: desinformação, insensibilidade ao que está fora do outro, emotividade instantânea e, não menos importante, vitimismo. E assim foi feito para que muito rapidamente também pudessem calar aqueles que buscam uma outra forma de educação, com mais rigor do que intensidade, mais vontade e autonomia do que entregar-se à fórmulas matemáticas desprovidas de experiência.
Na intelecção quase nunca temos estados de êxtase ou graça. Contudo, ali mora uma complexa reflexão anódina de uma pedra capaz de pensar a si mesmo, não com certezas, mas repleto de dúvidas. E sobreviver à dúvida não parece fácil. É nisto que se conjuga a falta de sabor com a explosão que a mídia e os intelectuais propõem um novo tipo de culto, desta vez completamente destituído de Deus. Cultua-se a matéria, mas o faz da seguinte forma: um aprendizado sobre a luta de classes que perpassa a história e o quanto a pessoa é culpada por ter privilégios; aprender a expiar esta culpa ao poder registrar sua revolta em manifestações populares com discursos de justiça e igualdade social; também lutar contra o vilão “fascista”, ou seja, qualquer um que ouse pensar outras maneiras de olhar o social sem utilizar-se de slogans panfletários; e finalmente, Amém, a ideia de que é melhor concordar do que contrariar. E este exemplo também vale para todo aquele que grita “comunista” de modo vexatório. É um mecanismo cultural emocional a nos afetar, em direção a uma resposta acalentadora diante ao atraso civilizacional vivido todos os dias. Como se toda a classe média que trabalha neste país fosse equivalente aos grandes capitalistas, ou players internacionais, alienados rancorosos e incultos, portanto, criminosos com o coletivo. Neste agrupamento fantasioso, cuja convivência é partilhada entre milicianos e coronéis, nosso sistema continua atuando de forma desenfreada contra qualquer um que assume o oposto dessa lógica ao repetir obviedades que não ajudam a diminuir o desemprego de mais de 12 milhões de brasileiros. Todos concordam imunizados e esterilizados com a remissão da culpa capitalista, porém atados ao mesmo sistema que não conseguem mudar. Talvez por não conseguirem nem mudar algo dentro de si mesmos.
Parece que todos já perderam a esperança. Pior do que isso: todos perdemos o ponto mediano tão importante à Aristóteles para que haja política e como resultado a comunhão entre as classes. Mas como encontrar em algum ponto mediano a esperança? Se o sistema é falido, se governo após governo tudo é a mesma situação e os poderosos obesos continuam no poder? E de forma surpreendente também nos deixamos guiar pelos instintos primitivos para ler coisas escritas com tamanha superficialidade. Nos tornamos assim sub-produtos na mão de burocratas com diploma superior. Sim, porque o Brasil é muito fordista quando se trata de criar massas pseudo-intelectuais que trabalham para uma mesma máfia de incompetentes bem remunerados, arrogantes, indignos da importância do cargo que ocupam, associados contra a sociedade civil ao utilizarem-se do aparelho público do Estado.
Simplesmente, tal como uma avestruz que esconde a cabeça embaixo da terra para que assim não se depare com a realidade pelo medo de não ter uma resposta, não saber enfrentar o instante difícil. E por esta razão olhar para aquilo do nosso passado primordial, da experiência de um menino com um lápis na mão, observando atentamente um quadro negro e uma professora falando alguma coisa que ela não sabe explicar bem. Seria isso possível? Seria dessa forma mesmo? Seria então a professora primária também uma avestruz assim como eu e muitos outros nos tornamos? Se somos avestruz porque não vem ninguém para nos ajudar a olhar e crescer?
A avestruz chegou e minha mão paralisou sobre o caderno. Naquela hora precisa a educação acabou e não voltaria a nascer por muitos anos uma vontade de aprender de modo genuíno. Pois só quando “conhece-te a ti mesmo” nasceu como berço da tradição e cultura é que podemos nos aproximar do que é “inteligência”, do latim, “o intelecto apreende o ser como verdade”. E se temos um ser ele também deve ser preservado na sua especificidade que me escapa se distorço intelectivamente o que ela se mostra aos nossos sentidos fazem. Eis o ideal da kalokagaqia /kalokagathia/, em que o bom e o belo compõem juntos a busca pela virtude, areth /areté/. A falta de qualquer tipo de ideal de melhora contínua em nossa sociedade nos leva a um grande problema de proporções colossais sobre a educação. Os gregos assim denominaram de epistemh /episteme/ todo o saber de cunho científico, em oposição à precária opinião, chamada de doxa /doxa/ que temos quando apenas falamos em decorrência da parcialidade de nossa experiência pessoal, sem amplitude e profundidade investigativa necessária ao método científico galgado com ajuda dados registrados experimentalmente e arguta minúcia racional. Por estarmos sem uma base adequada ao conhecimento científico entramos na distorção cognitiva do analfabetismo funcional. Esta distorção diz respeito não apenas a relação signo e respectivo significado, incluindo inclusive dificuldade em perceber o objeto real que está à nossa frente. Este fato nos fecha em ideologias protetoras que custamos a nos desvencilhar, pois foram massificadas, tornaram-se um jargão simplista em que todos nos adaptamos para não ter de pensar. E os gregos também deram nome a este efeito: idiwthV /idiótes/, ou idiota, como sendo aquele que se fechou em um conhecimento e não é capaz de sair dele, questioná-lo, convocá-lo à prova da realidade que o circunda.
Tomados da sensação de culpa ou ressentimento pelas causas sociais poderíamos de fato nos deixar levar a uma saturação beligerante dos sentidos? E o mais curioso é que nem todas as coisas que vemos, escutamos e sentimos nos encantam mais. Assim, é um lamento profundo que não haja uma grande obra literária desde Guimarães Rosa e Clarice Lispector. As coisas já não são nem belas e nem boas. Tampouco podem ser livres para serem elas mesmas por medo de não estarem adequadas à grande massa ruidosa da maioria e sua voz cerceadora. Vozes da geração nem nem: nem trabalha, nem estuda, nem valorizar o que tem, nem a família, nem o amor genuíno a outra pessoa. Esse mundo que se torna triste porque é incapaz de investir em uma beleza autêntica, não como ideal, mas como prática diária e necessária à vida e permanência de um lastro social maduro que agregue a humanidade.