Olho o calendário e conto os últimos dias de 2021. Não farei um balanço. Difícil aceitar o ano que poderia ter sido de esperança como uma realidade desanimadora. A vacina veio, é fato. Acompanhada de um obscurantismo que não se alinha ao nível de conhecimento alcançado pela humanidade. Por aqui temos um plus: a destruição se instalou em todas as áreas. Mas sobrevivemos e estamos respirando o advento. Isso faz acender aquela pequena chama que se esconde no fundo da alma.
Não sou religiosa. Entendo o sagrado (crença na existência de deus, de deuses ou deusas) como uma necessidade humana, apenas. Gosto de observar o reflexo disso nas ações dos que se dizem ligados ao divino. Talvez, um modo muito particular de viver a fé.
A ideia de um instante de harmonia pisca no nosso cérebro muito mais do que as luzes decorativas instaladas em lares, parques e avenidas. Daí aceitarmos confraternizar até com quem infernizou a nossa vida durante todo o ano no trabalho ou em família. Bom momento para refletir, não?
Nesse observar descobri uma doutora em teologia, feminista e pastora da Igreja Batista, que realiza um bonito trabalho com minorias. Seguindo o ensinamento de Cristo, ela leva conforto espiritual àqueles que sofrem preconceito, discriminação e são excluídos das igrejas e da sociedade. Sigo seu perfil em redes sociais. Por esses dias, ela celebrou o amor e a união entre duas mulheres cristãs. Ação que me encheu de fé.
O choque viria dois dias depois. Nos portais, a notícia de que a pastora e sua família prestaram queixa à polícia por sofrerem perseguições e ameaças de morte. Vítimas do ódio que nasce do fundamentalismo religioso.
Nos mesmos portais, o adeus à teórica do feminismo bell hooks expande a tristeza. Minha mente se dispôs a fazer uma conexão. Em um ensaio publicado em 2015, bell faz uma análise da espiritualidade feminista. Uma breve passagem histórica sobre os conflitos entre feminismo e religião. Foi preciso desafiar a base do sistema de crenças judaico-cristãs de ideologia patriarcal e opressora. Em seguida, veio a conquista da espiritualidade libertadora através da transformação das crenças religiosas incluindo a busca por tradições orientais. Logo depois, entram em cena as teologias da libertação que acreditam ser o fim do patriarcado (e outros tipos de opressão) algo ordenado por deus. E por fim, o ameaçador retorno do fundamentalismo religioso associado a ideologias políticas de direita.
A pastora afirma que desde 2016 se intensificaram as críticas ao seu trabalho de acolhimento à diversidade. Um dado que coincide com o aumento do fundamentalismo religioso no Brasil, alimentado em igrejas neopentecostais (católicas e evangélicas). Assim como coincide com a escalada de ameaças aos direitos civis conquistados por mulheres e minorias e com a demonização do movimento feminista. Como diria bell, uma ameaça à espiritualidade progressista.
Por que falar disso às vésperas do Natal?
Porque somos o produto de uma cultura religiosa cristã. Mesmo quem não tem prática, sente-se comovido neste período. A ideia de um instante de harmonia pisca no nosso cérebro muito mais do que as luzes decorativas instaladas em lares, parques e avenidas. Daí aceitarmos confraternizar até com quem infernizou a nossa vida durante todo o ano no trabalho ou em família. Bom momento para refletir, não?
Voltando à pergunta que move este texto. O conflito é parte de todo processo evolutivo. É verdade que a maioria das religiões tem por base uma mentalidade dualista que tolera o sexismo e a dominação masculina (inclusive sobre o corpo das mulheres). Vale lembrar que estamos sempre em movimento. É possível contextualizar os textos sagrados, fazer leitura crítica e aberta a questionamentos. Ou, buscar práticas espirituais que abraçam o feminismo e fazem perceber que não pode haver incompatibilidade entre aquilo que promete um bem-estar espiritual e um movimento que luta por justiça, igualdade e valorização do ser humano, seja qual for o formato do seu corpo.
Que o espírito do Natal, se existir, ilumine as mentes e abra caminho para a tão propagada renovação. Crucial para preservação da humanidade, pois um vírus nos avisa que o modelo de mundo como conhecíamos está com os dias contados.
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Imagem: TINTORETTO – Magdalena penitente (Musei Capitolini, Roma, 1598-1602).
Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com) vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)