Sergia A.

Do caminho

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Éramos seis

(…) há essência nas substâncias criadas intelectuais, nas quais
o ser é outra coisa que essa essência, embora tal essência seja sem
matéria. Por isso o ser delas não é absoluto, mas recebido: donde
também, limitado e finito, conforme a capacidade da natureza recipiente.

(S. Tomás de Aquino, O Ente e a Essência – tradução D. Odílio Moura)

 

 

Há cinco anos juntei-me a cinco amigas e fomos à FLIP – Feira literária de Paraty. Antes do destino, decidimos que o Rio de Janeiro merecia nosso olhar. Assim, como se a jornada não se completasse se não fizéssemos uma pequena pausa para respirar seus ares. No retorno, escrevi este texto sobre esses pequenos dias. Pequenos, mas suficientes para que eu conhecesse o Museu de Arte do Rio que, nesse tempo em que a cultura virou alvo dos ataques obscurantistas, se encontra sob ameaça de fechamento.

Reescrevo, sem grandes alterações:

Sim, estou me apropriando do título de uma novela que eu adorava. Assim como a novela se fez a partir do romance de Maria José Dupré (1943). Irmãos descobrindo o ser, sob a batuta de uma mãe zelosa. E justifico pelo fato de sermos seis irmãs, se o termo significar ligação profunda. Arrebanhadas pela vida, ao invés do sangue. Temos sonhos comuns. Um deles nos traz até aqui. Estamos na nova ala de embarque do JK. Somos quatro direcionando o olhar ao longo corredor em busca da quinta. Ponho a jaqueta. O dia desperta frio. O café alimenta o tempo de espera. Espremida entre assentos de um avião a alegria juvenil. Somos cinco. 

A chuva encobre parcialmente a beleza do cartão postal. O táxi nos abandona diante da escadaria de um prédio antigo. Os degraus se prolongam com o peso da mala. O cabelo se desmonta. Por um instante sinto falta do profissionalismo da recepção de hotel, cuja impessoalidade decidimos evitar. A janela salva o dia. Em meio ao desespero, somos olhos embevecidos. São três horas da tarde. Somos seis ao redor de uma mesa de um bar antigo. José de Alencar é pouso para pombos. Getúlio em seu leito de morte, logo ali. Um chope para aproximar mais uma de origem local, cuja graça dispensa qualquer esforço. Aceitamos o convite perfeito para dia de chuva. Somos sete em uma alegre sala de estar. Um café, boas risadas, uma morada que respira arte abrindo portas para o abrigo de duas com passado comum.

Somos quatro com janelas para o aterro. Impossível não pensar em Lota e em Flores Raras (2013). Luzes refletidas nas águas mansas da baia. Ilumina-se o pensamento. Vinho e queijo comprados na loja da esquina. Um brinde à vida e à alegria do reencontro. Os assuntos fluem sob o declínio apressado da temperatura de julho. Um aquecedor a gás. Água morna deslizando sobre um corpo cansado. O sono reparador.

Café atrasado na loja de conveniência. O centro histórico nos assombra pela beleza, não pela violência alardeada que afasta e intimida. Salvador Dali em 150 obras sob a curadoria de Montse Aguer no CCBB. Documentos, pinturas, gravuras, fotografias, ilustrações. Tontura vencida pela leveza dos corpos flutuantes, a luz, a sombra. O sonho de Vênus. De repente, descubro a inspiração de Tim Burton para o seu vibrante Alice in Wonderland (2010). Mergulho, e lá estão fazendo companhia às cores que ressignificam o imaginário de Lewis Carroll, Dom Quixote de la mancha de Cervantes, Fausto de Goethe, O velho e o mar de Hemingway. Literatura como ponto de partida para o traço. A tela se aliando ao movimento, e lá também estão os sonhos de Buñuel e Hitchcock. Imbricação de signos. Independência da imaginação e direito à própria loucura. Loucura que lá fora nos direciona aos berros dos camelôs. Atravessando perigos do deserto para encontrar um oásis. Gastronomia libanesa, cerveja artesanal. Longa caminhada como se o dia não tivesse hora para acabar. Somos seis em torno de uma mesa de jantar. Risos alados despertando olhares. O segundo dia se vai.

O sol retorna. Hora de ver o MAR: Escola do Olhar e um Museu dedicado à arte e à cultura visual. Arquiteturas distintas interligadas por uma gigantesca onda de concreto que protege a rampa que as une, como parte da revitalização da área portuária no entorno da Praça Mauá, integrando arte, educação e comunidade. Restaurar o passado para buscar um futuro, assim se explica a construção do Museu do Amanhã no píer que logo adiante avança sobre o mar. Somos seis nas filas entre alunos e seus dedicados professores. Duas exposições prendem nossa atenção: Do Valongo à Favela: Imaginário e Periferia – um choque de imagens (pinturas, desenhos, fotos, objetos dos navios negreiros que por ali aportaram, vídeos, instalações) revela a origem das periferias, degradação e a marginalização de sua gente até sua inclusão como objeto da arte contemporânea; TATU: Futebol, Adversidade e Cultura da Caatinga – que tenta percorrer o ecossistema da caatinga e todo seu imaginário até a simbologia do tatu-bola para o futebol provocando reflexões estéticas e políticas. Peca, no entanto, pela superficialidade da pesquisa.

Somos duas, sentadas em um banco antes da escada. Providencial para pernas cansadas e calos maltratados. Burburinho de crianças e a voz enérgica dos professores na ânsia de contê-los. Simultaneamente, levantamos o olhar. É sempre tocante a presença de crianças em museus. Aqui inquietas e barulhentas. Aprendendo. Entre elas algumas com deficiência visual. Aprendendo, como as demais, a ver com os olhos da arte. A cena surpreende e sacode minhas certezas baseadas em memória visual.

Somos seis na subida do Mosteiro de São Bento, desviando-nos aqui e ali das obras de restauração. Na livraria, folheio uma velha edição de O Ente e a Essência, de S. Tomás de Aquino. Acaso, tão somente. Mais alguns passos e somos seis ao redor de uma mesa, que nos põe à vista o mar estendido sob a ponte Rio-Niterói. Um brinde ao espanto que os olhos nos permitem viver. Um brinde ao imaterial que dispensa olhos e se acomoda aqui dentro. Limitado, finito talvez. Ainda assim, capaz de destilar essência em novas percepções.

Contam os Mapuche

Há um bom par de anos tomei um ônibus em Santiago e desci pelas belas estradas privatizadas do Chile. A concessão era recente. Tudo reluzia nos imensos e bem cuidados portões dos pedágios. Os mesmos que por esses dias detém caravanas de caminhões em protesto, entre outras coisas, pela cobrança que onera seus parcos rendimentos. Cheguei ao sul com o dia amanhecendo sobre os Andes, e pela janela em movimento recebi a imagem que ficaria para sempre em minha memória: os primeiros raios de sol disputando espaço com o Osorno. Junto com a imagem, um nascente questionamento sobre o quanto a instabilidade geológica da região e seus vulcões eram responsáveis pela cosmovisão e os mitos dos povos originários da região, que me ofereciam ali o primeiro contato.

Minha jornada se cumpriria na travessia dos Andes a partir da cidade de Puerto Varas. Ora navegando por lagos de águas calmas, ora sacolejando por estradas estreitas que cortavam montanhas, segui com olhos embevecidos pela riqueza do Parque Nacional Vicente Pérez Rosales apesar do frio de doer os ossos. Um nome espanhol intrometia-se na estranheza das pronúncias que me cercavam: a província era Llanquihue, o rio era Petrohué, o lugar do pernoite era Peulla. Palavras me atiçavam a curiosidade como o vento sobre a fogo que me aquecia, e venciam pelo cansaço a minha completa ignorância sobre o mapudungún, o som da terra que forma o idioma Mapuche. Hue, disseram-me, significa lugar; llancun, que cai, afunda; Petro, inseto de água, mosquito; Peulla, pegar geada. De repente, tudo começava a fazer sentido.

Depois dos trâmites de fronteira, atravesso o Parque e Reserva Nacional Nahuel Huapi (ilha do tigre/puma) em busca de novo pernoite na cidade de Bariloche (gente que está atrás da montanha). Naquele instante era o crepúsculo sobre os Andes que me fazia entender que a montanha apenas escondia povos de mesma origem, separados por uma divisão imposta pela colonização.

O museu da Patagônia é, então, destino irresistível no amanhecer. Na saída, caminho sem rumo por ruas e praças. Uma pequena livraria em uma estrutura de madeira, com cara de banca de revista, me chama a atenção. Meus olhos encontram um livro que me apresso em folhear, tentando decifrá-lo a muito custo. O livreiro me explica que se trata de uma edição feita pelo pesquisador César A. Fernández para a Biblioteca de la Cultura Argentina, a partir de contos do povo Mapuche que, mesmo sem escrita, impunha beleza nas histórias transmitidas ao redor do fogo de geração em geração. A ele recorro para dar título a esse texto.

Um dos contos trazia como personagem central Huaca Mamül, uma espécie de pau vivo que mora no centro da cordilheira. Há duas explicações na cosmovisão de intensa relação entre che (a terra) e newén (anima/energia que habita todos os seres). Para a primeira, seria o filho da lua que toma forma de madeira e tem força para destruir o que estiver ao seu alcance; para a segunda, é um guerreiro que foi condenado a navegar eternamente em um lago, aparecendo em noites de tormenta. O enredo relata que em uma tarde em que as pessoas estavam abatidas pelo calor, veio um vento forte e se ouviu um enorme bramido. Depois outro grito e mais outro ainda mais alto. Era o sinal de que Huaca Mamül chamava a água e o vento. Choveu muito e a ventania varreu tudo ao redor. E desde então, sempre se ouve o seu grito como previsão de mau tempo. O seu bramido é anúncio de tormenta.

Isso me veio à mente ao ver a bandeira Mapuche no topo da, já icônica, fotografia das recentes manifestações em Santiago. Concentram-se na imagem os gritos, que se guardaram por anos de abatimento à espera de um sopro de esperança, e a kimün (sabedoria) que se pauta na ideia da necessidade do equilíbrio das relações entre todos os que ocupam a terra. O bramido ao pé da cordilheira parece anunciar a tormenta de um sistema econômico-social que não mais se sustenta. Que seja varrida para muito longe a sua lógica perversa. Que venha a chuva que limpa e faz florir os campos.

Mestiça

Um dia desses precisei preencher um formulário para uma revista literária que publicaria um conto. Essa coisa de permissão e direitos autorais. Feliz da vida, fui respondendo com entusiasmo cada questão. De repente, empanquei feito burro velho e teimoso. Pediram que eu declarasse como eu me identificava. Lembrei do que disse o escritor moçambicano Mia Couto sobre o tão discutido lugar de fala: “Eu só escrevo porque eu viajo para outros. Eu sou mulher, eu sou criança, eu sou velho, eu sou outros quando escrevo”. (…) “O que cria a Literatura é essa capacidade de ser um outro”.  E, depois, a palavra parda que me deram como opção, além de me parecer feia, nada me dizia.

Não sei qual era a intenção. Talvez fazer o balanceamento necessário na edição para dar voz aos esquecidos na Literatura. Não apenas concordo, mas louvo a iniciativa que tenta retirar desse campo o atraso que promove o desequilíbrio, e retira dos leitores o acesso à riqueza dos mundos diversos reproduzidos por diferentes lugares. Faz parte da minha luta como mulher que escreve. No entanto hoje quero falar apenas daqueles segundos de desespero diante de um quadrinho à espera de um x. Marquei, e logo após, saiu de mim essa coisa que não se enquadra em uma identidade predeterminada. Não é poema e nem prosa. Mestiça, como eu:

pediram-me uma declaração de identidade, assim como se eu não me identificasse pelo nome ou com o lugar do meio que sou.

poderia facilmente declarar-me negra. cor não me falta. mas não sou. não carrego cachos volumosos. não aprendi a exibir a beleza dos turbantes e nem ouvi no peito os atabaques como sinais de uma ancestralidade única dentro de mim.

poderia sem esforço declarar-me indígena. meu rosto estampa os traços no formato dos olhos e no cabelo da criança que fui. mas não sou. não cultuei os ritos. não pintei no corpo as lutas. não abri espaço para os rios que abraçam os sons da floresta, como ancestralidade única dentro de mim.

não poderia declarar-me branca. minha pele cedeu ao bronze e não herdei do meu pai o azul que não me viu crescer. tampouco o dourado dos fios que cedo desapareceram do alcance da minha visão. muito menos os inquestionáveis privilégios do seu povo, como marca única de mim.

peço licença ao coração de todas as purezas para declarar-me mestiça com todo o peso de ser múltipla. sou negra, sou indígena, sou branca e ao mesmo tempo nada sou. poeira e vento. equilibrando-me no entre estar.

rezo pra S. Jorge e N. S. da Conceição. peço coragem para Ogum saudando Oxum e suas águas. Canto e danço para os espíritos da floresta seguindo o ritmo das maracas sob efeito dos chás. nos pesadelos ainda caio dos abismos da Ibiapaba ouvindo o eco dos deuses tabajaras conduzindo a impotência das flechas.

declaro:

trago no corpo resquícios das cinzas, do sangue dos lombos, do açoite colonizador que aprendo diariamente a apagar. sou o que restou. falo de onde o momento faz brotar a minha voz. onde estou?

 

 

 

Onde foi que nos perdemos?

 

Is it necessary to walk, and walk, and walk,
burdened the will to live, to
walk through a meaningless life
under relit, but long extinguished stars
keeping the delirium of the universe
alive forever in its dream…
 

(Yeghishe Charents, tradução de Diana Der Hovanessian)

 

Ficamos por alguns dias brincando de esconde-esconde, o Ararat e eu. E ele imponente, muito orgulhoso de sua condição, não me deu a mínima escondendo-se atrás de densa névoa. Sim, dei-me o luxo de respirar outros ares e realizar sonhos antigos. Digo luxo porque tenho consciência de que, no meu país, a apenas uns poucos privilegiados é dado o direito de ir e vir. Não me incluo entre os privilegiados pela condição financeira, mas pela sede de conhecimento que me consome a ponto de planejar por anos o viajar que, para mim, é sinônimo de aprender. Volto e sou saudada com mais do mesmo: a morte de inocentes e o silêncio em torno de suas causas, como a me dizer: afogue-se! que direito você tem de respirar quando uma criança por ser negra e pobre não tem sequer o direito de crescer?

Afoguei-me na tristeza que não cansa, sendo salva pelo que carrego na memória. O Cáucaso, com toda sua profundidade histórica, foi meu destino começando pela Armênia. Para quem não perdeu as aulas de história geral, mesopotâmia, assírios, sumérios, babilônia, escrita cuneiforme serão sempre palavras entendidas como traços do berço da humanidade. Quem se aprofundou um pouco mais, sabe que foi naquela região que a arqueologia datou as primeiras ferramentas da idade da pedra e encontrou o sapato mais antigo. Os amantes do vinho também sabem que por lá se encontraram os primeiros vestígios de sua fabricação. E se tudo isso for pouco para os que só encontram na Bíblia a sua verdade, foi por lá que seu deus instalou o jardim do Éden e, depois do pecado e do castigo, fez parar a arca de Noé sobre o monte Ararat estabelecendo uma nova aliança. Motivos suficientes para despertar curiosidade e o desejo de ver de perto as marcas orgulhosamente guardadas por seu povo.

É evidente que em poucos dias não se faz uma imersão. No entanto, é possível selecionar e ver templos pagãos e cristãos. Mosteiros que guardam os mistérios do nascimento de uma religião que deveria sacudir o antigo testamento. Optar, com muito pesar, por não ver os manuscritos científicos e religiosos desse período. Tentar entender os conflitos geopolíticos recentes. Perder-se pelas ruas da agitada Yerevan em busca de livrarias ou descobrir nos calçadões seus poetas, músicos, bailarinos por puro acaso. E, obviamente, experimentar a comida e a bebida local. Com foco, a intensidade estica o tempo e minimiza o machucado dos pés.

Foi assim que dois lugares me fizeram entender o porquê dessa jornada nesse instante:  o monumento e museu em homenagem às vítimas do genocídio Armênio (1915) e o Yeghishe Charents Memorial Museum. No primeiro, um ponto turístico obrigatório com tudo muito organizado e explicado em vários idiomas, sob o ponto de vista armênio naturalmente. Como uma necessidade de expor ao mundo a imensidão de suas dores e a versão dos vencidos. Em uma espiral de moderna arquitetura, textos e imagens fortes me fizeram sair do local às pressas.  Ver crianças como vítimas da brutalidade de que os seres humanos são capazes me rouba o chão. Assim como me tirou o ar a extensa relação de intelectuais, entre eles a escritora e feminista Mari Beyleryan, executados pelo simples fato de defender o livre pensar.

No segundo, uma escolha pessoal e intuitiva sem guia ou indicação. Depois de horas tentando decifrar placas de rua em um alfabeto desconhecido, seguindo um aplicativo de GPS no celular (bendita tecnologia!), encontro o lugar simples em que se instala o Museu em memória do grande poeta Yeghishe Charents. É, na verdade, o apartamento em que ele e sua família residiram, adaptado com um hall de acesso para a rua. Entrada paga, língua e origem identificadas, a atendente me pediu que aguardasse a pessoa que me acompanharia na visita. Paciente em seu bom inglês, ela inicia se apresentando com o brio próprio de uma neta que conta a história de seu avô genial. Uma onda de emoção arrepiou todos os pelos do meu corpo, e as lágrimas banhavam meu rosto à medida em que que líamos trechos dos manuscritos traduzidos e meu ouvido captava a veemência de suas explicações. Despedimo-nos com um abraço confortador que me encheu de esperança.

E daí? Quem é esse cara tão pouco conhecido pelas bandas de cá? Charents é hoje considerado um herói nacional. Participou como voluntário, aos 18 anos, das batalhas contra o genocídio e escreveu o longo poema Dantesque Legend, em que compara o que viu ao Inferno de Dante. Mais tarde, engaja-se na revolução bolchevique (na ocasião a Armênia fazia parte do império russo) para formação da República Democrática da Armênia, parte integrante da União Soviética a partir de 1922. Estudioso e defensor da teoria marxista, o poeta logo se dá conta dos desvios impostos por Stalin tornando-se um defensor da autonomia e da cultura local. É perseguido, preso e morto como traidor da revolução. Seu nome é proibido de ser mencionado. Seus livros são destruídos e seus originais sobreviveram graças à corajosa ação de uma amiga que os escondeu nos porões de sua casa. A filha mais velha é enviada a um orfanato. A esposa e a filhinha de dois anos (mãe da senhora que me fala) são exiladas. Com a morte de Stalin e subida de Khrushchev ao poder na década de 1950, seu nome é reabilitado, seus poemas são novamente publicados e traduzidos pelo mundo.

Retorno aos meus lençóis e a este espaço de escrita, em que as ideias têm a liberdade de seguir, com a sensação de que as lições da história não nos ajudaram na evolução como seres humanos. Em algum ponto nos perdemos. Peço perdão à Agatha Félix, à Jenifer Gomes, ao Kauã Rozário, à Letícia Ferreira, à Lauane Batista, ao Dyogo Coutinho e aos demais bebês, crianças e adolescentes vítimas da sociopatia que nos governa neste ano de 2019, pela teimosia que me faz respirar. Como o poeta que hoje me guia, repito com a respiração ofegante dos que sobrevoaram desertos e oceanos, que é preciso seguir munida do desejo de viver. Ainda que a vida pareça sem sentido, reacendo estrelas há muito apagadas para manter o delírio do universo sempre vivo nos meus sonhos. Haveremos de encontrar a humanidade perdida.

 

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)

 

A parte que te cabe

 

– A Senhora vai me visitar no hospício?

Ouvi e respirei fundo contando até dez, vagarosamente, até que uma resposta em tom de sinceridade e de empatia encontrasse o caminho entre a mente e a voz. Não era difícil compreender a desilusão diante de uma análise burocrática e fria, bem característica de quem está do lado de cá, onde é fácil esquecer que por trás de papéis, projetos e orçamentos existe vida em compasso de espera.

Corria o ano de 2011 e eu trabalhava com programas habitacionais para área rural. Ao desligar o telefone, a voz se repetia no meu ouvido. Latente, levava-me a pensar sobre o meu papel dentro da grande fábrica de sonhos. Quanto cabia da minha insignificância na resolução de uma das questões mais sérias de um país que, ao tempo em que se enxergava como a grande promessa de desenvolvimento econômico, não conseguia desmontar uma engrenagem ultrapassada e fomentadora de miséria?

O sonho, que virava pesadelo do outro lado da linha, nada mais era do que uma necessidade básica. O direito elementar de ter um teto erguido na terra onde se vive e se produz o sustento. A voz, assim como as que a antecederam, nasceu e viveu no mesmo pedaço de chão. Terceira ou quarta geração sem o título de propriedade. Alimentava-se da terra, mas não gerava renda. Sem título não se enquadrava nas condições de acesso aos programas habitacionais. Sem renda não tinha meios para construir por conta própria e nem como ser aprovado em financiamentos.

Tentei analisar o próximo processo da fila. Porém, a voz retornava e me inquietava. Trazia à mente os conflitos no campo que invadiam os noticiários e tornavam tristes as estatísticas de homicídios em todo o país. Bárbaros assassinatos e outras ocorrências motivadas por ações de resistência e enfretamento pela posse, uso e propriedade da terra, bem como pelo acesso a áreas de florestas. Naquele ano mais dois casos viravam notícia pelo mundo: José Cláudio e Maria, o casal de castanheiros que, como o seringueiro Chico Mendes, deu a vida pela parte da floresta que lhes cabia dentro do modelo de uso sustentável que defendiam.

É fato que do lado de dentro do balcão, lidando com os volumes de recursos anunciados, era acalentador perceber que se plantava uma semente. Pela primeira vez agricultores familiares conseguiam chegar até o frio balcão em que sonhos viram negócios. Alguns, depois de muitas idas e vindas, conseguiam levá-los em seus alforjes. Se essa era a forma mais eficiente, sabíamos que não. Mas não cabia à minha insignificância opinar.

Cabia à angústia despertada pela voz, no entanto, questionar: qual país se desenvolveu mantendo estruturas latifundiárias arcaicas? Qual país se desenvolveu mantendo um nível tão alto de irregularidade fundiária?  Qual país se desenvolveu sem oferecer aos trabalhadores do campo condições verdadeiras de educação e de geração de renda que lhes garantissem um mínimo de dignidade? E olhando o futuro, imaginar, qual nação sobreviverá se não repensarmos o modelo de ocupação da terra?

Quase uma década depois, assistimos passivamente a morte de todas as pequenas sementes. Planta-se em seu lugar o ódio aos pobres, aos sem-terra, aos indígenas e aos povos das florestas.  Já não trabalho no banco. Na parte, ainda mais reduzida, que me cabe sinto a necessidade de manter a serenidade e por isso escrevo. É um jeito de não permitir que o desencanto enterre a esperança de um dia ver as mortes e vidas severinas como cicatrizes de uma história muito antiga. Na ficção reencontro aquela voz:

– Está ouvindo o tilintar ? É a chave. Venha tomar um café com a gente!

Ouço a chave. Ouço a alegria. Ouço o vento reproduzindo o agradável canto da terra afagada no cio, forjando o milagre do pão e lambuzando-se na doçura do mel, como dizia uma velha canção.