Não nasci em Teresina. Cheguei aqui ainda menina e cheia de sonhos. Um tanto aborrecida com a estrada que se encurtara, não me permitindo ir um pouco mais além. Era só o começo de uma relação de amor e ódio que me vê entardecer. Entristecida com esse quinze de novembro, li o poema de Mia Couto. Ele me traz de volta a este espaço que andou esquecido por um tempo. É dele o título.

A cidade me ofereceu muito do que o amor pode oferecer. Estruturei uma vida, edifiquei uma família, criei laços. A cidade me ofereceu a água fresca dos rios e remos. A alegria das chuvas e trovões (o que restou da chapada), seguida da aflição das ruas alagadas. O riso do sol de todos os dias e o incômodo do calor insuportável, da fumaça no horizonte e das mucosas ressecadas. A cidade me ofereceu uma vista de toda a sua extensão e o sufoco de viver no alto, trancada por segurança e sem opção de vida ao ar livre. Logo eu que não vivo sem o ar (meu elemento é o fogo). Muitas vezes precisei voar.

Hoje fujo de mim, para pensar na tristeza que habita onde a vista alcança. A eterna pobreza das periferias. A falta de perspectivas. O completo abandono de metade da sua gente. O futuro negado às novas gerações que ainda tem no desterro a melhor opção. O provincianismo que nos divide e nos enterra entre o cheiro de estrume dos currais da colonização.

Nada é mais triste do que uma espera que se cansa de ser espera. – Sérgia A.

Vi Teresina crescer esmagando seus rios em margens de esgoto, quando a engenharia sanitária já organizava o mundo lá fora. Vi a temperatura adoecer sua gente, anos após anos, sem nenhum projeto de arborização intenso e verdadeiro, quando estudos ambientais já apontavam soluções. Vi suas ruas serem pavimentadas sobre córregos, sem projetos de drenagem ou respeito ao caminho natural das águas. Vi suas avenidas correrem cada vez mais lentas, entupidas de carros e motocicletas, sem que ninguém pensasse em soluções de transporte urbano que funcionam em todos os continentes há décadas. Um ou outro avanço pontual que se perdeu nos anos de repetição.

2020, diziam todos, será um ano de introspecção. Fecham-se as portas. Um vírus nos diz que nossa forma de contato precisa ser revista, que respeito ao lugar do outro é fundamental. O vírus grita muito alto que o indivíduo não estará bem se o coletivo não estiver. E daí? Respondem os egos inflados.

As metrópoles e suas periferias pulsantes deram uma resposta à nefasta agenda em curso. Tanto na questão do amparo social na pandemia quanto nas eleições. É bonito de ver não apenas os nomes que cresceram rumo ao executivo, como também a renovação dos legislativos municipais com representantes das mulheres, dos negros e das minorias. Não podemos esquecer que são esses movimentos que têm nos salvado de pautas reacionárias na área de educação e cultura, ao denunciar projetos como o “Escola sem partido”, outros que traziam insegurança jurídica  ao direito ao aborto legal ou, ainda, os que impunham censura a shows, exposições e manifestações artísticas em geral.

Teresina deu as costas ao sopro dessa brisa leve, decidindo fortalecer o seu provincianismo. Boas candidaturas propuseram um debate sério sobre a cidade, sem nenhuma repercussão. Um sinal de que há algo muito errado na abordagem e nos ouvidos. As urnas revelaram que mulheres pensantes não são bem-vindas. De um lado, o medo de mudança que nos devora há quase quatro décadas. De outro, o pensamento tosco dos que acreditam na falsa generosidade dos bobos. Como se isso fosse pouco, as urnas deram voz a uma terceira via: o conservadorismo associado à teologia da prosperidade, ao negacionismo crítico das medidas radicais necessárias para conter uma crise sanitária sem precedentes. O que há de comum entre os três, além do fato de estarem no campo político da direita?  São defensores anacrônicos da tragédia que o obscurantismo nos trouxe em todas as áreas.

Nada é mais triste do que uma espera que se cansa de ser espera. O meu primeiro voto (há muito tempo) já nascia da necessidade de remar contra a correnteza. De acreditar que uma cidade nordestina, erguida entre rios, precisava apenas de uma mãozinha mais inteligente e comprometida para vir a ser um lugar bom de viver. No entanto, mesmo no período da grande esperança, Teresina fincou pé prendendo-se às estacas dos seus currais.

Vou embora para Passárgada? Não. Não quero ser amiga de nenhum rei.

Feito o riacho que preenchia a minha infância, antes que eu conhecesse os rios, minha teimosa esperança ainda aguarda as cheias que levam vida além das margens. Como sugere Ailton Krenak, conto histórias na tentativa de adiar o fim do mundo. Quero uma cidade em que minhas netas possam viver e fazer escolhas sem as angústias que suas ancestrais atravessaram. É pedir demais?

 

(A imagem do Rio Poti, em Teresina-PI, foi gentilmente cedida pela fotógrafa Maria Dimas Ribeiro Lages)