Depois de um ano e sete meses de confinamento, devidamente vacinada, reencontrei uma amiga para um café. Eram tantos os assuntos para nossas emoções incontidas que duas horas não foi mais que um instante. Pandora papers, nuvem de poeira, marco temporal, mortes, queda das redes sociais, prêmio Nobel e toda a pauta do momento pululando entre nossos projetos a serem retomados, para nos questionar: que lugar foi esse onde ancoramos o barco do nosso envelhecer?
É fato que a coisa já desandava antes da pandemia se instalar. No entanto, o vírus nos revelou o horror. Não o desabamento do mundo como imaginávamos a princípio. Mas o horror que se escondia e que saltou aos olhos apesar das máscaras. E por que estamos tão chocadas se, desde quando lutávamos pelas Diretas, já éramos conscientes dos mecanismos que norteiam esta república?
Dizem os sábios que a interatividade gera novas qualidades no comportamento coletivo, assim como no campo da individualidade o reinventar-se e seguir em frente é uma necessidade.
Talvez seja esse o ponto: acreditamos na evolução. Acreditamos que os valores que nos levaram a Eco 92, a estabelecer cotas nas universidades, a eleger uma presidenta, a legalizar uniões homoafetivas estavam internalizados nas gerações que criamos e educamos. Engano. Talvez as nossas crias até tenham compreendido tudo e se tornado pessoas melhores que nós, porém havia uma massa ressentida que no seu covil também criava herdeiros a sua imagem e semelhança. Bastou uma crise econômica para que a vergonha de ser politicamente incorreto se dissipasse e os egos inflados fizessem ninhos na liberdade de expressão (conquistada a duras penas) para expor a sordidez. Ao ponto de se considerar sinal de capacidade para gerir a economia de um país o cidadão que fez fortuna fugindo dos impostos, da regulação financeira e das obrigações de transparência ditadas pelo avanço civilizatório. Ou, médicos se julgarem no direito de fazer experimentos em humanos sem o rigor da ética e da metodologia científica.
A massa ressentida precisava apenas de uma autorização simbólica: ganhar as eleições para o poder central. E depois da conquista não poderia perder para um ser minúsculo que nem vida, propriamente, tem. Um ser que, apesar de invisível, exigia o olhar para o todo. Negar foi solução. E tudo que acompanhamos foi consequência.
A essa altura, devo dizer que minha amiga conjuga o verbo esperançar muito facilmente. Para quebrar a tristeza, ela puxou do celular notícias sobre o Nobel 2021: na física (mais ligada à sua área de atuação) e na literatura (a minha). Syukuro Manabe, Klaus Hasselmann e Giorgio Parisi, pelas contribuições inovadoras para compreensão de sistemas complexos, o que envolve pesquisas sobre meio ambiente e mudanças climáticas. Na Literatura, Abdulrazak Gurnah e suas histórias de migração, nas quais a impermanência e a agitação constante são dadas como certas. Estamos em movimento.
Saí de lá um pouco mais leve. Dizem esses sábios que a interatividade gera novas qualidades no comportamento coletivo, assim como no campo da individualidade o reinventar-se e seguir em frente é uma necessidade. A academia manda um recado. Ou, em melhor rearranjo de palavras: não estamos sós. Acende-se uma chama.
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Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com) vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos (Quimera, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana (EDUFPI/Avant Garde, 2018); Conexões Atlânticas (Infinita – Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras (ABR Editora, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos (Patuá, 2018).