– A Senhora vai me visitar no hospício?

Ouvi e respirei fundo contando até dez, vagarosamente, até que uma resposta em tom de sinceridade e de empatia encontrasse o caminho entre a mente e a voz. Não era difícil compreender a desilusão diante de uma análise burocrática e fria, bem característica de quem está do lado de cá, onde é fácil esquecer que por trás de papéis, projetos e orçamentos existe vida em compasso de espera.

Corria o ano de 2011 e eu trabalhava com programas habitacionais para área rural. Ao desligar o telefone, a voz se repetia no meu ouvido. Latente, levava-me a pensar sobre o meu papel dentro da grande fábrica de sonhos. Quanto cabia da minha insignificância na resolução de uma das questões mais sérias de um país que, ao tempo em que se enxergava como a grande promessa de desenvolvimento econômico, não conseguia desmontar uma engrenagem ultrapassada e fomentadora de miséria?

O sonho, que virava pesadelo do outro lado da linha, nada mais era do que uma necessidade básica. O direito elementar de ter um teto erguido na terra onde se vive e se produz o sustento. A voz, assim como as que a antecederam, nasceu e viveu no mesmo pedaço de chão. Terceira ou quarta geração sem o título de propriedade. Alimentava-se da terra, mas não gerava renda. Sem título não se enquadrava nas condições de acesso aos programas habitacionais. Sem renda não tinha meios para construir por conta própria e nem como ser aprovado em financiamentos.

Tentei analisar o próximo processo da fila. Porém, a voz retornava e me inquietava. Trazia à mente os conflitos no campo que invadiam os noticiários e tornavam tristes as estatísticas de homicídios em todo o país. Bárbaros assassinatos e outras ocorrências motivadas por ações de resistência e enfretamento pela posse, uso e propriedade da terra, bem como pelo acesso a áreas de florestas. Naquele ano mais dois casos viravam notícia pelo mundo: José Cláudio e Maria, o casal de castanheiros que, como o seringueiro Chico Mendes, deu a vida pela parte da floresta que lhes cabia dentro do modelo de uso sustentável que defendiam.

É fato que do lado de dentro do balcão, lidando com os volumes de recursos anunciados, era acalentador perceber que se plantava uma semente. Pela primeira vez agricultores familiares conseguiam chegar até o frio balcão em que sonhos viram negócios. Alguns, depois de muitas idas e vindas, conseguiam levá-los em seus alforjes. Se essa era a forma mais eficiente, sabíamos que não. Mas não cabia à minha insignificância opinar.

Cabia à angústia despertada pela voz, no entanto, questionar: qual país se desenvolveu mantendo estruturas latifundiárias arcaicas? Qual país se desenvolveu mantendo um nível tão alto de irregularidade fundiária?  Qual país se desenvolveu sem oferecer aos trabalhadores do campo condições verdadeiras de educação e de geração de renda que lhes garantissem um mínimo de dignidade? E olhando o futuro, imaginar, qual nação sobreviverá se não repensarmos o modelo de ocupação da terra?

Quase uma década depois, assistimos passivamente a morte de todas as pequenas sementes. Planta-se em seu lugar o ódio aos pobres, aos sem-terra, aos indígenas e aos povos das florestas.  Já não trabalho no banco. Na parte, ainda mais reduzida, que me cabe sinto a necessidade de manter a serenidade e por isso escrevo. É um jeito de não permitir que o desencanto enterre a esperança de um dia ver as mortes e vidas severinas como cicatrizes de uma história muito antiga. Na ficção reencontro aquela voz:

– Está ouvindo o tilintar ? É a chave. Venha tomar um café com a gente!

Ouço a chave. Ouço a alegria. Ouço o vento reproduzindo o agradável canto da terra afagada no cio, forjando o milagre do pão e lambuzando-se na doçura do mel, como dizia uma velha canção.