Estou retornando de uma viagem no tempo e tenho uma longa história para contar. Ando meio tonta desde que me jogaram neste trem desgovernado rumo à Idade das trevas (que por aqui nem sequer existiu, né?), por isso vamos com calma. O caso é que ouvi uma marchinha de carnaval antes de dormir e acordei com Alice no pensamento. Não, não se trata da personagem de Lewis Carroll, mas de uma menina que eu conheci. Teria sido um sonho? Não sei. Deixo para a imaginação de vocês.
Estudávamos na mesma escola e Alice tinha um ano a mais que eu. Isso fazia uma enorme diferença para crianças ansiosas por crescer. Ainda mais quando a beleza dela começou a se salientar na roupa, no trato do longo cabelo domado pela trama das tranças e fitas coloridas, no tom bronzeado da pele sem espinhas. Sim, Alice era “beleza pura”, era “de se olhar”.
Alice não sangrou antes de nós, eu lembro. Suas regras demoraram a descer. A novidade corria solta entre as meninas quando chegava a vez de cada uma. Apesar disso, seu corpo muito cedo deu outros sinais hormonais. Muito antes de nós, os seios empinaram e as penugens cobriram as partes secretas. Muito cedo também ela descobriu que aquilo despertava o interesse dos meninos da sua idade. Contaram que certa vez os viram em fila no fundo da quadra de esportes apelando por uma chance de ver o que o botão, entreaberto, da blusa mostrava.
Enquanto descobria o fascínio que seu corpo em revolução exercia sobre os meninos, Alice também observava as reações incontroláveis no corpo dos meninos. Nunca acreditei muito neste boato. Talvez porque meu corpo ainda tão reto e sem graça não me permitisse verbalizar aquilo, mesmo quando ficamos sabendo da surra que levou do pai, e da penitência: missa todos os dias, com pai-nosso e vinte ave-marias, de joelhos, ao fim de cada celebração. Nós todas saíamos e ela ficava com a freira a lhe vigiar. Os meninos não foram castigados. A curiosidade masculina era coisa da idade. Também foi por esse tempo que se intensificaram as leituras sobre a vida das santas, virgens, mártires, que escolheram a morte diante do risco de terem seus corpos profanados. Era preciso fortalecer o conceito de abstinência como prevenção contra um mundo desregrado.
Reencontrei Alice em outro colégio em outra cidade. Por esse tempo ela já era mulher feita e muito mais linda. Ela mesma me contou que a tal penitência veio pela sua ingenuidade em confessar para uma professora aquilo que ela nem sabia ser pecado. Só queria entender o que estava acontecendo com o seu corpo. Se era normal sentir aqueles arrepios quando os meninos invadiam seu corpo com o olhar. Penso que poderiam ter tomado o fácil caminho da biologia, esclarecendo que um corpo adolescente naturalmente se prepara para a reprodução. Um processo que tem o desejo como exigência. Mas havia a sombra do medo pairando sobre o caminho. Disseram-lhe que era coisa do demônio que se apossava do corpo de algumas mulheres para provocar os homens e levá-las para o mau caminho. Aula sobre sexualidade humana, prazer, concepção, proteção… nem pensar. Isso poderia despertar os mais ingênuos, como se cada um já não vivesse os mesmos suspiros nas suas intimidades de corpos tímidos. Era mais confortável para os adultos se abster sobre o assunto, impondo a privação do conhecimento e da consciência sobre si mesmo.
Àquela altura Alice já estava convencida de que seu corpo delgado, de pernas alongadas, cintura marcada, bumbum empinado e os seios mais firmes e arredondados que uma mulher poderia desejar, de fato tinha sabor de pecado. A prova? o brilho nos olhos. Depois, tinha o carnaval. Tinha seu pai e amigos (aqueles homens da Igreja) no meio do salão fazendo coro: “linda morena/ morena que me faz penar/ a lua cheia que tanto brilha/ não brilha tanto quanto o teu olhar”. Depois do carnaval vinham os dias calmos em que eles repetiam ao violão em noite de lua: “Esse corpo moreno/Cheiroso e gostoso/ Que você tem/É um corpo delgado/Da cor do pecado/Que faz tão bem”.
Hoje poderíamos considerar abuso o que aconteceu (se é que aconteceu) na quadra da escola entre meninos em plena puberdade. Contudo, o pior estava por vir. Ela ainda não tinha dezessete anos quando passou a ser assediada (cantada, dirão alguns homens) no caminho de casa, por um moço elegante. Um moço de família. Daqueles que moravam em “apartamento com porteiro e elevador”, e mantinham ao seu lado uma mulher sincera e merecedora do título de “madame antes do nome”. Em seguida vieram as flores, os presentes, as roupas caras. Já no fim do ensino médio, quando o garoto mais fofo da escola se apaixonou perdidamente por ela, tragicamente ela disse não. Mesmo com toda a insistência da família que já tinha se afeiçoado ao menino bacana que volta e meia batia na sua porta para lhe dar aulas de matemática, inglês, português. Alice gostava dele de um jeito especial, mas já era muito tarde. Seu corpo não o merecia. Como confessar a ele os seus pecados?
O garoto fofo e eu seguimos para a mesma faculdade. Um dia ele me pediu o ombro para deitar o seu infortúnio. Foi quando uma amiga dos tempos de escola comentou que atendera no seu plantão de estágio uma jovem em estado avançado de infecção. Muito provavelmente em decorrência de um aborto clandestino. As fofocas chegaram rapidinho para contar que ela engravidara e recebera do namorado a clássica saída: homens não assumem uma criança sem ter certeza de ser o pai. Afinal o seu belo corpo já não era virgem quando se conheceram e isso era prova de que ela não era uma mulher sincera.
Vejam bem, não estou falando do século XVIII. Era início dos anos oitenta do século XX. Embora as feministas estivessem nas ruas na década anterior e já conhecessem a pílula, as solteiras não tinham acesso aos programas de saúde para mulheres, nada sabiam sobre a AIDS, os homens achavam a camisinha brochante, o teste de DNA ainda não estava disponível e aborto era crime.
Fomos juntos ao enterro da nossa bela Alice, cujo desespero escolheu o caminho da morte. Não houve benção para um corpo portador de múltiplos pecados. Nós, as sinceras, a abençoamos cheias de remorso. Algo nos dizia que aquela pálida beleza estendida entre rosas podia ser qualquer uma de nós, se fôssemos espontâneas e sinceras como Alice foi. Melhor dizendo, ali estava um pouco de cada uma de nós que fomos treinadas para não sentir ou silenciar o que sentimos.
Talvez eu não estivesse aqui precisando contar essa história triste e anacrônica (?), se o demônio e o deus punitivo não tivessem saltado dos púlpitos e livros sagrados para se inserirem nos assuntos em que as ciências naturais e humanas já explicam há muito tempo, abrindo alas para que as pessoas possam fazer escolhas e viver plenamente.