Por José Elielton de Sousa

A “morte de Deus” é um dos tópicos mais emblemáticos e polêmicos da filosofia nietzschiana. Aparece pela primeira vez na Gaia Ciência, nas seções 108, 125 e na seção 343, entretanto se torna mais conhecida por sua associação com Assim falou Zaratustra, especialmente o final da parte 2 do Prólogo. Na referida seção 125 da Gaia Ciência, Nietzsche aborda a morte de Deus nos seguintes termos: “Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus?’ gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! […] Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”

Mas qual o significado de tal expressão? O que o filósofo quis dizer com tal afirmação? Qual sua relação com muitas das manifestações religiosas contemporâneas? Há muitos significados e intepretações possíveis para esse tópico visceral da filosofia nietzschiana. Contudo, com tal expressão, Nietzsche está chamando atenção, antes de mais nada, para o fato óbvio de que a religião em geral e o cristianismo, em especial, estão em declínio na cultura ocidental. Nietzsche não está negando a religião enquanto fenômeno histórico-social, inclusive crescente em muitos lugares, mas seu papel como doadora e garantidora de sentido ao mundo em geral e às ações humanas em particular. E esse é um acontecimento perceptível em várias esferas da vida moderna: na filosofia, na ciência, na política, na literatura, nas artes, na educação, na vida social cotidiana e na vida espiritual interna dos indivíduos.

Deus não é mais a principal fonte de inspiração para grandes ideais e nem inibidor moral. Pelo contrário, é usado como justificação de desejos e perversões.

É que Deus não é mais a principal fonte de inspiração para grandes ideais e nem um inibidor moral para ações particulares de indivíduos que se dizem pertencentes a algum tipo de crença religiosa (sejam líderes religiosos ou leigos). Muito pelo contrário, é usado como objeto de justificação de seus desejos e perversões, basta observar, por exemplo, a quantidade de crimes praticados por pessoas reconhecidamente religiosas mundo afora, como estupro, abusos sexuais, corrupção, propina, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, entre outros, praticados em nome de “Deus”.

Além disso, com a mercantilização da fé, potencializada com o advento das mídias televisivas e eletrônicas, a religião se tornou um grande e lucrativo negócio, em expansão no mundo todo. No caso do cristianismo, não apenas surgem novas denominações religiosas a cada dia, mas também teologias e “líderes religiosos” que prometem prosperidade material e domínio espiritual àqueles adeptos da “boa nova” que seguirem à risca seus “conselhos” motivacionais. Não teriam essas teologias e seus “líderes” confundido aquela divindade que condenava a riqueza material, como expressa, por exemplo, na parábola do jovem rico e no episódio dos mercadores do templo, com outra divindade presente no texto bíblico, essa sim ligada às riquezas materiais e à cobiça: Mamon? Não por acaso, é no Velho Testamento, especialmente no Livro de Malaquias, que tais movimentos buscam fundamentar essa interpretação da Bíblia.

No caso especifico do cristianismo concebido como um projeto de poder, este se reverte de movimento político-eleitoral como forma não apenas de ocupar o espaço público, mas também de conquistar mais poder e influência – Não seria uma aliança entre Mamon e César e novamente uma negação do Evangelho? No Brasil, por exemplo, embora não seja novidade a participação de religiosos na política, o envolvimento atual dos evangélicos com a política decorre de um plano de poder com fim explícito de apresentar um projeto de nação evangélico pentecostal e colocá-lo em prática, tal como expresso no livro Plano de Poder: Deus, os cristãos e a política, do Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo.

É o que se pode perceber com a intensificação desse processo, a partir de 2003, com a fundação da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional (Bancada Evangélica), que tem como principais bandeiras a manutenção de privilégios como a isenção tributária das Igrejas, a concessões de TVs e rádios e o avanço de pautas conservadoras como a proibição do aborto, a proibição da discussão sobre gênero, a revogação do Estatuto do Desarmamento e o retirada de direitos de grupos vulneráveis. A atuação de bancada evangélica apresenta, em seu cerne, a aproximação com uma agenda de extrema direita reacionária, com seus comportamentos belicosos, persecutórios, discriminatórios, violentos e inquisitoriais, totalmente contrários aos preceitos amorosos do Evangelho.

Nietzsche tinha razão: “Deus está morto” e “nós o matamos – você e eu. Somos todos seus assassinos!”. E mais que isso, continuamos a assassiná-lo reiteradamente quando não observamos seu mandamento mais importante: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Como escreve o teólogo e filósofo brasileiro Leonardo Boff, em seu artigo “Não basta ser bom, há que ser misericordioso”, pouco importa a identidade, o gênero, a etnia ou a condição social desse “próximo”, “quando Jesus manda amar o próximo, significa amar esse desconhecido e discriminado; implica amar os invisíveis, os zeros sociais, aqueles que ninguém olha e passam ao largo, amar aqueles que no momento supremo da história, quando tudo será tirado a limpo, ele os chama de ‘os meus irmãozinhos menores’”.

Ao invés disso, se Jesus voltasse hoje defendendo a mesma ideia central presente no Evangelho, se levantasse a bandeira do amor ao próximo, da igualdade de direitos e da justiça social, se andasse com moradores de rua, prostitutas, doentes e “leprosos”, se condenasse aqueles que lucram com a fé do povo, ele seria novamente torturado, crucificado e morto em seu próprio nome pelo menos setenta vezes sete por boa parte daqueles que se dizem seus seguidores.

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José Elielton de Sousa é Doutor em Filosofia e professor da UFPI.

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