Wellington Soares
Blog Title

“Poesia é o que sou”

Se tem uma pessoa, entre as que conheci, que merece ser chamado de poeta é o Elio Ferreira. No sentido literal, deixemos claro. Daquelas que respiravam poesia 24 horas por dia. Até quando dormia, tenho pra mim, ele tecia versos, labutava com palavras, despertava – no meio da madrugada – pra escrever seus belos poemas.

Infelizmente a indesejada das gentes, como diria Bandeira, o levou em abril deste ano, aos 68 anos de idade, vítima de câncer. Era uma quinta-feira à noitinha, dia 11, quando fomos impactados com essa triste notícia. Familiares, amigos, alunos e parceiros de viagens literárias sentimos o baque, sempre dolorido, de perder uma referência afetiva e cultural tão importante.

As homenagens a Elio não tardaram a acontecer, sobretudo, nas feiras de livros espalhadas pelo estado: Salipi, Flibg, Felipi, entre outras. Nada mais justo e merecido, uma vez que a vida do nosso poeta florianense se confunde com a leitura e a publicação de livros. Sem falar ainda, bom destacar, com o incentivar ao hábito da leitura entre os jovens.

Na Feira da Literatura Piauiense, realizada no início de setembro, optamos em produzir um documentário para homenageá-lo. Curto e simples, mas feito com amor e repleto de saudades. Para título, escolhemos uma frase, dita por ele, que o simboliza muito bem: “Poesia é o que sou”.

Como nada se faz sozinho, fomos atrás de quem podia nos ajudar nessa empreitada: Feliciano Bezerra (amigo e estudioso da obra do Elio), Egbara Ferreira (filha), Alcides Júnior (direção de arte), Antônio Andrade (imagens e edição) e Thiago E (amigo e leitor).

Pela dimensão nacional do poeta, recorri a Marcelino Freire, idealizador da Balada Literária de São Paulo e admirador da sua obra contundente e visceral. Por meio dele, chegaram depoimentos de Daniel Minchoni, Sérgio Vaz, Wilson Freire e Nelson Maca, que não só conheceram Elio Ferreira como presenciaram, por vários cantos do país, performances poéticas inesquecíveis deste poeta negro piauiense.

Assista ao doc. disponível abaixo:

***

O DIA EM QUE EU FUI O CARA

Era o ano de 2006. E lá estava eu, aos 32 anos de idade, com uma mísera participação em uma antologia poética que ninguém leu, indo, como convidado, a uma reunião da Academia de Letras do Médio Parnaíba, cuja sede fica em Amarante. Fomos, eu e um professor, aspirante a candidato para ingressar na referida confraria. Tratava-se de um senhor septuagenário, meu vizinho, em Teresina, porém, com recursos literários suspeitos para tanto. No entanto, minhas opiniões de leitor compulsivo, eu as reservava à escuridão da minha timidez. Portanto, íamos eu e o futuro membro daquela instituição.

Percorremos cento e setenta quilômetros. Olhei para aquela casa centenária no final da rua, às margens do Rio Parnaíba. Era a residência de Emília da Paixão Costa, a Bizinha, ex-prefeita de Amarante. Uma mulher de idade avançada, de compleição física acanhada, que usava uma bengala para se locomover. Indiscutivelmente, ela é uma das figuras mais respeitada da história recente da terra de Da Costa e Silva, de Odilon Nunes, dentre outros grandes nomes da cultura piauiense. O professor nos apresentou e falou do propósito da nossa visita. Haveria uma reunião da dita Academia, mas houve um imprevisto e a mesma foi adiada. Fiquei impressionado com o fato de vários estudantes estarem passando na rua, perguntando à Bizinha sobre assuntos da história local. Ela, mulher miúda e de fala pausada, deitada em uma rede, respondia de imediato: “foi Dirceu Arcoverde, governador do Piauí”.

A vida celebrou o imprevisto, e lá estava eu, novamente, em Amarante, sete anos depois, com um livro publicado, com artigos e poemas espalhados por algumas revistas desse mundo de meu Deus, vencedor de um prêmio literário, assumindo a cadeira de nº 02 de uma casa que eu não conhecia, dois meses depois do falecimento de minha mãe.

Ao término do meu discurso, Bizinha se levantou com dificuldade e veio até a mim com os braços abertos, tentando se equilibrar com a bengala na mão direita. Com lágrimas nos olhos, ergueu o semblante de quem avista o outro lado do rio, dizendo: “Baixinho, você é o cara”.

Tive a honra de ser seu confrade e de conduzir à Academia, juntamente com ela, o escritor e artista plástico, Olemar de Castro, e o poeta, cantor e compositor, Climério Ferreira. Toda vez que eu vou a Amarante, do alto da escadaria, fico com a lembrança daquele dia, passado na residência da Bizinha, e sempre me vem à mente um trecho de Olhando o coração, uma canção de Climério e Dominguinhos: “O meu andar pela vida/É sem controle errante/É como sonho de amante/Que acredita no amor”. Para ela, eu fui o cara. Depois disso, nunca mais eu quis ser.

***

Do livro inédito de crônicas, MODERNAS FORMAS DE ANGÚSTIA E OUTRAS RISADAS, de Nathan Sousa, a sair em 2025.

Nathan Sousa é poeta, ficcionista e dramaturgo.

Aline Prúcoli, Jorgeana Braga, Priscila Amoni: trabalhadoras da terra

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“mas hoje, de novo, os poetas trabalham”

Ruy Belo

“para todo poder, leis”

Isabelle Eberhardt 

A pequena e encantadora ilusão de Ruy Belo [1933-1978], nascido em Portugal, numa entrevista de 1976, a de que os poetas, de novo, trabalham, ao imprimir a ideia à situação violenta do capital entre poder e opressão, língua e nação, Fernando Pessoa e povo etc., apresenta o impasse de que o poema, o pensamento, a imaginação se, antes, poderiam agredir e existir em luta, vinculam-se muito mais à ausência de jogo e fúria e, numa inversão de tudo, convertem-se terrivelmente conformadas em bem estar, vida familiar e saúde. Reclama, por fim, em seus últimos livros, Toda a terra e Despeço-me da terra da alegria, por exemplo, das “secas árvores do meu país” e do quanto “a vida tem aspectos criminosos”.

O que Antonio Gramsci, de outro modo, apontara bem antes, em texto de junho de 1921, acerca da participação camponesa na luta proletária, os trabalhadores da terra, as “vozes da terra”. E isso diz muito, muitíssimo, escutássemos devagar essas vozes, vivas e materializadas, com força, noutro exemplo, do que vem do Movimento Sem Terra, o MST, sem dúvida, o movimento de luta política pela reforma agrária dos mais importantes do planeta. A canção de Milton Nascimento e Chico Buarque, Cio da terra, gravada pela primeira vez em 1987, por Pena Branca e Xavantinho, já anuncia também um bocado do que essa imaginação amplia, bastariam 2 linhas: “afagar a terra / conhecer os desejos da terra”. Conta-se que nas primeiras reuniões do MST, os presentes a cantavam quase como formas e dobras de oração, hino, gesto, dádiva etc.

O que sobra, diante do vazio em que estamos agora, dimensão inócua, de uma atualidade político-ecológica da imaginação [quando atual, se político, é ao mesmo tempo o que atua e promete] e, principalmente, com a imaginação, quando ainda é capaz de pensar e mover as coisas um palmo, que seja, para algum lado? A aposta de Walter Benjamin, “destruir a destruição”, outro exemplo, busca enfrentar a exploração da natureza e as relações criminosas com o modelo único e cretino da “civilização capitalista”. Há uma inferência constituída pela ideia fascista dos “estados-nação” que se atravessa, como falsa saída circular, da política para a polícia; ultranacionalismo e democristianismo evidentes como estratégia de culpa e esperança ilusórias a um neoliberalismo desenfreado. É isto que gera e produz, industrialmente, numa escala absurda, um contingente de refugiados para morrer de fome ou a bala ou estruturas bélicas associativas para a prática de genocídio, como o que acontece em Gaza, com os palestinos, desde, pelo menos, 1948.

Agora, se os tempos em que estamos se equilibram entre neurose e necrose, ou seja, consumo máximo, máximo consumo, e quando nada escapa à imposição da lei, porque até quem imagina-se contestando a norma imposta pelo direito, só projeta alguma mínima resposta a isso no contraponto sugerido pelo próprio direito sempre dominador, que é o truque fatídico da ideia de crime. Todo o resto, como linguagem, parece cumprir-se numa ausência de caráter, o abilolado, retirando dos jogos da imaginação o inespecífico, que pode ser o que ainda escapa à lei, à regra, a uma origem, a uma identidade, a um território [termo sempre fascista] etc. e se lança ao mundo e a vida como uma vagabundagem: Eros, errância, frescor, liberdade e coragem.

As poetas Aline Prúcoli e Jorgeana Braga e a pintora Priscila Amoni: ou como reinventar uma inatualidade. [ Fotos de Aline e Jorgeana: divulgação + foto de Priscila: Cadu Passos ].

Reparar, mesmo que rápido, em algo dos trabalhos de Aline Prúcoli, Jorgeana Braga e Priscila Amoni, num encontro imprevisto, heterogêneo, série convulsa, é tentar expandir possibilidades ao atual em sua força para o político, ou seja, quando atua e promete, e não apenas no que se instala como banalização da crise, sem formulação ecológica, que é, por sua vez, instável. Aline é nascida em Vitória, Jorgeana em São Luís, Priscila em Belo Horizonte. Há o deboche sudestino, entre Rio de Janeiro e São Paulo, do “Brasil profundo”, mas essa é muito mais a história de uma transformação cultural, metamorfose para o impossível e revolução de conceitos, festina lente. Essas três artistas movem a forma do que fazem a um como fazem, da forma até a forma, que é também pensar sobre o pensamento ou como reinventar uma inatualidade.

O último livro de Aline Prúcoli, depois de coisas geniais como Pustulâncias e ανατομία, parece um jogo simples: [in]porta:nte [todos pela Editora Cousa], mas é uma impressão subtraída entre a experiência dos dias que se arrastam e a captura de imagens dessa experiência numa errância do corpo partido ao meio sob a perspectiva da terra encravada pela arquitetura moderna: é a porta que impede a existência do bolicho, as grandes salas das casas sertanejas das classes mais pobres, ou do porxo, as grandes salas das casas camponesas de Ibiza que fizeram Walter Benjamin repensar a máquina bélica que é a arquitetura moderna, quase sempre e apenas para o bem estar dos ricos. Aline impõe uma dilação erótica a essas portas, fotografadas por ela mesma e soltas numa caixinha como postais sem envio certo com textos em desenhos gráficos de letras anuladas, apagadas de fato, sem truque, quando tudo é moeda falsa, extinção de um si mesma, aprendeu com Derrida, o africano: “sopro q c enfia orifício a dentro. pau a c meter canal acima. agora 1 carne incha na sala d’estar. encostar nos móveis a toda hora: aparadores tão amigos: ñ há solidão. […]” ou “saldo do dia: 9 programas; 2 anais; 5 completos; 2 q só queriam conversar; pelo menos uns 7 palavrões no ouvido; 3 tapas no quadril; 4 puxões d cabelo; 2 arranhões nas costas; uma proposta p/ cocaína; 1 p/ não usar camisinha e algo em torno d R$ 450,00. ainda bem: amanhã: fazer apenas 3, talvez 4: a depender do 3°, pelo menos R$ 200,00 p/ poupança/aposentadoria”.

[in]porta:nte, de Aline Prúcoli: a força de quem em momento algum negocia o que faz em troca da piedade da aparição

O trabalho de Aline, há tempos, é um arremesso deliberado que se engendra entre a professora, pesquisadora, estudiosa erudita, com risco, e a sua condição feminina/feminista, mulher e mãe, com a força de quem em momento algum negocia o que faz em troca da piedade da aparição. O que se lê, e agora mais do que nunca, é o sentido que Aline imagina tocar ao avançar sobre a terra diante da causa das outras mulheres, laceradas por imposições machistas e patriarcais, violentas, e de toda uma horda humana lançada à miséria da vida comprimida por um capitalismo assolador: “depois de 15 facadas, ainda há fome? na gaveta ñ há + pano d prato saco d lixo e perdão” e “ñ fazer apenas uma vez por ano só / provar ao mundo q c é caridoso. […] fome é 1 troço bem grande q nunca fecha os próprios olhos. apenas os olhos alheios.” Cada porta, assim, não guarda segredo algum, mas são a cada página livre e texto uma transparência da guerra dos dias, do ordinário mais previsível, da falência das coisas e dos corpos ao nosso redor. Tudo o que a vidinha corriqueira, urbanizada e civilizatória, de todos nós, o tempo todo, mata.

Um outro modo de tocar a terra, a causa de UM OUTRO, está no trabalho de Jorgeana Braga. Txaiuirá [Ed. Urutau], seu último livro de poemas, com um lindo e encantado texto de orelha de Celso Borges, chamando atenção para esse ritual que finca o pé na terra, a terra no pé, entre a pele e carne, indicando o termo: uma leitura sensível e partilhada, rota de pássaro [wyrá, no tupi], entre uma ideia de sertão como experiência e convívio, não apenas como letra, e de litoral, onde parece morar uma tropa dos ossos de vivos e mortos. E aí, de novo, de outro modo, Eros vem, firme, fundo, a alucinação da “jurema travosa”, quando “morrer não é doença” e até “entrar viva no desaparecimento”. Nos textos de Jorgeana se lê outra coisa, outra ruma e outros rumos às coisas e tempos, um misto de ancestralidades índia e preta, preta e índia, sem ordem, e a presença inoperosa da floresta, do mato, das plantas, dos ventos, dos rituais em canto fulni-ô etc. e no movimento e no traço da letra que se alargam porque vêm de quem mora e se demora no que a terra ainda é.

Txaiuirá, de Jorgeana Braga: misto de ancestralidades índia e preta, preta e índia, sem ordem: “Gavião só baixa a cabeça pra chuva”.

No lindo poema Norte, de uma só linha, ela anota uma inversão da imagem: “Gavião só baixa a cabeça pra chuva”. Procedimento que está por todo o livro, tanto nos textos menores, curtíssimos, quanto nos maiores, de página inteira. Noutro, quase mínimo, de 3 linhas, ela diz: “Levar a casa nas costas / Como uma borboleta que voa / Para dentro da terra.” Esse método está vinculado ao deslocamento físico do corpo entre pequenas aldeias que aparecem, muitas vezes, em anotações propositivas para repensar a vida nas grandes cidades movida a dinheiro e desconversa: “[…] / a cidade afoga o mundo / afoga os laços / os nós / e aquelas amizades que viraram de costas / pura convenção de uma mesa de bar em qualquer lugar / não há fé no asfalto / a gente tem que subir o morro pra isso / […]”. Jorgeana Braga risca o chão do poema com o seu corpo, uma mulher emprenhada de nordeste entre a vida no chão do real – “o silêncio que vem de cima”, “a ponta fina de um coração que não espera nada” e “ameríndia que habita a noite / coração de rocha que se apanha de águas doces” – e alguns mistérios que ela mesma inventa para nos lembrar que se há poetas que, de novo, trabalham, tem a ver com o lance inesperado de uma dicção alucinatória que escapa, corajosa, da dicção repetitiva e conciliatória da muito celebrada e muito premiada “poesia brasileira contemporânea”, este cansaço de umbigos sem poesia e sem poeta nenhum.

Criança, 2022, Sete Lagoas (MG), de Priscila Amoni: quando pintar com pincel passa a ser uma questão de escala, algo que remonta a um empenho político.

Por fim, é o gesto do trabalho de Priscila Amoni, pintora, numa dimensão para além do olho, sem condicionamento retiniano, descolamento da técnica de ateliê entre cavalete, pincel e tinta para a escala do muro, da parede, em espaços públicos, urbanos para recompor uma invenção da terra. Pode-se imaginar que há nesse gesto, quando pintar com pincel passa a ser uma questão de escala, algo que remonta a um empenho político entre restituição e retratação de um passado que se revolta e invade a cena num processo de restauração tal como nada nele tivesse havido. Priscila desmonta o controle da luz, numa aprendizagem que vem do contato com outras pessoas pintando e de pintar junto com outras pessoas, para uma luz imprevista mais próxima da duração de uma visita, tanto na temporalidade das ruas quanto na composição de uma ideia de comunidade. É, ao mesmo tempo, a modulação do convívio com o entorno, ou seja, corpo e corpos, corpos e corpo, e a demora do pincel sobre a superfície do muro, da parede, numa tentativa heterogênea de leitura do lugar, do espaço, da vida que circula e se engendra ao redor. É praticamente uma urgência e uma emergência traçar essas linhas esfumadas do retrato de mulheres, pretas, brancas, velhas, benzedeiras, de terreiro etc., ou, num recorte de inferência em lançar sobre a paisagem exaurida da cidade, quase sempre a mesma, os impasses que figuras de bichos e plantas podem convocar como rememoração alguma sabedoria ancestral: o que ainda se pode receber da natureza contra as ações de avidez movidas pelo mundo capitalista neoliberal que nos rege o tempo inteiro.

Dona Geralda, 2024, de Priscila Amoni: “ver-se, vendo”, mirar-se na figura que é pintada e, ao mesmo tempo, desejar uma dissolução de todo EU.

Repare-se em pinturas como Criança, de 2022, ou Dona Geralda, de 2024, ou, ainda, Rainha Bela, de 2019. São pinturas que remetem, de certa maneira, ao projeto dos muralistas mexicanos, como Siqueiros ou Orozco, entre revolução e sonho; transparências consistentes acerca da equação “ver-se, vendo”, mirar-se na figura que é pintada e, ao mesmo tempo, desejar uma dissolução de todo EU diante de uma suspensão provocada por uma paleta muito singular que ela cria, inventa; uma paleta vibrante, solar, difusa, e que Priscila chama de “ensolaramento”. Como pintar lançando-se, corpo, à pintura e, sobremaneira, esmagar esse corpo diante da escala e da cor e no pequeno gesto do pincel na superfície imensa até esse corpo, que pinta, desaparecer. Tanto que as figuras pintadas recompõem e reposicionam os corpos de expectação à espectros, ao inespecífico do contorno, sem explicação, como se magias perdidas, segredo, mistério, pausa.

Assim, diante dessa sobreposição de tempos improváveis, os trabalhos de Aline Prúcoli, Jorgeana Braga e Priscila Amoni, trabalhadoras da terra, mãos na lama do mundo e suas delicadezas, retratam e restituem, por exemplo, o impossível de Cézanne quando visitava, todas as manhãs durante uma viagem a Veneza, a capela de San Giorgio para confrontar-se com a luz que invadia a gruta e sem conseguir pintá-la. Para o poeta Joaquim Cardozo essa é a mais genial pintura de Cézanne: a que ele não fez.

***

Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

Uma autobiografia diferenciada

Uma das leituras que tirou meu sono nesses últimos dias, literalmente, foi Eu me lembro, livro-memória do consagrado ator e diretor Selton Mello. Uma autobiografia diferenciada de tudo que li até hoje. Em vez de ficar relatando sua história de vida sozinho, preferiu convidar 40 amigos a enviarem perguntas para ele. Sem restrição de tema nem combinação prévia.
O livro tem por objetivo celebrar seus 50 anos de vida e 40 anos de carreira artística. Uma trajetória de grande sucesso, portanto, marcada por personagens icônicos que fazem parte de nosso imaginário. A exemplos de Xicó, do filme O auto da compadecida, e Abelardo da novela Força de um desejo.
Entre os convidados, despontam profissionais de áreas distintas, na grande maioria, ligados às artes, principalmente à dramaturgia – Fernanda Montenegro, Rodrigo Santoro, Zezé Motta, Matheus Nachtergaele, Marjorie Estiano, Camila Pitanga, Dira Paes, além de Jefferson Tenório, Ana Paula Maia e Zuenir Ventura, escritores, Raí, ex-jogador de futebol, Pedro Bial, jornalista, e Moacyr Franco, cantor e comediante. Com leveza e toques de humor, Selton não deixou nenhuma indagação sem a devida resposta.
De forma comovente, relembra passagens da infância no interior de Minas Gerais, o desejo de ser ator, nascido ainda na meninice, a mudança para a Cidade Maravilhosa, a fim de abraçar a carreira artística, o emprego de dublador, os inúmeros trabalhos em novelas e filmes, a relação afetiva com os pais e irmão, sobretudo, com a mãe, dona Selva, portadora de Alzheimer.
Se já o admirava como ator e diretor, agora passei a admirá-lo enquanto ser humano. Uma figura iluminada, talentosa e inspiradora na produção de arte, para quem “a realidade não basta, eu preciso de componentes mais mágicos. Assim tenho caminhado: vivendo do trabalho e sobrevivendo dos sonhos”.
Além do livro, nada melhor que viajar também nos filmes de sua autoria, verdadeiras obras-primas do cinema brasileiro: Feliz natal (2008), O palhaço (2011) e O filme da minha vida (2017), bem como noutros em que simplesmente atua: Lisbela e o prisioneiro (2003), Lavoura arcaica (2001), O cheiro do ralo (2007).
***
Wellington Soares é professor e escritor.

Alongamento

O menino se formou dentro dela, sem que ela desse conta do movimento incessante de suas células.

Eram tão recentes as descobertas do amor. Eram tantos os medos e os cuidados. Era tempo de viver a revolução do mundo pequeno dos acanhados sonhos: primeiro emprego e estudos distantes de um fim. Letras adiadas para tempo bom. Uma casa para dois com cara de um. Uma cama, um banheiro sem muitos para dividir. As prateleiras do supermercado brilhantes de alegrias desconhecidas que cabiam num auxílio refeição. Os hormônios percorrendo os vasos do corpo. Derramando-se no vermelho dos frascos do laboratório. Como interromper o rio que brotava dos olhos diante da palavra no papel?

O menino nadava dentro dela.

Azedava o estômago. Repugnava os cheiros ao redor da mesa de reunião. Olheiras e palidez no espelho em que as amigas mediam a cintura e retocavam o batom. Promoções se desfazendo por não harmonizarem com a licença e as incertezas do futuro que já não se escondia na amplidão dos vestidos. O olhar invejoso para o planejamento de férias e voos. A ela caberia o direito de dias a mais na rotina de amamentação que os manuais ensinavam. O pensar acelerava as batidas do coração diante de um calendário que esticava sua pele. O amor beijava a testa e apalpava o movimento das células intrometidas em corpo que não era seu. Não sentia e era livre para admirar e exibir aos outros o feito fora de si. Como obra contratada, paga, da qual se espera a perfeição.

O menino chutava dentro dela.

Empurrava as costelas. Restringia o pulmão para que ela recebesse sentada o pio dos pássaros e a barra do dia que se insinuava na persiana. O amor arranjava-lhe travesseiros e cobertores e ressonava tranquilamente ao seu lado. Contava os sonhos no amanhecer. Haveria de galgar cada um dos degraus e chegar ao topo. No porta-retratos o riso adocicado das conquistas. Quando o tempo lhe desse tempo correria atrás da bicicleta no parque. O amor cantava para ninar suas dores. Afinal tudo passa.

O menino saiu de dentro dela, no exato tempo da expulsão.

Faminto, sugou o seio sem piedade. O leite escorreu aos borbotões fazendo luzir as dobrinhas do menino que a todos encantava. Ela há muito perdera o saudável hábito de dormir. Já não lhe fazia falta. Tanto o que fazer quando as minúsculas pálpebras do menino pesavam e a obrigavam a respirar. Fazia. Fazia sem pensar se era noite ou dia. O amor partiu repetindo que o tempo era prado para correria de cavalos selados. Poeira soprada e no susto o menino se esticava.

O menino se alongou fora dela.

O colo vazio abriu vaga para acomodação das letras. Era tanto para viver que já não cabia na vida que lhe restava. Derramava-se pelas bordas das linhas onde as palavras se penduravam em suave balanço por puro desejo de recuperar a dilação.

***

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos (Editora Quimera, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana (Editora EDUFPI/Avant Garde, 2018); Conexões Atlânticas (Editora Infinita, Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras (ABR Editora, Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos (Patuá, São Paulo, 2018), Vale do Sossego (Editora Reformatório, 2022).

Imagem: fotografia da autora, com colagem sob Licença Pixabay Free