Depois de um mergulho no mar, dos pulos sobre as ondas para uma sessão de descarrego, o primeiro caminho de 2020 me levou aos arredores da capital federal. Instalei-me por uns dias em um condomínio de classe média a poucos quilômetros do plano piloto, das mansões do lago e do moderno Noroeste. O lugar em que os novos remediados (como dizia minha avó) conseguem pagar por uma vida digna, com segurança e espaço para crianças exaurirem toda a sua energia em piscinas, quadras de esporte e parquinhos.
Duas observações me alfinetaram por esses dias. A primeira me chegou em um domingo à noite enquanto me sentei em um banquinho próximo à portaria tomando a fresca. É verão no planalto central e naquela noite uma brisa leve dava suavidade ao ar. Só quem vive em Teresina entende o quanto sabemos ouvir o vento quando a temperatura sobe.
Foi me sentar e começar a computar a quantidade de pessoas chegando de moto ou bicicleta, identificando-se na portaria como entregadores de produtos. Homens jovens em sua maioria. Cansei e perdi a conta. O certo é que a quantidade e o aspecto das pessoas me impressionaram e deixaram no meu cérebro aquela pulga impertinente que só sossega quando as palavras ganham o papel ou uma tela em branco. Seria isso que estão chamando liberdade?
A segunda me veio no parquinho do condomínio vendo o movimento das crianças de idades variadas, acompanhadas à distância por pais ou mães. Havia outras tantas mulheres grávidas ou com bebês de colo. Uma cena absolutamente normal, se não fosse um dia normal de trabalho e meu ouvido intrometido não escutasse. Ou, meu olhar indiscreto não visse. O fato é que ouvi e vi que muitos trabalhavam ali, com seus equipamentos eletrônicos, enquanto tomavam conta dos filhos. Faziam vendas, tomavam decisões ou alertavam as crianças de que precisavam subir para fechar um processo. E eu, que passei trinta anos entre as divisórias cinzas de um banco, fiquei balançada. Estaria mesmo a tecnologia a serviço da liberdade?
Inevitavelmente me peguei pensando em tudo que se lê por aí a respeito da revolução digital, do fim do emprego, do fim da classe trabalhadora, sobre o capitalismo do século XXI. Não precisa ser expert em economia para perceber que há nos nossos dias um processo profundo de mutação no mundo do trabalho com desaparecimento de setores e o uso acessível da tecnologia promovendo novas relações de trabalho. Na base de tudo, talvez, está a financeirização que reduz o interesse do capital na produção material em favor da comodidade da autorreprodução abstrata, seguindo seu clássico caminho de acumulação de riqueza para quem o detém.
O que não parece ser novidade é o que me dizem os rostos objetos da minha observação. Se o mundo do emprego com direitos, do sindicalismo e de garantia de bem estar e ascensão social cede seu lugar ao individualismo arrogante proposto pelo pensamento neoliberal, que leva as pessoas a se enxergarem como livres para alcançar a prosperidade pela autoexploração, a luta de classes está mais viva que nunca e os privilegiados de sempre estão vencendo. É só subir na cobertura e passar a vista sobre as áreas nobres iluminadas, olhar para o lado e ver os que utilizam o aplicativo i-food no seu smartphone de última geração (pago em prestações) e levantar o rosto para dizer boa noite aos que entregam fast-food aos domingos. Sem esquecer os invisíveis, aqueles que não enxergamos da cobertura e que nem sequer conseguem uma vaga na cadeia produtiva dos pejotizados, intermitentes, flexíveis, temporários ou informais. Força do destino?
Para seu espanto, velho Marx, não há novidade em 2020. O novo mundo eleito e aplaudido pelo povo (pasme!) continua mantendo a riqueza onde sempre esteve sem questionar a origem ou o quanto o tempo de cada um contribui na geração. Garante trabalho e acomodação aos que tiveram oportunidade de educação de qualidade (afinal alguém tem que inovar e fazer a roda avançar) e explora aqueles que nasceram na base da pirâmide (seja lá que nome tenham), perpetuando a imensa desigualdade. Sem acesso à educação, são ainda eles que se matam nas ruas aos domingos com seus rostos exaustos em busca do paraíso futuro, substituindo o macacão manchado de graxa pelo jeans estiloso e camiseta (made in China) onde se lê: “Deus é mais”.