Mais um domingo se foi. Sem missa, sem praia nem céu de anil como descrevia Raul. Tinha sangue nos jornais. Um cheiro de morte varre o planeta. Tenho passado dias rondando ao redor da sala, sem lugar para ir. Feito Caetano no exílio, olhando as nuvens na varanda em busca de objetos voadores. Enquanto esfregava o chão, me peguei cantando: “oh oh seu moço do disco voador, me leve com você pra onde você for”.

Por fim, consegui me sentar para tentar escrever. Queria falar dos vinhos da Geórgia, dos poetas do Azerbaijão ou da minha última aventura em busca de praias desconhecidas no litoral do Ceará. Porém esse mundo está agora tão distante que parece que nunca existiu. Com os músculos exaustos, a primeira coisa que me ocorre é o conhecido texto de Virginia Woolf, em que ela descreve sua luta contra o “O Anjo do Lar”. Sim, como Virginia, precisei matar o “Anjo da Limpeza” em troca de concentração para escrever. Afastá-lo com uma conversa séria, melhor dizendo. Afinal é difícil matar um fantasma, convenhamos. O fato é que ele se instalou no meio da sala a me provocar. Herdou do seu antecedente o jeitão de achar que existem padrões a serem seguidos pelas mulheres, em tudo que elas produzem, para que assim se reconheça a sua doce face feminina.

Sim, não vou aliviar os meus privilégios. Para tornar compreensível esta história devo dizer que, desde que recebi o primeiro salário e montei uma casa, reservo parte da minha renda mensal para pagar uma pessoa que executa os serviços domésticos que eu abomino. Bom, o certo é que sem ela estou há quarenta dias sob vigilância dele, tendo que olhar para todos os cantos da casa.

Nunca fui de acordar cedo. Durmo tarde. De repente, mal o sol brilha na fresta da persiana, levanto-me. Preciso alongar. Articulações enrijecidas pelos anos na mesma posição exigem atenção especial. Lá se foram cinquenta minutos em que as três sequências do Lian Gong, no vídeo chinês, me salvam. Um banho!  Necessário, estou suando às bicas. Quem disse que o clima desta terra respeita a chuva? Faço um café! Urgente… Obviamente, o dia não desperta sem ele. Ufa! Enfim saciada, leve como uma pluma, encontro meu lugar no escritório. Hoje vai…

Não vai. O Anjo da Limpeza toca de leve o meu ombro para me lembrar que a roupa suja no cesto precisa chegar até à máquina de lavar. Levanto-me. Providencio: roupa bem distribuída, sabão, amaciante, programa, nível da água, “start”. Sento-me novamente. Escrevo a primeira palavra… Sinto o seu bafo quente no meu pescoço. O que foi desta vez? O interfone está tocando… O porteiro avisa sobre as compras que chegam. Pronto! Acabou o dia. Nada é pior do que a tensão diante de várias sacolas de compras que podem estar infestadas de vírus. Peço licença ao poeta Paulo Machado e grito:  Fazer poemas é fácil! Amordaçar lobos é higienizar compras em tempos de Corona.

Sem graça, engulo o jantar. Dedico algum tempo à meditação para acalmar mente. Leio. Vejo séries. Reorganizo a agenda. Durmo. Acordo no meio da noite. Durmo novamente. No sonho, estarei desperta no dia que se segue para cumprir item por item do planejamento.

Repito o ritual de despertar. Corro para as redes sociais cheia de entusiasmo. Hoje vai…  afinal “Shakespeare escreveu Rei Lear em quarentena”, alguém me diz.  “Newton elaborou a teoria da gravidade durante a peste” diz o próximo post. Na TL dos amigos pipocam dicas “sobre criatividade na quarentena”, convites para “lives”, chamadas para antologias, saraus virtuais etc.

Eis que o Anjo no centro da sala me aponta os banheiros, as teias de aranha nos cantos do forro, a poeira sobre os livros. Isso sem falar na cozinha, que por absoluta falta de intimidade, ficou entregue aos meus companheiros de quarentena. Eles sujam. Eles limpam.  É certo, embora ninguém mencione, que Shakespeare e Newton contavam com assessoras silenciosas organizando cada detalhe das suas vidas mundanas. Suas mentes se dedicavam inteiramente ao estudo e à criação. Inveja é um sentimento corrosivo.  As dicas e convites me irritam! Grito: não preciso de ideias dos outros… preciso de tempo! preciso de paz!

Encontro refúgio na leitura, como sempre.  Chama minha atenção um artigo de uma professora da Universidade de Toronto, pesquisadora em áreas de guerras e conflitos, escrito para seus pares acadêmicos, com o título “Porque você deveria ignorar toda a pressão para ser produtivo agora”… Devoro.  Um alívio enorme invade todo o meu ser. Enfim, alguém entendeu exatamente o que eu sentia e me diz, com todas as letras, que eu não estou fracassando.

Na mesma semana em que li o artigo, uma pessoa especial me diz para pensar naquele brinquedinho indicado para crianças com menos de dezoito meses. Aqueles em que as peças têm formas diversas (quadrados, triângulos, retângulos etc.) e a base tem as mesmas formas vazadas para encaixe. Um objeto quadrado jamais se encaixaria no triângulo vazado, certo? Por que não pensei nisso antes?

Estamos todos em processo de aprendizagem. Sentei-me ao lado do Anjo na sala. Disse-lhe, claramente, que a casa não precisa estar brilhando como antes para que eu possa me sentar no escritório, que suas antigas convicções já não atendem às novas questões.  Faríamos a partir dali algumas inversões na ordem das coisas. Montamos um time. No movimento descubro que cuidar do lugar que habito, no meu tempo e sem o peso da obrigação ou da raiva que carrego pelos anos, é cuidar de mim. Um cuidado que pode se revelar prazeroso. Espaço organizado, meu corpo (e a mente como parte dele) se libera para trilhar o caminho da adaptação ao que acaba de nascer.

Talvez assim seja possível lidar com a tristeza de um mundo caótico lá fora. Lutamos contra dois vírus: o que provoca a Covid-19 e o que infecta a política interna de saúde pública, de economia e ambiental. Em ambos os casos os inimigos são perigosos e nos obrigam a lutar pelo direito de respirar. Sim, embora de forma inteiramente desigual, obrigam a todos nós.  O meu pequeno time instalado em um prédio confortável e os milhões que se arriscam nos serviços essenciais ou em filas para receber um pequeno auxílio. Se esses não ficarem bem, ninguém ficará. Afetados por este ou por outros minúsculos agentes pulsantes na natureza que aprendemos a desrespeitar.

Caminho até a varanda. O Anjo está discreto hoje. Lá embaixo o ronco das motos é insistente. Sinto a brisa. Inspiro. Expiro. Já é muito. Compreendo que viver exigirá muito mais de mim daqui por diante. O planeta nos sacode de um jeito nunca visto pelos humanos. Já fez algo semelhante outras vezes, e a vida tomou novas formas. Por enquanto vamos vivendo um dia de cada vez.