Abro um livro nesta manhã do décimo quinto dia e encontro num verso de Wislawa
Szymborska, traduzido por Regina Przybycien, a validação de um sentimento que cresce
dentro de mim e que preciso deixar transbordar. Tomo-o de empréstimo para o título.

Escrevo por necessidade. Escrever é minha forma de organizar o caos, interno e externo.
Sim, também o externo porque é através da mente que a realidade encontra significado.
Wislawa, que só conheci após a primeira tradução no Brasil em 2011, tem o poder de
despertar em mim a vontade de escrever. Talvez, porque as profundas reflexões sugeridas
por suas palavras me desestabilizem, toquem sorrateiramente em meu frágil equilíbrio e me
obriguem a olhar para o escuro. Aquele lugar que meus olhos teimam em se desviar. E para
retornar à luz é preciso escrever.

O poema Ocaso do Século (1987) traz uma sequência de ideias, em tom de lamento por trás
da ironia, sobre a expectativa do que seria o século XX para a humanidade e como de fato
se revelou. Um balanço acentuado pelo desencanto, fazendo uso do efeito chiaroscuro – do
que faz rir e do que entristece – que é marca dos seus poemas. Para mim, é impossível ler e
não enxergar o início da terceira década do século XXI como o aprofundamento do
desencanto de que trata o eu lírico às vésperas da virada.

Estou saindo de duas semanas de isolamento, ainda com olfato e paladar alterados.
Estranho levantar-me, fazer um café e não ser despertada pelo cheiro. Mais estranho, lidar
com o amargo residual que as papilas guardam como sabor único. Como se os sentidos
tivessem sido apagados do meu cérebro racional para me fazer sentir no corpo o estar no
mundo neste instante.

Não escapei, apesar das vacinas e de todos os cuidados que me fizeram chegar até aqui sem
ser infectada num país que ostenta um dos piores índices de casos e mortes por covid. Não
precisei de hospital, tampouco me pareceu leve como dizem os risos triunfantes nas redes
sociais depois de cinco dias de um teste positivo. Sabia, desde o início, que pertencia ao
grupo dos vulneráveis. Assim como soube desde os primeiros embates sobre o controle da
pandemia que ela se tornaria isso que estamos vendo: mais que uma infecção causada por
um vírus, uma exposição assustadora de todos os males da sociedade do século XXI. A

sociedade que valorizou absurdamente o individualismo, o cada um por si, o sistema que
não pode parar, em detrimento do senso de coletividade ou do respeito pelo outro.

Como poderia ser diferente?

Depois de um tempo de sonho com o avanço do processo civilizatório, reaprendemos a
aplaudir os que esbanjam convivendo lado a lado com os que reviram o lixo pra saciar a
fome. Na era digital, continuamos aceitando que uma minoria seja dona da riqueza
acumulada pela exploração da maioria. A miséria continua natural. A mesma miséria que
abalou o alicerce da sociedade industrial e fez nascer a ideia de bem-estar social. Somos
cúmplices de um sistema que destrói o planeta, apesar de conhecer cientificamente seus
limites em nos oferecer o básico: água e ar. Seria diferente com relação a uma doença
perigosa apenas pra porção descartável dessa engrenagem?

Ainda que não tenha me faltado afeto e atenção, foi aterrorizante ver meu corpo entre os
descartáveis. Observar o descaso de um lugar de privilégio, analisar dados, criticar, achar
que estou fazendo a minha parte é uma coisa. Outra é ser um número entre os invisíveis, os
desprezados, os que não fazem falta.

A finitude é inevitável. Sou consciente e este não é o ponto. O assombroso é saber que
nosso tempo foi um tempo em que a humanidade não apenas deixou de cumprir as
promessas da lógica evolutiva, mas escolheu regredir. Saber que virão outras crises
econômicas, sanitárias e ambientais cujas soluções passam por uma mudança radical no
modo de vida, sendo levada a crer que essa mudança não virá em socorro de nossa
descendência. Saber que já não se vislumbram os sonhos coletivos de futuro, pois colonizar
outro planeta é a aposta fantasiosa da minoria que enriqueceu com a destruição da Terra e
considera isso um merecimento.

Se as utopias saíram de moda, como continuar vivendo?

O poema fecha a última estrofe afirmando não há perguntas mais urgentes/do que as perguntas
ingênuas. A única esperança é que outras linhas se preencham com cândidos pontos de
interrogação.