Sergia A.

Do caminho

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Todo destino é o chão

 

Antes que os apressados vejam no título uma justificativa para palavras proferidas pela boca suja do senhor que ocupa o poder central deste país, informo que se trata do último verso do poema Ícaro de Adélia Prado. É sim, uma referência à insignificância da vida humana e está aqui como provocação para afirmar, logo de início, que toda vida importa. Ainda que para o indivíduo a morte seja um destino inevitável, é o modo como esse indivíduo nasceu, cresceu, se desenvolveu e morreu que dá sentido à existência da humanidade.

Em julho de 2011, publiquei no blog Palavrasde.Lirantes o texto Há um segredo. Lá estavam presentes a questão ambiental e a preservação da vida na Terra. Reli por esses dias em que uma coisinha minúscula, que nem sequer possui vida fora de um corpo humano/animal, nos enclausura e nos obriga a enfrentar uma crise que não é apenas sanitária, mas econômica, ambiental, política e de valores. É a crise. A encruzilhada que nos pede para rever o nosso modo de vida e escolher um novo caminho. Portanto, é daquele texto que parto para dissolver em palavras a angústia que fez morada no meu peito, trazendo velhas questões: quem somos, como chegamos até aqui, para onde vamos?

Pois bem, para não sufocar faço o exercício de sair de mim para ampliar a compreensão do que seja vida. Se um acaso a gerou e não se tem, ainda, certeza de sua existência em outro ponto do universo, a vida é uma preciosa raridade. O que não deixa de ser um paradoxo diante da realidade cotidiana repleta de banalidades, que nos faz passar por ela sem pensar, ou da naturalização das interrupções que podiam ser evitadas.

Quando escrevi o texto, uma revista científica dizia que o código genético dos chimpanzés difere do humano em apenas 1%. Ou seja, um pequeno detalhe torna a raça humana única na imensidão cósmica e perpetua atavicamente o traço egocêntrico. Um traço que a levou a dominar o fogo e em consequência ocupar o planeta como se este lhe fosse um presente dos deuses, uma generosa dádiva para satisfação de suas necessidades infinitas. A inteligência avançou a passos largos dividindo cada palmo da Terra, dominando seus recursos. Decidiu, muitas vezes de forma violenta, quem teria direito ao usufruto. Irredutível, criou um braço tecnológico. Segue seu caminho na sequência de dias banais por ela denominados anos, séculos, milênios que correm em fluxo para alimentar o que chamam de História.

Inventaram relógios na tentativa de apreender o tempo ou dar asas à tola ilusão de controlá-lo. Ora, esquecem que não são os ponteiros que fazem nascer ou findar o dia, ou os calendários que fazem mudar as estações. Com ou sem relógios, enquanto houver sol, a inclinação da luz dará um tom alaranjado ao despertar do homem e a escuridão cobrirá suas noites. Com ou sem calendários, os campos se vestirão de flores na primavera e as folhas cairão no outono, graças a um movimento natural que influencia a vida na terra, a dança dos astros no universo.

Ao vê-la de longe, o homem repetiu atônito que a terra é azul. O distanciamento permitido pela tecnologia revela o seu valioso mundo como apenas uma bola coberta por um gigantesco manto azul. Alheia, a bola flutuante segue seu curso iniciado há milhões de anos, em um constante processo de transformação. De rochas fumegantes à glaciação, da pangeia aos diversos continentes, dos dinossauros ao homem deixa marcas em cada era. Entre elas a marca tranquilizadora de um espesso manto azul que vem garantindo no fluxo do tempo o ato de respirar. Ato que foi negado a um homem negro por um homem branco que pressionava o seu pescoço, em uma cena levada ao mundo pela tecnologia que nos fala tão de perto. Ato que é negado aos meninos pretos do meu país por homens investidos do poder das armas. Ato negado à população pobre do meu país (negra ou mestiça, em sua maioria) por um homem branco que diante de uma pandemia nega a ciência e a inteligência, levado ao poder pelo mau uso da mesma tecnologia que toca de perto as pessoas.

Vivemos o caos com duas certezas bem óbvias: a pequenez do homem diante do universo e a sua dependência do ar. O oxigênio que preenche, gratuitamente, as ruas vazias lá fora. É só ele que nos basta. É a esse elemento que ora nos agarramos, atentos à possibilidade de prolongar e intensificar o doce sabor da vida.

Protegida pelo vidro da minha janela vejo lagartixas espreitando moscas, andorinhas dançando no azul. Fito o beija-flor que invade o jardim florido em mais um gesto banal. O bico alongado, em desespero, busca energia para manter o movimento de suas asas frenéticas, satisfazendo o desejo instintivo de preservar a vida. O bicho-homem, em desespero reproduz o desejo, buscando respostas para o seu enigma. O destino do indivíduo é o chão pelo tempo natural. Antes disso só quando lhe são brutalmente negadas as oportunidades de inspirar e expirar. Já o destino da humanidade, esse está irremediavelmente associado ao legado de cada um desses indivíduos durante o percurso dos seus passos rumo ao chão.

Do quarto à varanda

Mais um domingo se foi. Sem missa, sem praia nem céu de anil como descrevia Raul. Tinha sangue nos jornais. Um cheiro de morte varre o planeta. Tenho passado dias rondando ao redor da sala, sem lugar para ir. Feito Caetano no exílio, olhando as nuvens na varanda em busca de objetos voadores. Enquanto esfregava o chão, me peguei cantando: “oh oh seu moço do disco voador, me leve com você pra onde você for”.

Por fim, consegui me sentar para tentar escrever. Queria falar dos vinhos da Geórgia, dos poetas do Azerbaijão ou da minha última aventura em busca de praias desconhecidas no litoral do Ceará. Porém esse mundo está agora tão distante que parece que nunca existiu. Com os músculos exaustos, a primeira coisa que me ocorre é o conhecido texto de Virginia Woolf, em que ela descreve sua luta contra o “O Anjo do Lar”. Sim, como Virginia, precisei matar o “Anjo da Limpeza” em troca de concentração para escrever. Afastá-lo com uma conversa séria, melhor dizendo. Afinal é difícil matar um fantasma, convenhamos. O fato é que ele se instalou no meio da sala a me provocar. Herdou do seu antecedente o jeitão de achar que existem padrões a serem seguidos pelas mulheres, em tudo que elas produzem, para que assim se reconheça a sua doce face feminina.

Sim, não vou aliviar os meus privilégios. Para tornar compreensível esta história devo dizer que, desde que recebi o primeiro salário e montei uma casa, reservo parte da minha renda mensal para pagar uma pessoa que executa os serviços domésticos que eu abomino. Bom, o certo é que sem ela estou há quarenta dias sob vigilância dele, tendo que olhar para todos os cantos da casa.

Nunca fui de acordar cedo. Durmo tarde. De repente, mal o sol brilha na fresta da persiana, levanto-me. Preciso alongar. Articulações enrijecidas pelos anos na mesma posição exigem atenção especial. Lá se foram cinquenta minutos em que as três sequências do Lian Gong, no vídeo chinês, me salvam. Um banho!  Necessário, estou suando às bicas. Quem disse que o clima desta terra respeita a chuva? Faço um café! Urgente… Obviamente, o dia não desperta sem ele. Ufa! Enfim saciada, leve como uma pluma, encontro meu lugar no escritório. Hoje vai…

Não vai. O Anjo da Limpeza toca de leve o meu ombro para me lembrar que a roupa suja no cesto precisa chegar até à máquina de lavar. Levanto-me. Providencio: roupa bem distribuída, sabão, amaciante, programa, nível da água, “start”. Sento-me novamente. Escrevo a primeira palavra… Sinto o seu bafo quente no meu pescoço. O que foi desta vez? O interfone está tocando… O porteiro avisa sobre as compras que chegam. Pronto! Acabou o dia. Nada é pior do que a tensão diante de várias sacolas de compras que podem estar infestadas de vírus. Peço licença ao poeta Paulo Machado e grito:  Fazer poemas é fácil! Amordaçar lobos é higienizar compras em tempos de Corona.

Sem graça, engulo o jantar. Dedico algum tempo à meditação para acalmar mente. Leio. Vejo séries. Reorganizo a agenda. Durmo. Acordo no meio da noite. Durmo novamente. No sonho, estarei desperta no dia que se segue para cumprir item por item do planejamento.

Repito o ritual de despertar. Corro para as redes sociais cheia de entusiasmo. Hoje vai…  afinal “Shakespeare escreveu Rei Lear em quarentena”, alguém me diz.  “Newton elaborou a teoria da gravidade durante a peste” diz o próximo post. Na TL dos amigos pipocam dicas “sobre criatividade na quarentena”, convites para “lives”, chamadas para antologias, saraus virtuais etc.

Eis que o Anjo no centro da sala me aponta os banheiros, as teias de aranha nos cantos do forro, a poeira sobre os livros. Isso sem falar na cozinha, que por absoluta falta de intimidade, ficou entregue aos meus companheiros de quarentena. Eles sujam. Eles limpam.  É certo, embora ninguém mencione, que Shakespeare e Newton contavam com assessoras silenciosas organizando cada detalhe das suas vidas mundanas. Suas mentes se dedicavam inteiramente ao estudo e à criação. Inveja é um sentimento corrosivo.  As dicas e convites me irritam! Grito: não preciso de ideias dos outros… preciso de tempo! preciso de paz!

Encontro refúgio na leitura, como sempre.  Chama minha atenção um artigo de uma professora da Universidade de Toronto, pesquisadora em áreas de guerras e conflitos, escrito para seus pares acadêmicos, com o título “Porque você deveria ignorar toda a pressão para ser produtivo agora”… Devoro.  Um alívio enorme invade todo o meu ser. Enfim, alguém entendeu exatamente o que eu sentia e me diz, com todas as letras, que eu não estou fracassando.

Na mesma semana em que li o artigo, uma pessoa especial me diz para pensar naquele brinquedinho indicado para crianças com menos de dezoito meses. Aqueles em que as peças têm formas diversas (quadrados, triângulos, retângulos etc.) e a base tem as mesmas formas vazadas para encaixe. Um objeto quadrado jamais se encaixaria no triângulo vazado, certo? Por que não pensei nisso antes?

Estamos todos em processo de aprendizagem. Sentei-me ao lado do Anjo na sala. Disse-lhe, claramente, que a casa não precisa estar brilhando como antes para que eu possa me sentar no escritório, que suas antigas convicções já não atendem às novas questões.  Faríamos a partir dali algumas inversões na ordem das coisas. Montamos um time. No movimento descubro que cuidar do lugar que habito, no meu tempo e sem o peso da obrigação ou da raiva que carrego pelos anos, é cuidar de mim. Um cuidado que pode se revelar prazeroso. Espaço organizado, meu corpo (e a mente como parte dele) se libera para trilhar o caminho da adaptação ao que acaba de nascer.

Talvez assim seja possível lidar com a tristeza de um mundo caótico lá fora. Lutamos contra dois vírus: o que provoca a Covid-19 e o que infecta a política interna de saúde pública, de economia e ambiental. Em ambos os casos os inimigos são perigosos e nos obrigam a lutar pelo direito de respirar. Sim, embora de forma inteiramente desigual, obrigam a todos nós.  O meu pequeno time instalado em um prédio confortável e os milhões que se arriscam nos serviços essenciais ou em filas para receber um pequeno auxílio. Se esses não ficarem bem, ninguém ficará. Afetados por este ou por outros minúsculos agentes pulsantes na natureza que aprendemos a desrespeitar.

Caminho até a varanda. O Anjo está discreto hoje. Lá embaixo o ronco das motos é insistente. Sinto a brisa. Inspiro. Expiro. Já é muito. Compreendo que viver exigirá muito mais de mim daqui por diante. O planeta nos sacode de um jeito nunca visto pelos humanos. Já fez algo semelhante outras vezes, e a vida tomou novas formas. Por enquanto vamos vivendo um dia de cada vez.

 

 

As mulheres desenharão portas

 

 

Para as mulheres que me abrigaram
e me guiaram nesta imersão

Os tambores e blocos já estavam nas ruas da capital quando tomei um ônibus e atravessei a noite rumo a um lugar encantado. Natureza repleta de mistérios protegidos por rochas e mãos femininas. Eram cinco horas da manhã quando uma delas, sonolenta ainda, abriu o portão em meio aos latidos do cachorro que lhe garante a segurança. Um abraço acolhedor e uma cama macia, vedação perfeita da janela para garantir o escurinho a um sono reparador. O bom dia, sem cansaço, viria depois em torno de uma mesa na varanda em que vozes femininas me levavam a experimentar o frescor do umbu.

Café com pão quentinho. O cuscuz e o requeijão Cardoso nos aproximando em um primeiro contato para as decisões do dia. O Museu do Homem Americano logo ali no virar da estrada que faz vezes de avenida. Sentei-me diante daquela tela enorme como se fosse a primeira vez. Novamente o espanto por cada uma das descobertas que a valentia daquelas mulheres registrou durante quase cinquenta anos. Chorei pela grandeza do entendimento, em mentes jovens ainda, de que aquilo tudo pedia um estudo interdisciplinar e só teria valor se envolvesse a comunidade e se mostrasse ao mundo. Chorei pelas histórias que não se registram em museus, laboratórios ou artigos científicos mas são contadas pelos rostos felizes dos que frequentaram as escolas montadas por elas, se profissionalizaram e hoje estão nas universidades, nos museus, na própria Fundação do Homem Americano, no Parque, ou como guias turísticos.

Outro caminho. No percurso a memória indicando a direção. Elas tecem histórias do tempo em que não havia estradas dentro do parque. Sim, é preciso lembrar que o espaço deste enredo nasceu como Parque Ambiental demarcado depois de uma longa gestação dessas mulheres que o geraram, alimentaram, cuidaram e o viram o crescer. Nasceu da insistência, da persistência e da resistência de uma protagonista que agora exibe a fala mansa das mulheres sábias cujos anos e adversidades não as afastaram de suas essências.

Os relatos são cheios de graça e guardam semelhança aos dos caçadores que elas combatiam com o intuito de educar para a preservação. Com a diferença de que elas buscavam compreender a vida, eles a subsistência que os levaria à morte. Homens sabiamente conquistados para que não se perdesse o conhecimento da região, e se mantivesse a necessária ajuda para andar por quilômetros abrindo trilhas, carregando consigo instrumentos e alimento. Escavar rochas por um dia inteiro, armar redes nos galhos mais altos, dormir ao relento vendo o céu da caatinga se derramar sobre os sonhos, enquanto animais alertas rastejavam e se punham à espreita. Pequenas histórias que permeiam o rigor científico que edificou uma História a partir dos vestígios coletados por arqueólogas, biólogas, paleontólogas, ambientalistas e tantas outras profissionais residentes ou de passagem que, juntas, davam vida nova às pinturas rupestres, aos fósseis e outros elementos como o carvão de origem antrópica protegido sobre base rochosa por cem mil anos.

Entre uma risada e outra o acesso a detalhes da reconstrução da nossa pré-história a partir dos fragmentos que não passaram despercebidos por olhares dotados de aguda intuição. Nos estudos geológicos dos paredões a compreensão de que ali se revelava não apenas a reviravolta sobre a presença humana nas Américas, mas o processo de formação do lugar. Assim como a história da fauna a nos dizer: o bicho-homem é apenas mais um na longa existência da Terra. É isso que repete a moderna instalação do Museu da Natureza. Um espaço lúdico em que os visitantes são chamados a mergulhar em um buraco negro, brincar nas ondas de um mar primitivo, deixar-se encantar com a simulação da era do gelo, acompanhar o desfile dos animais diante dos seus fósseis, alçar um voo de asa delta sobre a imensidão do Parque sem sair do lugar.

Hora de pôr os pés no chão e voltar à realidade do nosso tempo pela observação da delicada montagem dos esqueletos de animais ali encontrados. Para o cansaço que chega, inevitavelmente, o remédio é relaxar o corpo e olhar para o teto. Permitir que a voz de Betânia preencha todas as lacunas que, por acaso, escaparam à compreensão da razão de estarmos ali.

O dia perfeito findaria com a visão do entardecer sobre os paredões que cercam a saída do museu. Contudo, a alguns quilômetros dali uma mesa disposta com belas cerâmicas produzidas no local se montava com carinho. O vinho e as vozes femininas costurando retalhos do ontem e do hoje, montando bastidores para o amanhã. Pontos cheios de cores que me trazem as palavras de Clarissa Pinkola, em Mulheres que correm com os lobos, que eu tomo de empréstimo para dar título a este texto. Não poderiam ser outras.

As paredes contam que mãos masculinas se aliaram nesta jornada e suas contribuições foram recebidas de bom grado, com o devido reconhecimento.  Fossem eles pesquisadores europeus ou gente simples do lugar. No entanto, foram elas que desenharam e, por inspiração, outras gerações continuam desenhando portas no escuro. Do outro lado, a luz.

 

 

 

Carnaval da abstinência (Se você fosse sincera)

 

Estou retornando de uma viagem no tempo e tenho uma longa história para contar. Ando meio tonta desde que me jogaram neste trem desgovernado rumo à Idade das trevas (que por aqui nem sequer existiu, né?), por isso vamos com calma. O caso é que ouvi uma marchinha de carnaval antes de dormir e acordei com Alice no pensamento. Não, não se trata da personagem de Lewis Carroll, mas de uma menina que eu conheci. Teria sido um sonho? Não sei. Deixo para a imaginação de vocês.

Estudávamos na mesma escola e Alice tinha um ano a mais que eu. Isso fazia uma enorme diferença para crianças ansiosas por crescer. Ainda mais quando a beleza dela começou a se salientar na roupa, no trato do longo cabelo domado pela trama das tranças e fitas coloridas, no tom bronzeado da pele sem espinhas. Sim, Alice era “beleza pura”, era “de se olhar”.

Alice não sangrou antes de nós, eu lembro. Suas regras demoraram a descer. A novidade corria solta entre as meninas quando chegava a vez de cada uma. Apesar disso, seu corpo muito cedo deu outros sinais hormonais. Muito antes de nós, os seios empinaram e as penugens cobriram as partes secretas. Muito cedo também ela descobriu que aquilo despertava o interesse dos meninos da sua idade. Contaram que certa vez os viram em fila no fundo da quadra de esportes apelando por uma chance de ver o que o botão, entreaberto, da blusa mostrava.

Enquanto descobria o fascínio que seu corpo em revolução exercia sobre os meninos, Alice também observava as reações incontroláveis no corpo dos meninos. Nunca acreditei muito neste boato. Talvez porque meu corpo ainda tão reto e sem graça não me permitisse verbalizar aquilo, mesmo quando ficamos sabendo da surra que levou do pai, e da penitência: missa todos os dias, com  pai-nosso e vinte ave-marias, de joelhos, ao fim de cada celebração. Nós todas saíamos e ela ficava com a freira a lhe vigiar. Os meninos não foram castigados. A curiosidade masculina era coisa da idade. Também foi por esse tempo que se intensificaram as leituras sobre a vida das santas, virgens, mártires, que escolheram a morte diante do risco de terem seus corpos profanados. Era preciso fortalecer o conceito de abstinência como prevenção contra um mundo desregrado.

Reencontrei Alice em outro colégio em outra cidade. Por esse tempo ela já era mulher feita e muito mais linda. Ela mesma me contou que a tal penitência veio pela sua ingenuidade em confessar para uma professora aquilo que ela nem sabia ser pecado. Só queria entender o que estava acontecendo com o seu corpo. Se era normal sentir aqueles arrepios quando os meninos invadiam seu corpo com o olhar.   Penso que poderiam ter tomado o fácil caminho da biologia, esclarecendo que um corpo adolescente naturalmente se prepara para a reprodução. Um processo que tem o desejo como exigência. Mas havia a sombra do medo pairando sobre o caminho. Disseram-lhe que era coisa do demônio que se apossava do corpo de algumas mulheres para provocar os homens e levá-las para o mau caminho. Aula sobre sexualidade humana, prazer, concepção, proteção… nem pensar. Isso poderia despertar os mais ingênuos, como se cada um já não vivesse os mesmos suspiros nas suas intimidades de corpos tímidos. Era mais confortável para os adultos se abster sobre o assunto, impondo a privação do conhecimento e da consciência sobre si mesmo.

Àquela altura Alice já estava convencida de que seu corpo delgado, de pernas alongadas, cintura marcada, bumbum empinado e os seios mais firmes e arredondados que uma mulher poderia desejar, de fato tinha sabor de pecado. A prova? o brilho nos olhos.  Depois, tinha o carnaval. Tinha seu pai e amigos (aqueles homens da Igreja) no meio do salão fazendo coro: “linda morena/ morena que me faz penar/ a lua cheia que tanto brilha/ não brilha tanto quanto o teu olhar”. Depois do carnaval vinham os dias calmos em que eles repetiam ao violão em noite de lua: “Esse corpo moreno/Cheiroso e gostoso/ Que você tem/É um corpo delgado/Da cor do pecado/Que faz tão bem”.

Hoje poderíamos considerar abuso o que aconteceu (se é que aconteceu) na quadra da escola entre meninos em plena puberdade. Contudo, o pior estava por vir. Ela ainda não tinha dezessete anos quando passou a ser assediada (cantada, dirão alguns homens) no caminho de casa, por um moço elegante. Um moço de família. Daqueles que moravam em “apartamento com porteiro e elevador”, e mantinham ao seu lado uma mulher sincera e merecedora do título de “madame antes do nome”. Em seguida vieram as flores, os presentes, as roupas caras.  Já no fim do ensino médio, quando o garoto mais fofo da escola se apaixonou perdidamente por ela, tragicamente ela disse não. Mesmo com toda a insistência da família que já tinha se afeiçoado ao menino bacana que volta e meia batia na sua porta para lhe dar aulas de matemática, inglês, português. Alice gostava dele de um jeito especial, mas já era muito tarde. Seu corpo não o merecia. Como confessar a ele os seus pecados?

O garoto fofo e eu seguimos para a mesma faculdade. Um dia ele me pediu o ombro para deitar o seu infortúnio. Foi quando uma amiga dos tempos de escola comentou que atendera no seu plantão de estágio uma jovem em estado avançado de infecção. Muito provavelmente em decorrência de um aborto clandestino. As fofocas chegaram rapidinho para contar que ela engravidara e recebera do namorado a clássica saída: homens não assumem uma criança sem ter certeza de ser o pai. Afinal o seu belo corpo já não era virgem quando se conheceram e isso era prova de que ela não era uma mulher sincera.

Vejam bem, não estou falando do século XVIII. Era início dos anos oitenta do século XX. Embora as feministas estivessem nas ruas na década anterior e já conhecessem a pílula, as solteiras não tinham acesso aos programas de saúde para mulheres, nada sabiam sobre a AIDS, os homens achavam a camisinha brochante, o teste de DNA ainda não estava disponível e aborto era crime.

Fomos juntos ao enterro da nossa bela Alice, cujo desespero escolheu o caminho da morte. Não houve benção para um corpo portador de múltiplos pecados. Nós, as sinceras, a abençoamos cheias de remorso. Algo nos dizia que aquela pálida beleza estendida entre rosas podia ser qualquer uma de nós, se fôssemos espontâneas e sinceras como Alice foi. Melhor dizendo, ali estava um pouco de cada uma de nós que fomos treinadas para não sentir ou silenciar o que sentimos.

Talvez eu não estivesse aqui precisando contar essa história triste e anacrônica (?), se o demônio e o deus punitivo não tivessem saltado dos púlpitos e livros sagrados para se inserirem nos assuntos em que as ciências naturais e humanas já explicam há muito tempo, abrindo alas para que as pessoas possam fazer escolhas e viver plenamente.

2020: que se cure o destino

 

Depois de um mergulho no mar, dos pulos sobre as ondas para uma sessão de descarrego, o primeiro caminho de 2020 me levou aos arredores da capital federal. Instalei-me por uns dias em um condomínio de classe média a poucos quilômetros do plano piloto, das mansões do lago e do moderno Noroeste. O lugar em que os novos remediados (como dizia minha avó) conseguem pagar por uma vida digna, com segurança e espaço para crianças exaurirem toda a sua energia em piscinas, quadras de esporte e parquinhos.

Duas observações me alfinetaram por esses dias. A primeira me chegou em um domingo à noite enquanto me sentei em um banquinho próximo à portaria tomando a fresca. É verão no planalto central e naquela noite uma brisa leve dava suavidade ao ar. Só quem vive em Teresina entende o quanto sabemos ouvir o vento quando a temperatura sobe.

Foi me sentar e começar a computar a quantidade de pessoas chegando de moto ou bicicleta, identificando-se na portaria como entregadores de produtos. Homens jovens em sua maioria. Cansei e perdi a conta. O certo é que a quantidade e o aspecto das pessoas me impressionaram e deixaram no meu cérebro aquela pulga impertinente que só sossega quando as palavras ganham o papel ou uma tela em branco. Seria isso que estão chamando liberdade?

A segunda me veio no parquinho do condomínio vendo o movimento das crianças de idades variadas, acompanhadas à distância por pais ou mães. Havia outras tantas mulheres grávidas ou com bebês de colo. Uma cena absolutamente normal, se não fosse um dia normal de trabalho e meu ouvido intrometido não escutasse. Ou, meu olhar indiscreto não visse. O fato é que ouvi e vi que muitos trabalhavam ali, com seus equipamentos eletrônicos, enquanto tomavam conta dos filhos. Faziam vendas, tomavam decisões ou alertavam as crianças de que precisavam subir para fechar um processo. E eu, que passei trinta anos entre as divisórias cinzas de um banco, fiquei balançada. Estaria mesmo a tecnologia a serviço da liberdade?

Inevitavelmente me peguei pensando em tudo que se lê por aí a respeito da revolução digital, do fim do emprego, do fim da classe trabalhadora, sobre o capitalismo do século XXI. Não precisa ser expert em economia para perceber que há nos nossos dias um processo profundo de mutação no mundo do trabalho com desaparecimento de setores e o uso acessível da tecnologia promovendo novas relações de trabalho. Na base de tudo, talvez, está a financeirização que reduz o interesse do capital na produção material em favor da comodidade da autorreprodução abstrata, seguindo seu clássico caminho de acumulação de riqueza para quem o detém.

O que não parece ser novidade é o que me dizem os rostos objetos da minha observação. Se o mundo do emprego com direitos, do sindicalismo e de garantia de bem estar e ascensão social cede seu lugar ao individualismo arrogante proposto pelo pensamento neoliberal, que leva as pessoas a se enxergarem como livres para alcançar a prosperidade pela autoexploração, a luta de classes está mais viva que nunca e os privilegiados de sempre estão vencendo. É só subir na cobertura e passar a vista sobre as áreas nobres iluminadas, olhar para o lado e ver os que utilizam o aplicativo i-food no seu smartphone de última geração (pago em prestações) e levantar o rosto para dizer boa noite aos que entregam fast-food aos domingos. Sem esquecer os invisíveis, aqueles que não enxergamos da cobertura e que nem sequer conseguem uma vaga na cadeia produtiva dos pejotizados, intermitentes, flexíveis, temporários ou informais. Força do destino?

Para seu espanto, velho Marx, não há novidade em 2020. O novo mundo eleito e aplaudido pelo povo (pasme!) continua mantendo a riqueza onde sempre esteve sem questionar a origem ou o quanto o tempo de cada um contribui na geração. Garante trabalho e acomodação aos que tiveram oportunidade de educação de qualidade (afinal alguém tem que inovar e fazer a roda avançar) e explora aqueles que nasceram na base da pirâmide (seja lá que nome tenham), perpetuando a imensa desigualdade. Sem acesso à educação, são ainda eles que se matam nas ruas aos domingos com seus rostos exaustos em busca do paraíso futuro, substituindo o macacão manchado de graxa pelo jeans estiloso e camiseta (made in China) onde se lê: “Deus é mais”.