Sergia A.

Do caminho

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Amor

 

Não se trata de anos-luz. São apenas mil e setecentos quilômetros que nos separam ao longo de doze meses. No entanto, aguardamos ansiosas o recesso de Natal. Mais que a celebração religiosa ansiamos pelo reencontro. Pela alegria de abraçar, de ver o crescimento, de sentir na pele o afeto, de dividirmos uma garrafa de vinho em torno de uma mesa farta de sabores adormecidos. Estaríamos juntas, como sempre estivemos. Como sempre? A vida não se repete, sopra o vento. Somos poeira de estrelas, disse o cientista.

Fugindo das aglomerações, ela me chega bem antes da data prevista. Exames negativos, arrisca-se em um voo com todas as precauções. Prendemos os braços às costas com laços de fitas para evitar a involuntariedade dos abraços. Os beijos ficam suspensos no ar entre máscaras. Quartos separados. Dois metros de distância são suficientes para perceber o brilho insistente do olhar. Rimos, brigamos e gritamos uma para a outra. Ouvir sem a interferência tecnológica dos dias normais é desafiador. Política, ração do cachorro, ruídos da distância e a conjunção de Júpiter e Saturno mergulhadas na projeção de imagens da NASA. A música se avoluma e atravessa as paredes do quarto de menina, em uma saudável contaminação. Taças dispostas, segundo uma nova etiqueta, nos avisam que perdeu o sentido o ressoar dos cristais. Saúde!

Como veio, partiu embalada na velocidade impiedosa dos ponteiros. Dias depois, continuamos bem. Gravou-se no meu dicionário particular uma definição. Como nos pratinhos de porcelana da coleção (inspirada nas tirinhas da cartunista neozelandesa Kim Casali) que, junto com os LP, virou brinquedo: amar é… desejar que o outro permaneça vivo. O peito ainda goteja sobre o germinar de uma semente sedenta. Existe amor em 2020.

2021?

O tempo dirá.

 

Crédito da imagem: NASA  (disponível no vídeo What’s Up for December 2020, Instagram oficial)

A adiada enchente

 

Não nasci em Teresina. Cheguei aqui ainda menina e cheia de sonhos. Um tanto aborrecida com a estrada que se encurtara, não me permitindo ir um pouco mais além. Era só o começo de uma relação de amor e ódio que me vê entardecer. Entristecida com esse quinze de novembro, li o poema de Mia Couto. Ele me traz de volta a este espaço que andou esquecido por um tempo. É dele o título.

A cidade me ofereceu muito do que o amor pode oferecer. Estruturei uma vida, edifiquei uma família, criei laços. A cidade me ofereceu a água fresca dos rios e remos. A alegria das chuvas e trovões (o que restou da chapada), seguida da aflição das ruas alagadas. O riso do sol de todos os dias e o incômodo do calor insuportável, da fumaça no horizonte e das mucosas ressecadas. A cidade me ofereceu uma vista de toda a sua extensão e o sufoco de viver no alto, trancada por segurança e sem opção de vida ao ar livre. Logo eu que não vivo sem o ar (meu elemento é o fogo). Muitas vezes precisei voar.

Hoje fujo de mim, para pensar na tristeza que habita onde a vista alcança. A eterna pobreza das periferias. A falta de perspectivas. O completo abandono de metade da sua gente. O futuro negado às novas gerações que ainda tem no desterro a melhor opção. O provincianismo que nos divide e nos enterra entre o cheiro de estrume dos currais da colonização.

Nada é mais triste do que uma espera que se cansa de ser espera. – Sérgia A.

Vi Teresina crescer esmagando seus rios em margens de esgoto, quando a engenharia sanitária já organizava o mundo lá fora. Vi a temperatura adoecer sua gente, anos após anos, sem nenhum projeto de arborização intenso e verdadeiro, quando estudos ambientais já apontavam soluções. Vi suas ruas serem pavimentadas sobre córregos, sem projetos de drenagem ou respeito ao caminho natural das águas. Vi suas avenidas correrem cada vez mais lentas, entupidas de carros e motocicletas, sem que ninguém pensasse em soluções de transporte urbano que funcionam em todos os continentes há décadas. Um ou outro avanço pontual que se perdeu nos anos de repetição.

2020, diziam todos, será um ano de introspecção. Fecham-se as portas. Um vírus nos diz que nossa forma de contato precisa ser revista, que respeito ao lugar do outro é fundamental. O vírus grita muito alto que o indivíduo não estará bem se o coletivo não estiver. E daí? Respondem os egos inflados.

As metrópoles e suas periferias pulsantes deram uma resposta à nefasta agenda em curso. Tanto na questão do amparo social na pandemia quanto nas eleições. É bonito de ver não apenas os nomes que cresceram rumo ao executivo, como também a renovação dos legislativos municipais com representantes das mulheres, dos negros e das minorias. Não podemos esquecer que são esses movimentos que têm nos salvado de pautas reacionárias na área de educação e cultura, ao denunciar projetos como o “Escola sem partido”, outros que traziam insegurança jurídica  ao direito ao aborto legal ou, ainda, os que impunham censura a shows, exposições e manifestações artísticas em geral.

Teresina deu as costas ao sopro dessa brisa leve, decidindo fortalecer o seu provincianismo. Boas candidaturas propuseram um debate sério sobre a cidade, sem nenhuma repercussão. Um sinal de que há algo muito errado na abordagem e nos ouvidos. As urnas revelaram que mulheres pensantes não são bem-vindas. De um lado, o medo de mudança que nos devora há quase quatro décadas. De outro, o pensamento tosco dos que acreditam na falsa generosidade dos bobos. Como se isso fosse pouco, as urnas deram voz a uma terceira via: o conservadorismo associado à teologia da prosperidade, ao negacionismo crítico das medidas radicais necessárias para conter uma crise sanitária sem precedentes. O que há de comum entre os três, além do fato de estarem no campo político da direita?  São defensores anacrônicos da tragédia que o obscurantismo nos trouxe em todas as áreas.

Nada é mais triste do que uma espera que se cansa de ser espera. O meu primeiro voto (há muito tempo) já nascia da necessidade de remar contra a correnteza. De acreditar que uma cidade nordestina, erguida entre rios, precisava apenas de uma mãozinha mais inteligente e comprometida para vir a ser um lugar bom de viver. No entanto, mesmo no período da grande esperança, Teresina fincou pé prendendo-se às estacas dos seus currais.

Vou embora para Passárgada? Não. Não quero ser amiga de nenhum rei.

Feito o riacho que preenchia a minha infância, antes que eu conhecesse os rios, minha teimosa esperança ainda aguarda as cheias que levam vida além das margens. Como sugere Ailton Krenak, conto histórias na tentativa de adiar o fim do mundo. Quero uma cidade em que minhas netas possam viver e fazer escolhas sem as angústias que suas ancestrais atravessaram. É pedir demais?

 

(A imagem do Rio Poti, em Teresina-PI, foi gentilmente cedida pela fotógrafa Maria Dimas Ribeiro Lages)

Canção de amor para uma menina

 

Assustada, ela segura minha mão. Seus dedos de tão pequenos se perdem na calosidade das minhas articulações. No rosto, a tristeza profunda dos rejeitados pela sorte de uma infância feliz. O silêncio grita contra as paredes brancas. O analgésico adormece o pranto.

Ouço os gritos da rua. Apago as luzes. Calo as janelas. Apoio sua cabecinha no meu colo. Sussurro ao seu ouvido um desejo: vai ficar tudo bem. Abafo as vozes doentias dos adoradores de deuses. Um acalanto ancestral liberta nossos ventres. Rumores de cirandas. Rodam as mulheres e suas tribos repetidas em mim. Entoam cantos tomando de empréstimo notas emitidas por minhas cordas vocais.

Dorme, menina! Dá-me a tua dor que é minha. Desperta, menina, o amor que virá. É amor o que nos leva até o teu leito em sintonia. Há amor no gesto que te oferece o peito como casulo para o nascer de tuas asas.

O monstro está à solta?

Os monstros espumam em volta?

Sossega! A mesma noite que os acoberta os acolherá em seu abismo de trevas. Serão aprisionados em suas preces sem senso. Serão feridos por suas próprias garras. Queimarão suas peles e suas línguas nas caldeiras do inferno que inventaram.

 

 

 

Uma naja no planalto

 

— Vó, tem uma naja no meu condomínio!

— Tá doida, menina? A naja não vive por aqui. Aí no planalto tem outras serpentes, literal e metaforicamente!

Por um bom tempo o WhatsApp se manteve mudo. Nada no FaceTime. E a avó, a 1.700 km de distância, em pânico. Por mais que tudo parecesse inverossímil, havia sempre a certeza da dúvida. Hoje tudo é possível. Principalmente quando falamos de Brasília.

Inquieta, procuro notícias. Os portais me dizem que no planalto central um rapaz está entre a vida e a morte por conta de uma picada de naja. O instituto Butantã, em São Paulo, tinha apenas uma dose do soro antiofídico específico, que o hospital aguardava enquanto uma hemodiálise tentava reduzir a carga tóxica do seu sangue. Um menino de classe média, jovem, saudável e com uma vida toda a seguir.  Estudante de veterinária na UNB. Pronto. É o suficiente para o sono ir embora. Decido ligar.

— É verdade, mãe! A polícia ambiental esteve no condomínio para averiguar porque os pais do rapaz moram aqui. Mas já encontraram a cobra em outro lugar. Fica tranquila!

Como ficar tranquila? Pergunto aos meus botões depois da despedida. Não consigo entender o que aconteceu com o mundo. Parecia haver um caminho, um rumo, uma saída. E, de repente, tudo desandou.

Quando eu era criança, não tínhamos educação ambiental na escola. Valia o que a minha avó dizia:  com a natureza não se brinca, se respeita! Valia para os banhos de cachoeira, para a contemplação das exóticas lagartas de fogo, para casas de maribondo e para as ondas do mar. Por inúmeras vezes, vi minha mãe matar cascavel quando ainda não existiam as leis de proteção e as instruções sobre os procedimentos adequados. Elas invadiam a nosso quintal no período das cheias do riacho que corria a poucos metros dali. Talvez fôssemos nós os invasores daquele espaço de reprodução. Não sei. Só sei que minha mãe precisava agir e nos proteger. O ato drástico era um alívio enorme para ela, que tinha visto um irmão agonizar sob o veneno de uma delas. Alívio também para a menina amedrontada que eu era. Cresci e trouxe comigo o pânico desses répteis escorregadios e traiçoeiros (os ambientalistas juram que não e eu tendo a acreditar. Racionalmente eu sei que o ataque é uma defesa, mas aqui o estereótipo me cai bem).

Morando a muitos metros do chão em um grande centro urbano, vi com alegria a educação ambiental chegar às escolas. O que minha avó dizia, agora era ciência e exigia estudo. Por incentivo da empresa em que eu trabalhava, fiz um curso de Gestão Ambiental.  Como vibrei com os conceitos de sustentabilidade. Pensar no equilíbrio econômico, social e ambiental era garantia de futuro!

Dormi. Acordei com esse susto instalado no planalto central. Desde quando resolveram voltar a acreditar que leis ambientais atravancam o progresso? (ui! progresso é uma palavra que me causa arrepios!). Desde quando resolveram reativar o entendimento de que destruir a natureza é sinônimo de avanço? Desde quando resolveram que somos livres para criar najas no cerrado mesmo com a lei, a ciência e a natureza dizendo o contrário?

Não tem como não associar o fato com a tristeza de saber que o poder instalado no planalto nega a ciência, desmontou estruturas de fiscalização ambiental e, na área de economia, tem a mente enterrada lá pelos anos 1970.  Como é que retrocedemos tanto em tão pouco tempo? Como nos deixamos envenenar em doses diárias desse discurso letal?

Não sei se o rapaz, que assumiu o risco de conviver com serpentes fora de seu habitat, sobreviverá. Espero que sim. Espero também que esse seja um tempo de reflexão, para ele e para nós que estamos adormecidos pelo encantamento de tipos diferentes delas. Que desperdício para uma vida que podia aprender com a natureza e fazer tanto pela humanidade! Que desperdício para um povo que vive sobre uma terra rica e exuberante, porém não sabe lidar com ela! Que desperdício!

Todo destino é o chão

 

Antes que os apressados vejam no título uma justificativa para palavras proferidas pela boca suja do senhor que ocupa o poder central deste país, informo que se trata do último verso do poema Ícaro de Adélia Prado. É sim, uma referência à insignificância da vida humana e está aqui como provocação para afirmar, logo de início, que toda vida importa. Ainda que para o indivíduo a morte seja um destino inevitável, é o modo como esse indivíduo nasceu, cresceu, se desenvolveu e morreu que dá sentido à existência da humanidade.

Em julho de 2011, publiquei no blog Palavrasde.Lirantes o texto Há um segredo. Lá estavam presentes a questão ambiental e a preservação da vida na Terra. Reli por esses dias em que uma coisinha minúscula, que nem sequer possui vida fora de um corpo humano/animal, nos enclausura e nos obriga a enfrentar uma crise que não é apenas sanitária, mas econômica, ambiental, política e de valores. É a crise. A encruzilhada que nos pede para rever o nosso modo de vida e escolher um novo caminho. Portanto, é daquele texto que parto para dissolver em palavras a angústia que fez morada no meu peito, trazendo velhas questões: quem somos, como chegamos até aqui, para onde vamos?

Pois bem, para não sufocar faço o exercício de sair de mim para ampliar a compreensão do que seja vida. Se um acaso a gerou e não se tem, ainda, certeza de sua existência em outro ponto do universo, a vida é uma preciosa raridade. O que não deixa de ser um paradoxo diante da realidade cotidiana repleta de banalidades, que nos faz passar por ela sem pensar, ou da naturalização das interrupções que podiam ser evitadas.

Quando escrevi o texto, uma revista científica dizia que o código genético dos chimpanzés difere do humano em apenas 1%. Ou seja, um pequeno detalhe torna a raça humana única na imensidão cósmica e perpetua atavicamente o traço egocêntrico. Um traço que a levou a dominar o fogo e em consequência ocupar o planeta como se este lhe fosse um presente dos deuses, uma generosa dádiva para satisfação de suas necessidades infinitas. A inteligência avançou a passos largos dividindo cada palmo da Terra, dominando seus recursos. Decidiu, muitas vezes de forma violenta, quem teria direito ao usufruto. Irredutível, criou um braço tecnológico. Segue seu caminho na sequência de dias banais por ela denominados anos, séculos, milênios que correm em fluxo para alimentar o que chamam de História.

Inventaram relógios na tentativa de apreender o tempo ou dar asas à tola ilusão de controlá-lo. Ora, esquecem que não são os ponteiros que fazem nascer ou findar o dia, ou os calendários que fazem mudar as estações. Com ou sem relógios, enquanto houver sol, a inclinação da luz dará um tom alaranjado ao despertar do homem e a escuridão cobrirá suas noites. Com ou sem calendários, os campos se vestirão de flores na primavera e as folhas cairão no outono, graças a um movimento natural que influencia a vida na terra, a dança dos astros no universo.

Ao vê-la de longe, o homem repetiu atônito que a terra é azul. O distanciamento permitido pela tecnologia revela o seu valioso mundo como apenas uma bola coberta por um gigantesco manto azul. Alheia, a bola flutuante segue seu curso iniciado há milhões de anos, em um constante processo de transformação. De rochas fumegantes à glaciação, da pangeia aos diversos continentes, dos dinossauros ao homem deixa marcas em cada era. Entre elas a marca tranquilizadora de um espesso manto azul que vem garantindo no fluxo do tempo o ato de respirar. Ato que foi negado a um homem negro por um homem branco que pressionava o seu pescoço, em uma cena levada ao mundo pela tecnologia que nos fala tão de perto. Ato que é negado aos meninos pretos do meu país por homens investidos do poder das armas. Ato negado à população pobre do meu país (negra ou mestiça, em sua maioria) por um homem branco que diante de uma pandemia nega a ciência e a inteligência, levado ao poder pelo mau uso da mesma tecnologia que toca de perto as pessoas.

Vivemos o caos com duas certezas bem óbvias: a pequenez do homem diante do universo e a sua dependência do ar. O oxigênio que preenche, gratuitamente, as ruas vazias lá fora. É só ele que nos basta. É a esse elemento que ora nos agarramos, atentos à possibilidade de prolongar e intensificar o doce sabor da vida.

Protegida pelo vidro da minha janela vejo lagartixas espreitando moscas, andorinhas dançando no azul. Fito o beija-flor que invade o jardim florido em mais um gesto banal. O bico alongado, em desespero, busca energia para manter o movimento de suas asas frenéticas, satisfazendo o desejo instintivo de preservar a vida. O bicho-homem, em desespero reproduz o desejo, buscando respostas para o seu enigma. O destino do indivíduo é o chão pelo tempo natural. Antes disso só quando lhe são brutalmente negadas as oportunidades de inspirar e expirar. Já o destino da humanidade, esse está irremediavelmente associado ao legado de cada um desses indivíduos durante o percurso dos seus passos rumo ao chão.