por Ananda Sampaio

Será que não sou capaz de amar? Essa é a pergunta que me faço quando olho para ela. A outra, presa do lado de lá do espelho. Chego do trabalho, corro para o banheiro, faço xixi, tiro a roupa e quando me distraio lá está ela, em pelos, também surpresa quando cruza o olhar com o meu. O momento é solene. Viro de frente, miro na curvatura dos seios, no ventre e acho bonito demais esse corpo que é só raiz fincada à terra. Os movimentos ficam lentos. Especulativos.

A biologia do meu corpo é uma sinfonia de hormônios, por isso pouco harmônica – um leva e traz de sentimentos, sargaços, sangue. Estou quase na idade de Cristo… E a vontade de ser mãe ainda não chegou. Que ser apequenado eu sou diante da fertilidade de meu útero. Vivo satisfeita e ocupada nessa relação comigo mesma, presa a meu ego. Do outro lado da porta ninguém me espera, não há choro de bebê a me apressar e nem fome a ser morta. Estou só. Concedo-me um banho demorado com direito a reflexões de botequim enquanto lavo o cabelo. Ainda não estou pronta para deixar de ser filha. Estou presa à criança que fui, irremediavelmente. Imaturamente. Não quero disfarçar meu desconhecimento sobre tudo. Tampouco oferecer falsa proteção.

Nas festas de família há sempre alguém a perguntar a minha idade e há também quem me lembre da diminuição dos óvulos e da dificuldade de engravidar após os trinta e cinco. Mais uma vez a biologia a me atormentar, depois dos trinta e cinco dizem, incessantemente, que serei menos mulher. E pergunto silenciosamente, o que me tornarei então? Não sei, só sei que quero ter tempo para estragar nas madrugadas, como se a finitude de tudo não me doesse. E a consciência da beleza do instante presente fosse real em mim.

Fato é que nunca a tive, nunca senti a dor do parto. Contudo, ela está lá, segue atrás de mim, a criança. Me olha e calada observa meus movimentos, quase sempre vagos, no apartamento. Sinto-a até me tocar. Às vezes é o choro dela que me acorda no meio da noite. Não sei se chora de fome, não sei se chora de pavor. Contudo, ela está lá.

Sento, acendo um cigarro. Fumo sem pressa e sem medo. O gato se esfrega em minhas canelas e o desejo de me desdobrar em outro ser não chega. A campainha segue silenciosa. Ninguém bate à porta. A criança está ao meu lado agora, se aproxima de mim. E também olha pela janela e enxerga junto comigo todas as incertezas que pairam entre o céu e a terra. E juntas pensamos, como é pobre, meu Deus, a nossa vã filosofia