Luana Sena
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Como já dizia Odair

É preciso dizer o quanto essa entrevista do João Moreira Salles foi transformadora para mim. A Caravana Piauí, aliás, como um todo, passou por aqui deixando em mim aquela sensação que eu só sentia nos congressos – a vontade de que cada minuto, de tão intenso, fosse eterno. Mas nada vai permanecer no estado em que está.

Durante tanto tempo eu encarei a vida com uma visão determinista – o que é irônico se pensarmos que a única certeza que se tem diz respeito ao estado inacabado das coisas. Por que evitar a vida em todas as suas possibilidades, inconstâncias e incertezas se é ela uma experiência tão única e passageira? Tempo, tempo, tempo, tempo: és um dos deuses mais lindos.

Eu estava lá, ao lado do João, enquanto ele falava com serenidade e sabedoria sobre os instantes, os intensos e as paixões. O que, afinal, te sobra além das coisas casuais? “O intenso passa”, dizia ele. E é fácil encontrar sentido quando a vida tá a volume máximo. O duro, continuava, é inventar maneiras de ser feliz na vida cotidiana. “No Intenso Agora é sobre isso: sobre a alegria, a perda da alegria e o que se deve fazer para recuperá-la”.

Eu ouvia essas coisas de João com um leve sorrisinho e inquietude: estaria eu vivendo o meu intenso? Quando eu vou saber se o meu intenso ainda está por vir ou, quem sabe, já passou?

Só quem sabe o que é a perda inesperada da alegria pode entender o desespero que se passa para tentar reencontrá-la. Ressignificar. Revisar. Recontar – estive pensando sobre como falar é também uma forma de reviver, e mudar o modo de narrar (como um editor da própria vida) é crucial para alterar a importância que damos as coisas. Transformar o tema antes principal em mera nota explicativa ali no rodapé.

Eu não sei se o meu intenso é agora, nem o quanto de tempo ele pode durar – talvez passe como um furacão, talvez venha tão de leve que nem desperte, no momento, uma emoção. A diferença é só minha consciência de que uma hora, eu sei, ele vai acabar. E é um alento perceber, no fundo de nós, toda a graça existente em se reinventar.

Mil vezes boa noite

Filme bom é aquele que, além de emocionar nossa alma, desperta o desejo na gente de socializar com os amigos. Uma vontade premente de pegar o celular e ligar pra Deus e o mundo, sugerindo que não deixem de ver, de jeito nenhum, tal produção cinematográfica. Daqueles que chegamos, inclusive, a apelar sutilmente: “Não deixe de assistir antes de morrer”. Diante da imprevisibilidade do futuro, a pessoa não perde tempo e corre atrás. Mas qual filme específico, desembucha logo, deixou este cronista tão empolgado assim? Trata-se de Mil vezes boa noite, do cineasta norueguês Erik Poppe, lançado em 2013, um drama que retrata a vida perigosa de uma fotojornalista especializada guerra (Rebecca), interpretada magistralmente pela atriz Juliette Binoche.

O começo da história é apavorante, de tirar o fôlego do espectador. Uma das cenas mais fortes do filme. No Afeganistão, Rebecca presencia o ritual macabro de uma mulher-bomba, desde a simulação do enterro em cova até a instalação de explosivos no corpo. Achando pouco, solicita permissão para acompanhá-la na missão suicida. A tensão dentro do carro é grande, com ela registrando os instantes que antecedem o atentado, inclusive o momento da explosão no mercado, apinhado de gente, resultando em várias mortes e um monte de feridos, ela escapando por sorte. Mesmo tonta e assustada, quase não se aguentando em pé, Rebecca dispara sua máquina a fim de documentar tudo. Aqui surge indagação pra lá de pertinente: é ético buscar a beleza na destruição e na morte? Ou, ainda, vale a pena colocar a vida em risco pra saciar a fome de cadáveres da grande mídia e dos leitores dessas notícias fúnebres?

De volta ao seio familiar, a fotógrafa trava uma luta difícil para se recuperar das cicatrizes físicas e dos traumas psicológicos, até porque se sente culpada pelo atentado. Mal sabe ela que a peleja mais dura será reconquistar a confiança do marido e das duas filhas, que sofrem com suas prolongadas ausências cobrindo guerras pelo mundo. O contato com eles é feito, aliás, mais por telefonema do que presencialmente. Daí o enigmático título do filme, referência à quantidade de ligações dada, à noite, aos entes queridos. Num diálogo com Step, filha mais velha, esta a indaga por que começou a tirar fotos de guerra, recebendo de Rebecca a seguinte resposta: “Raiva”, reportando-se à indiferença do mundo em relação ao massacre de inocentes, sendo as fotos que tira instrumento importante na denúncia dessa barbárie. Os massacres hoje na síria tornam a película extremamente atual.

Optando pela família, Rebecca resolve aposentar a máquina de fotografia, sob protesto da editora do jornal, e dar uma reviravolta na vida. Sua decisão a aproximou das filhas e trouxe de volta o amor de Marcus (Nikolaj Coster-Waldau), com o casal retomando o idílio amoroso de outrora. Mas o convite de um amigo, para cobrir um acampamento de refugiados no Quênia, põe tudo a perder. Ela só aceita por garantirem não haver conflito armado e por insistência da própria filha, que deseja apresentar trabalho na escola sobre esse tema. Ao chegar lá, a história é outra, o acampamento invadido por tribos inimigas e a matança correndo solta. Mesmo pondo a vida de Step em perigo, Rebecca saca a máquina e não parar de fotografar. Ao saber do ocorrido, o marido sentencia, revoltado: “Quero você fora desta casa”. Triste de dar pena, a coitada apenas murmura: “Comecei algo de que não posso fugir”.

E qual o desfecho do filme? Rebecca retorna a Cabul para cobrir, a pedido do jornal, o ritual preparatório das mulheres-bombas, deparando-se desta vez com uma garota quase da idade de sua filha. E aí? Aí que não sou estraga-prazer pra contar o final, cena que embrulha nosso estômago em definitivo.

Será que não sou capaz de amar?

por Ananda Sampaio

Será que não sou capaz de amar? Essa é a pergunta que me faço quando olho para ela. A outra, presa do lado de lá do espelho. Chego do trabalho, corro para o banheiro, faço xixi, tiro a roupa e quando me distraio lá está ela, em pelos, também surpresa quando cruza o olhar com o meu. O momento é solene. Viro de frente, miro na curvatura dos seios, no ventre e acho bonito demais esse corpo que é só raiz fincada à terra. Os movimentos ficam lentos. Especulativos.

A biologia do meu corpo é uma sinfonia de hormônios, por isso pouco harmônica – um leva e traz de sentimentos, sargaços, sangue. Estou quase na idade de Cristo… E a vontade de ser mãe ainda não chegou. Que ser apequenado eu sou diante da fertilidade de meu útero. Vivo satisfeita e ocupada nessa relação comigo mesma, presa a meu ego. Do outro lado da porta ninguém me espera, não há choro de bebê a me apressar e nem fome a ser morta. Estou só. Concedo-me um banho demorado com direito a reflexões de botequim enquanto lavo o cabelo. Ainda não estou pronta para deixar de ser filha. Estou presa à criança que fui, irremediavelmente. Imaturamente. Não quero disfarçar meu desconhecimento sobre tudo. Tampouco oferecer falsa proteção.

Nas festas de família há sempre alguém a perguntar a minha idade e há também quem me lembre da diminuição dos óvulos e da dificuldade de engravidar após os trinta e cinco. Mais uma vez a biologia a me atormentar, depois dos trinta e cinco dizem, incessantemente, que serei menos mulher. E pergunto silenciosamente, o que me tornarei então? Não sei, só sei que quero ter tempo para estragar nas madrugadas, como se a finitude de tudo não me doesse. E a consciência da beleza do instante presente fosse real em mim.

Fato é que nunca a tive, nunca senti a dor do parto. Contudo, ela está lá, segue atrás de mim, a criança. Me olha e calada observa meus movimentos, quase sempre vagos, no apartamento. Sinto-a até me tocar. Às vezes é o choro dela que me acorda no meio da noite. Não sei se chora de fome, não sei se chora de pavor. Contudo, ela está lá.

Sento, acendo um cigarro. Fumo sem pressa e sem medo. O gato se esfrega em minhas canelas e o desejo de me desdobrar em outro ser não chega. A campainha segue silenciosa. Ninguém bate à porta. A criança está ao meu lado agora, se aproxima de mim. E também olha pela janela e enxerga junto comigo todas as incertezas que pairam entre o céu e a terra. E juntas pensamos, como é pobre, meu Deus, a nossa vã filosofia

Teresina frienta

Dizendo, as pessoas nem acreditam: Teresina está fria ultimamente. Não é gozação, mas a pura verdade. Distante dos 40 graus costumeiros, temos agora somente uns 25. Tudo por conta das chuvas quase diárias. Não uma chuvinha qualquer, mas toró dos bons, com direito a relâmpagos e trovoadas de meter medo. Daí o outrora nome de Chapada do Corisco dado à nossa capital. Chuvaceiro dos grandes, como diria Pero Vaz de Caminha, resultando um friozinho gostoso pra danar, convite irrecusável a ficarmos em casa. De preferência, enrolados numa boa coberta e deitados na cama ou, melhor ainda, em rede de Pedro II. Tendo a amada juntinho, pernas e braços entrelaçados, aí não levantamos mesmo, nem sob intimação da justiça. Aceitamos no máximo, dando uma pausa no sono, e olhe lá, um café com leite pra esquentar o esqueleto. Sendo chocolate, o nocaute é fatal, difícil recuperar tão cedo.

Esse tempo acorda em mim lembranças da adolescência, lá na Clodoaldo Freitas, rua próxima ao estádio Lindolfo Monteiro, quando aproveitava pra banhar de chuva, nas goteiras de casa ou a céu aberto, pouco ligando aos perigos dessas peraltices em pleno inverno. Inesquecível eram as peladas, debaixo de tromba d’água, com os amigos da redondeza, a bola de plástico quase invisível e todos roxos de frio, os dentes trincando sem parar. Deitar numa prancha (isopor/madeira), ou usando apenas o corpo, e ser levado pela correnteza, livre como peixe, não tinha brincadeira melhor. Penoso era voltar para casa depois, encarar a palmatória de Seu Tomé e uma crise de asma de tirar o fôlego. Prometer que não faria mais aquilo até que prometia – quem gosta de sofrer? -, mas bastava a chuva despontar no horizonte que eu escapulia novamente.

Diferentemente de outros brasileiros, saudamos a chuva, no inverno ou a qualquer momento, com muita festança, dizendo que está “bonito pra chover”, expressão típica dos piauienses. Agradecida, a natureza reage de imediato, logo no dia seguinte, árvores despertando verdinhas em várias tonalidades. A secura no campo dá lugar à vida brotando feliz da terra, ao cheiro delicioso do chão e à sinfonia marcante dos pássaros. Até o estado de espírito das pessoas, inclusive nestes tempos sombrios, melhora significativamente, tornando-as mais otimistas. Sem falar de alegres também, sorriso escancarado no rosto. Sinônimo de boa lavoura e fartura na mesa, segundo os camponeses. Evoca ainda poemeto de Gabriel Chalita, escritor paulista: “Ora a chuva poetiza a vida, ora o sol,/ às vezes brincam de chegar juntos. Às vezes/ trazem o arco-íris para completar o espetáculo./ e vão embora. E ficam em nós”.

Convite irrecusável, este dos pés d’água, para ler livros e ver filmes bons, daqueles que despertam na gente o prazer da existência, fora uma tolerância maior com os absurdos do mundo. Da literatura local, o heroísmo comovedor de Mandu Ladino, tão bem retratado por Anfrísio  Neto Lobão, guerreiro indígena que enfrentou os desmandos dos fazendeiros na Capitania do Piauí durante nossa colonização, começo do século XVIII. Das letras nacionais, nada menos que Novos contos eróticos, antologia de textos “pornográficos” de Dalton Trevisan, autor curitibano que desnuda, sem papas na língua, as taras do homem brasileiro, socando o provincianismo nacional com um jab de direita. Entre os filmes, destaco a nova versão de Madame Bovary (2015), da diretora Sophie Barthes, inspirado no romance homônimo de Gustave Flaubert, história centrada nos desenredos amorosos e final trágico de Emma Bovary, traída pelos próprios sentimentos.

Ser autêntico em um mundo de iguais

por Wendy Augustus Cavalcante

 

Das poucas vezes que chove em Teresina, quando bate aquele clima meio frio e nostálgico, eu fico me questionando sobre a minha existência. Será que estou vivendo ou apenas estou no automático fazendo as mesmas coisas de sempre? Passando pelas ruas vejo sempre as pessoas com pressa, com algo para fazer, e naquele instante novamente me pergunto: O que eu vou fazer da vida? Essa pergunta me persegue todos os dias. As vezes me bate um desespero, um alarme de urgência que diz “FAÇA ALGO”, mas eu continuo parado, olhando as pessoas ao meu redor, perdido sem saber qual caminho seguir.

Talvez você já tenha passado por algo assim ou talvez você esteja seguindo perfeitamente seu projeto de vida. O filósofo francês Jean-Paul Sartre defendia que ser autêntico é seguir um projeto de vida. A maioria das pessoas tem um padrão de querer ter um bom emprego, um ótimo salário e casar, por exemplo. Se tudo estiver indo bem, sem mudar uma vírgula de lugar: parabéns!. Você chegou no seu elevado nível de autenticidade. Por mais interessante que seja, eu ainda prefiro acreditar que ser autêntico é justamente não ter um projeto. Não que não seja preciso, às vezes até é. Outro filósofo, o dinamarquês Kierkegaard, afirmava que o ser autêntico é aquele que vive e procura possibilidades, sendo esse o motor da vida. Eu prefiro esse pensamento. No mundo de hoje, repleto de imediatismo, de multidão e de uma autoafirmação constante, as pessoas procuram por conforto, e não sei por que, mas é confortante quando você vê que esta seguindo os mesmos passos do seu primo que passou para um concurso e ganha muito dinheiro. Sabe por que é tão reconfortante? Porque nós temos medo de olhar para nós mesmos; medo de olhar e perceber que falta algo; medo de ter consciência das nossas vontades. Por isso, às vezes é melhor fechar os olhos e só seguir a multidão. A verdade é que vivemos em um mundo de iguais, de pessoas que procuram ser tudo, menos elas mesmas.

A midia reforça esse tipo de padrão, ao colocar as pessoas em caixas sem embalagens. Os jornais e a televisão estão exteriorizando situações, pessoas, momentos, mas acabam esquecendo o que é seriedade, pois qualquer coisa vira notícia. Assim, o homem acaba esquecendo de si, da sua verdade, pois a sua verdade não é aquela que está sendo exposta, a verdade é sua. Dessa forma, o individuo não reflete mais sobre si ou sobre sua existência, se deixando consumir por um amontoado de sub verdades ou falsas mentiras. O mundo vira um grande espetáculo, porém você não é o protagonista, e aquele que não desfruta da sua existência acaba sendo um mero espectador da sua própria vida. Dessa forma, ele pode até conhecer o mundo, mas não conhece a si mesmo.

Por mais que algumas pessoas estejam vazias, perdidas, angustiadas ou até mesmo desesperadas, por mais que a maioria das vezes continuam inertes em suas próprias vidas, não quer dizer que elas não possam desfrutar das suas possibilidades de vida. O ser humano é grande, ele tem um universo inteiro dentro de si, cada corpo celeste é uma possibilidade, somos feitos e consumidos por essa energia que se chama vida. E viver, meus amigos, não é só estar vivo, organicamente falando. Viver é saber que somos pequenos corporeamente, mas grandes internamente. Podemos até ser todos iguais e talvez isso não mude por mais que vivamos em um mundo assim, ainda podemos olhar para esse mundo de uma forma diferente, com amor, carinho e empatia. É nisso que quero acreditar a cada dia que acordo: que não importa o que aconteça ou como estou parado assistindo as pessoas seguirem suas vidas, quero acreditar que na manhã seguinte haverá um mundo cheio de possíveis projetos, possíveis realizações, acreditar que mesmo sendo diferente, eu posso ser feliz também, acreditar que talvez um dia eu não sofra por estar indo contra a multidão. No final temos que acreditar que coisas boas vão acontecer, porque o que nos motiva e nos move, é a esperança de um mundo melhor.