Antes que os apressados vejam no título uma justificativa para palavras proferidas pela boca suja do senhor que ocupa o poder central deste país, informo que se trata do último verso do poema Ícaro de Adélia Prado. É sim, uma referência à insignificância da vida humana e está aqui como provocação para afirmar, logo de início, que toda vida importa. Ainda que para o indivíduo a morte seja um destino inevitável, é o modo como esse indivíduo nasceu, cresceu, se desenvolveu e morreu que dá sentido à existência da humanidade.
Em julho de 2011, publiquei no blog Palavrasde.Lirantes o texto Há um segredo. Lá estavam presentes a questão ambiental e a preservação da vida na Terra. Reli por esses dias em que uma coisinha minúscula, que nem sequer possui vida fora de um corpo humano/animal, nos enclausura e nos obriga a enfrentar uma crise que não é apenas sanitária, mas econômica, ambiental, política e de valores. É a crise. A encruzilhada que nos pede para rever o nosso modo de vida e escolher um novo caminho. Portanto, é daquele texto que parto para dissolver em palavras a angústia que fez morada no meu peito, trazendo velhas questões: quem somos, como chegamos até aqui, para onde vamos?
Pois bem, para não sufocar faço o exercício de sair de mim para ampliar a compreensão do que seja vida. Se um acaso a gerou e não se tem, ainda, certeza de sua existência em outro ponto do universo, a vida é uma preciosa raridade. O que não deixa de ser um paradoxo diante da realidade cotidiana repleta de banalidades, que nos faz passar por ela sem pensar, ou da naturalização das interrupções que podiam ser evitadas.
Quando escrevi o texto, uma revista científica dizia que o código genético dos chimpanzés difere do humano em apenas 1%. Ou seja, um pequeno detalhe torna a raça humana única na imensidão cósmica e perpetua atavicamente o traço egocêntrico. Um traço que a levou a dominar o fogo e em consequência ocupar o planeta como se este lhe fosse um presente dos deuses, uma generosa dádiva para satisfação de suas necessidades infinitas. A inteligência avançou a passos largos dividindo cada palmo da Terra, dominando seus recursos. Decidiu, muitas vezes de forma violenta, quem teria direito ao usufruto. Irredutível, criou um braço tecnológico. Segue seu caminho na sequência de dias banais por ela denominados anos, séculos, milênios que correm em fluxo para alimentar o que chamam de História.
Inventaram relógios na tentativa de apreender o tempo ou dar asas à tola ilusão de controlá-lo. Ora, esquecem que não são os ponteiros que fazem nascer ou findar o dia, ou os calendários que fazem mudar as estações. Com ou sem relógios, enquanto houver sol, a inclinação da luz dará um tom alaranjado ao despertar do homem e a escuridão cobrirá suas noites. Com ou sem calendários, os campos se vestirão de flores na primavera e as folhas cairão no outono, graças a um movimento natural que influencia a vida na terra, a dança dos astros no universo.
Ao vê-la de longe, o homem repetiu atônito que a terra é azul. O distanciamento permitido pela tecnologia revela o seu valioso mundo como apenas uma bola coberta por um gigantesco manto azul. Alheia, a bola flutuante segue seu curso iniciado há milhões de anos, em um constante processo de transformação. De rochas fumegantes à glaciação, da pangeia aos diversos continentes, dos dinossauros ao homem deixa marcas em cada era. Entre elas a marca tranquilizadora de um espesso manto azul que vem garantindo no fluxo do tempo o ato de respirar. Ato que foi negado a um homem negro por um homem branco que pressionava o seu pescoço, em uma cena levada ao mundo pela tecnologia que nos fala tão de perto. Ato que é negado aos meninos pretos do meu país por homens investidos do poder das armas. Ato negado à população pobre do meu país (negra ou mestiça, em sua maioria) por um homem branco que diante de uma pandemia nega a ciência e a inteligência, levado ao poder pelo mau uso da mesma tecnologia que toca de perto as pessoas.
Vivemos o caos com duas certezas bem óbvias: a pequenez do homem diante do universo e a sua dependência do ar. O oxigênio que preenche, gratuitamente, as ruas vazias lá fora. É só ele que nos basta. É a esse elemento que ora nos agarramos, atentos à possibilidade de prolongar e intensificar o doce sabor da vida.
Protegida pelo vidro da minha janela vejo lagartixas espreitando moscas, andorinhas dançando no azul. Fito o beija-flor que invade o jardim florido em mais um gesto banal. O bico alongado, em desespero, busca energia para manter o movimento de suas asas frenéticas, satisfazendo o desejo instintivo de preservar a vida. O bicho-homem, em desespero reproduz o desejo, buscando respostas para o seu enigma. O destino do indivíduo é o chão pelo tempo natural. Antes disso só quando lhe são brutalmente negadas as oportunidades de inspirar e expirar. Já o destino da humanidade, esse está irremediavelmente associado ao legado de cada um desses indivíduos durante o percurso dos seus passos rumo ao chão.