Por André Henrique M. V. Oliveira
O conceito de “utilidade” sempre diz respeito a uma meta, alvo, objetivo ou finalidade a ser alcançada. Trata-se sempre da realização de algo (o fim) por intermédio daquilo que se prova como o útil. Tudo o que serve, serve para algo ou a alguém. Há, portanto, em toda relação de utilidade, uma orientação, uma direção que tem sempre um ponto inicial em um sujeito.
Alguém que afirma: “a filosofia não serve para nada”, implicitamente, e, talvez, inconscientemente, crê na seguinte proposição: “a filosofia não serve para mim”. De modo inconsciente, a pessoa se identifica com o “nada” ao qual, supostamente, a filosofia não serve. Ou seja, a pessoa se admite, portanto, como sendo um “nada”.
Suponhamos que esse mesmo sujeito hipotético refaça sua frase e declare: “a filosofia não serve para mim”. Uma proposição mais modesta, já que deixa margem para que a filosofia sirva à e para outras pessoas.
Se a filosofia serve para e à outras pessoas, então o problema não está na filosofia enquanto área/ matéria/forma de discurso, e sim na pessoa que “não sabe o que fazer” com a filosofia.”
Ora, mas se a filosofia serve para e à outras pessoas, então o problema não está na filosofia enquanto área/ matéria/ forma de discurso, e sim na pessoa que “não sabe o que fazer” com a filosofia e não consegue ver nela “utilidade”.
Nosso sujeito hipotético pode tentar, enfim, sustentar que “a filosofia não serve para ninguém”. Eis o perigo, pois ao transpor ilegitimamente para o âmbito coletivo uma tendência particular sua, tenta anular já de saída, e sem justificativa consistente, a possibilidade de uso e apreciação daquela atividade intelectual.
É um absurdo considerar que a filosofia sirva para muitas pessoas? O que dizer de professores, estudantes (de filosofia ou não), pesquisadores de diversas áreas, escritores, diletantes, editores, editoras, gráficas que trabalham com essa atividade? A produção e a comercialização (!) dessa forma de discurso e de conhecimento a que chamamos “filosofia” serve, sim, para muitos estudantes, trabalhadores e profissionais. Como exemplos disso podemos indicar o baixo salário de um professor, as milhares de cópias do livro de Byung-Chul Han, vendidas em algumas horas, ou mesmo a nomeação de Kyle Whyte para o Conselho de Justiça Ambiental da Casa Branca.
Mas, antes de tudo, é preciso frisar que a filosofia serve para pessoas, para a vida dessas pessoas. Como argumenta Fichte em sua A doutrina-da-ciência de 1794 e outros escritos: “Nada tem valor e significado incondicionados, a não ser a vida; todo o demais pensamento, invenção, saber, só tem valor na medida em que, de uma maneira qualquer, se referem ao que é vivo, partem dele e visam refluir para ele”.
A fala do nosso sujeito hipotético pretende, no fundo, negar a existência ativa dessas pessoas. Pretende negar-lhes a dignidade, isto é, negar o valor intrínseco de sua atividade e de seu exercício, de sua virtude característica. Mas, por que será? Me são úteis neste momento duas citações:
Primeiramente Spinoza, no seu Pensamentos metafísicos; Tratado de correção do intelecto; Ética; Tratado político; Correspondência, que compõe a coleção brasileira “Os Pensadores”, afirma que “Aquilo que é de natureza completamente diferente da nossa não pode favorecer nem entravar nossa potência de agir, e, em absoluto, nenhuma coisa pode ser boa ou má para nós se não tiver algo em comum conosco”.
Por sua vez, Platão, no Banquete, afirma que “O homem que não se sente deficiente não deseja aquilo de que não sente deficiência”.
O argumento que reitera a hipervalorização do lado físico do mundo em detrimento dos processos reflexivos, ancora-se num critério quantitativo, de matiz econômico.”
Em Estudos sobre a personalidade autoritária (2019), trabalho de cunho ao mesmo tempo empírico (de psicologia social) e filosófico, um dos diagnósticos a que chegam os autores, entre eles Adorno, é que a aversão à introspeção e à atividade reflexiva constitui um dos traços marcantes do caráter potencialmente fascista e antidemocrático. Os autores nos lembram que uma característica marcante do programa nazista foi a “difamação de tudo que tendia a tornar o indivíduo consciente de si mesmo e de seus problemas; não só a psicanálise ‘judia’ foi rapidamente eliminada, mas todo tipo de psicologia, exceto o teste de aptidão, foi atacado”.
Uma vez demonstrada falsa a proposição de que a filosofia não possui utilidade intrínseca, restaria ao sujeito hipotético o argumento de que ela serve, no máximo, a uns poucos. Assim, ela não faria falta à maioria, e, consequentemente, pode bem ser eliminada. Este argumento, que reitera a hipervalorização do lado físico do mundo em detrimento direto dos processos reflexivos, ancora-se num critério quantitativo, de matiz econômico, que pretende pôr como contrastantes e talvez inconciliáveis os interesses de uma maioria contra os de uma minoria.
A degeneração do conceito de democracia como simples ditadura da maioria, como se ela fosse naturalmente incompatível com a inclusão de interesses de grupos minoritários, no que se ancora o último argumento, revela mais uma vez a tendência fascista de nosso sujeito hipotético. Como explicita mais uma vez o estudo do qual participa Adorno, é próprio dos movimentos totalitários conjugar a força bruta com a autoridade. Novamente Adorno, no já citado Estudos sobre a personalidade autoritária, afirma que “A identificação do caráter ‘autoritário’ com a força é concomitante à rejeição de tudo que está ‘abaixo’. Mesmo onde as condições sociais precisam ser reconhecidas como a razão para a situação decadente de um grupo, dá-se um giro a fim de transformar essa situação em alguma espécie de punição merecida”. Para o indivíduo com tal tendência não basta que os interesses de uma maioria prevaleçam, sejam incentivados e financiados; é preciso, acima de tudo e acima de todos, que os interesses das minorias não sejam cultivados e sejam explicitamente atacados.
A questão toda, portanto, não se refere propriamente à filosofia enquanto área/ matéria/ forma de conhecimento, mas sim às pessoas. Tanto às que ela serve, quanto às que ela não serve.
O nosso sujeito hipotético, na verdade, existe e são vários e em várias camadas sociais: do cidadão ou cidadã mais simples até figuras públicas de grande representatividade, cuja misologia reforça e promove uma cultura anti-intelectual, que não só cria um campo aberto para a proliferação de fake news, desinformação e deseducação, como endossa diferentes formas de violência ao subjugar a racionalidade crítica à força bruta.
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