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E se as páginas de obituário ganhassem relevância no jornalismo?

Por Samária Andrade

Tive que responder algumas vezes à pergunta: por que você foi ao velório de Nêgo Bispo? De fato, não posso dizer que fui uma amiga do ativista, pensador quilombola e escritor. Sou uma jornalista que o entrevistou, junto aos companheiros da revista Revestrés, e que passou a admirar aquele homem e recebia informações esporádicas dando conta de sua projeção nacional. O líder quilombola piauiense morreu no auge – se é possível dizer algo assim –, pouco mais de dois anos depois que o entrevistamos. Com livro recém-publicado pela UBU, estava entre os mais vendidos desta editora e era o primeiro em vendas pela Amazon, na categoria Ecologia.

A notícia de sua morte foi pauta no Fantástico daquele domingo. Bispo era cada vez mais chamado para proferir palestras em universidades por todo o Brasil. Por conta da entrevista à Revestrés e por minha vida acadêmica, algumas vezes fui procurada por colegas professores interessados em seu contato para essas palestras. Só recentemente ele havia passado a cobrar por essas atividades. Viu o número de convites aumentar. O dinheiro que ia entrando Bispo investia na área de lazer que construía para a comunidade quilombola do Saco-Curtume, onde vivia. Passou mal neste mesmo local e, depois de ser socorrido e ter duas paradas cardiorrespiratórias, morreu aos 63 anos de idade. “Nós, quilombolas, estamos vivendo o melhor momento de nossas vidas” – havia dito à Revestrés.

Mas por que fui ao velório de Nêgo Bispo? Talvez por ter perdido meus pais recentemente (minha mãe já faz oito anos – que susto, sempre parece que foi ontem!). Desde então, a notícia de que alguém morreu passou a ganhar outro significado e tamanho. Ou, talvez, eu tenha ido ao velório porque fiquei comovida – e aqui lembro o sentido original da palavra: comover é mover-se junto a outros. Quando a notícia da morte de Bispo se espalhou, logo fiquei sabendo de alguns amigos que iriam até Saco-Curtume – esses, sim, amigos-amigos de Bispo. Tentamos articular uma carona, as combinações foram mudando e terminei indo numa van, com pessoas gentis que eu pouco conhecia. Mesmo sendo bem recebida na van e, depois, na casa de Bispo, a pergunta apareceu a mim também: por que saí de casa na madrugada de uma segunda-feira, 4 de dezembro de 2023, entrei numa van, enfrentei 450 km de estrada e fui ao velório de Nêgo Bispo? Talvez uma terapia me responda. Talvez eu tenha ido para fazer uma matéria, podem concluir outros. “Uma vez jornalista, é difícil não agir como jornalista” – já disse Matinas Suzuki. O fato é que fui, junto com amigos-amigos de Bispo, generosos em me deixarem participar, escutando histórias sobre ele, ouvindo cantos e o toque do tambor que levavam para celebrar sua vida. De fato, escrevi um texto que saiu publicado na revista piauí. E, de fato, não tinha pensado que faria esse texto. (continua após o vídeo).

 

 

Naquela tarde quente, por volta de 16 horas, já se aproximavam as cerimônias finais em homenagem ao líder quilombola. Estou sentada em um pequeno tamborete na varanda da casa de Bispo, com um vira-latas manso aos meus pés, quando uma moça se aproxima e diz: “Você é jornalista? Pode fazer imagens para a televisão de Teresina?” Alguém completou: “As redes sociais do Brasil não têm outro assunto”. Não enviei as imagens solicitadas e, depois, soube que as TVs da capital colheram imagens no instagram do próprio Nêgo Bispo, alimentado por uma amiga da família, que usava o novo celular comprado pelo quilombola e que havia chegado somente naquela mesma manhã. Algum colega tinha me visto nas imagens e identificou que havia uma jornalista na cerimônia. Foi quando me dei conta: o homem que comoveu o país naquele dia não havia mobilizado nenhum meio de comunicação a pautar seu velório.

“E se as páginas de obituário ganhassem relevância no jornalismo?” Os jornais poderiam estar mais vivos do que quando dedicam espaços enormes para páginas políticas – que são muito mais propaganda, assessoria de imprensa, RP, marketing político e muito menos jornalismo.

No percurso que fizemos a pé, da casa de Nêgo Bispo até a roça onde ele foi enterrado/plantado, mais uma constatação: apesar da avassaladora repercussão nacional, ali não apareceram autoridades nacionais ou estaduais, nem representantes das universidades, que tanto o requisitavam. Apenas duas coroas de flores foram entregues. Uma terceira, em nome do governador do Piauí, Rafael Fonteles, chegou somente às 21 horas, quando as cerimônias já haviam se encerrado. Avesso aos espaços institucionalizados, é possível que Bispo nem se importasse com essas ausências. Quando lhe perguntavam “por que você é mais reconhecido fora do Piauí?”, tinha uma resposta definitiva e de finíssima ironia: “Porque quem tá precisando me ouvir são vocês, que moram na cidade grande”. Mas comecei a pensar que a pergunta não era “por que eu fui ao velório de Nêgo Bispo” e, sim, porque a mídia, as autoridades, as universidades não foram?

Isso tudo estava um tanto adormecido comigo quando, nesses últimos dias, alguns personagens relevantes da cena cultural e acadêmica do Piauí também morreram. Aqui destaco Elio Ferreira, poeta performático, ativista negro e professor de Letras da Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

Essa notícia comoveu as pessoas, e logo começaram a circular vídeos de Elio interpretando poemas próprios. Em um deles, está nos corredores da UESPI, livros em punho, microfone na outra mão, e diz quase aos gritos: “poesia, poesia, poesia! Eu pensei que tivesse conquistado o mundo, não fui além do riacho que passava no fundo do quintal da minha casa”. Elio foi bem além. Poemas dele são estudados em cursos de Letras de universidades do Brasil. Nunca deixou de ser um tanto outsider. Para alguns, era o poeta meio maluco que tinha coragem de fazer versos como: “Eu vou comer a tua mãe”, “Todo mundo quer ser deus, e deus é a fome, é a criança morta, deus é teu c*zinho”. Era um estudioso muito sério, inspiração para poetas mais jovens e estudantes.

E o que temos feito quando pessoas como essas ancestralizam? Temos ido às redes sociais e, aos poucos e coletivamente, promovemos uma cerimônia de adeus. No jornalismo brasileiro o texto de obituário é uma seção menor e mal vista. Já no jornalismo de países como Estados Unidos e Inglaterra, essa seção alcançou status de literatura. Os repórteres disputam espaço como obituaristas, assim como, no Brasil e no Piauí, profissionais da imprensa desejam uma vaga na seção de política. Nos bons textos de obituário, além da oportunidade de refletir sobre a vida, devolve-se importância à pessoa reportada. E pouco importa se ela não vai ver esse texto: quem está precisando entender isso somos nós, os que ficam, e não eles, que já fizeram tanto. Como Bispo havia dito: “Quem tá precisando me ouvir são vocês”.

Elio Ferreira morreu no dia 11 de abril, aos 68 anos, enfrentando um câncer. No velório, amigos contavam que ele não se deixava abater e mantinha todos os compromissos, dava palestras, lançava livros. Três dias antes de morrer, já no hospital, participou de modo online de uma banca de doutorado que era defendida em Coimbra, Portugal. Elio encarnava sua última performance. E faz martelar na gente os versos que escreveu ao pai, ferreiro, ofício que ele também exerceu dos nove aos vinte anos: “O meu pai é ferreiro, ele acorda de manhã, bem cedinho, na hora dos passarinhos, o martelo TEM TEM TEM…”

Agora, quando minha pergunta é “e se as páginas de obituário ganhassem relevância no jornalismo?”, penso que os jornais poderiam estar mais vivos do que quando dedicam espaços enormes para páginas políticas – que são muito mais propaganda, assessoria de imprensa, RP, marketing político e muito menos jornalismo.

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Samária Andrade é doutora em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília), Jornalista, Professora e Pesquisadora de Jornalismo na UESPI (Universidade Estadual do Piauí).

 

Elio Ferreira: “Poesia é o que sou, o que sinto, o que penso e vivo no mundo”

ENTREVISTA / Por Wellington Soares, professor e escritor

 

 

Muitas são as pessoas que escrevem poesia, mas poucas as que encarnam, literalmente, o significado do termo. Uma dessas é, sem dúvida, o Élio Ferreira, florianense da gema que, aos oito anos, já improvisava os primeiros versos. Mas tudo começou, faz questão de frisar, ao ouvir as fábulas orais de matriz africana e indígena, bem como as narrativas de experiências vividas, contadas pelos pais, familiares e amigos.

Depois vieram as leituras, na adolescência, de grandes nomes da literatura nacional. Entre eles, Machado de Assis, José de Alencar, Gonçalves Dias, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Foi essa combinação de “escrevivências” e gosto pelos livros que o arrastou, de forma irremediável, aos braços sedutores da poesia – a ser o que é, o que sente, o que pensa e, sobretudo, a encontrar sentido em viver.

São muitas as imagens que guardo na memória dessa relação, íntima e amorosa, do Elio com a poesia declamada ou lida, dentro e fora do estado. Primeiro, ele recitando seus textos, como autêntico poeta-performer, em tudo que é canto. Praças, escolas, universidades, rodoviárias e Palácio do Karnark, sede do governo do Piauí. Para tanto, pintava a cara de branco, usava um blusão colorido (ou capa preta) e, o mais importante, empunhava um pequeno megafone, por meio do qual soltava o verbo e petardos de versos.

Ao homenageá-lo em 2019, na Balada Literária/PI, tive a oportunidade de conhecê-lo melhor e de perto. Estivemos juntos em Floriano (sua terra natal), Oeiras, Parnaíba, Teresina e São Paulo, onde também é conhecido e celebrado. Foram dias compartilhando paixões comuns sobre livros, música, cinema, educação, cultura e sonhos de um Brasil realmente democrático e solidário. Nessas travessias, deparei-me com, além de poeta extraordinário, uma figuraça humana sem igual.

Como bom papeador, aqui Elio Ferreira fala de quase tudo, sobretudo, das obras lançadas – Poemartelos, O contra-lei, América negra, entre outras –, das autoras e dos autores que ama, das histórias ouvidas dos pais e tias, da formação acadêmica e, humildemente, dá “conselhos” aos jovens que estão pensando em trilhar esse desafiador caminho de ser escritor. Antes, porém, avisa: “O poeta negro é um estado permanente de amor e indignação, um cavalo de Ogum em compromisso com a História e a vida das pessoas negras”.

 

Conceição Evaristo diz que o importante não é ser o primeiro ou primeira, o importante é abrir caminhos. Sua literatura reflete essa ideia também?

Não tenho como afirmar, categoricamente, em que circunstâncias Conceição Evaristo fez essa afirmação. Mas sei o que isso significa para nós, escritores negros e escritoras negras. De certo, minha poesia abriu caminhos para mim mesmo e, creio que, de algum modo, para a consciência da negritude dos jovens leitores e poetas negros. Poesia é o que sou, o que sinto, o que penso e vivo no mundo. Não sei o que seria da humanidade sem a poesia e os poetas. Isso pode parecer para muitos que estou blefando ou perdi a razão. Poesia é fogo no monturo. Poesia é incêndio silencioso no oleoduto. Poesia é água de beber para matar a sede da gente. Temos o anseio inadiável de contar as experiências de dor e esperança pessoal e coletiva das pessoas negras. Vivenciamos o presente e o passado para restabelecer a tradição de cantar/contar como a performance dos griots/diéli, a herança oral dos nossos ancestrais contadores de história oriundos da África, transmitida de geração em geração pelos nossos pais e avós. O significado de abrir caminhos também diz respeito à recusa do preconceito, do racismo estrutural, da invisibilidade social, da crueldade, do genocídio brutal e costumaz contra as crianças e os jovens negros e pobres no Brasil. O que é de fato abrir caminhos? Reporto-me aqui à sabedoria dos provérbios africanos, em particular a esses versos bambaras: “O que eu sei/eu aprendi de alguém/o que se diz hoje/desde sempre existiu”. Nada me faz crer, se, em alguma ocasião, fui “o primeiro”, tampouco tenho a dimensão exata do que seja “abrir caminhos”. Improvisei os primeiros versos aos oito anos. Mas só escrevi o primeiro aos dezessete. Antes disso, não pensava em escrever livros. Eu queria ser jogador de futebol. Mas a poesia me acessou. Se “abri caminhos”, foi como protagonista de determinadas intervenções literárias, culturais, educacionais de caráter étnico-racial. O poeta negro é um estado permanente de amor e indignação, um cavalo de Ogum em compromisso com a História e a vida das pessoas negras. Um povo é respeitado quando sua história é contada por seus poetas. Não foi por acaso, que o Movimento Negro Unificado – MNU, os Cadernos Negros e demais grupos literários e sociais afro-brasileiros foram avante até resultar na Lei 10.639/2003, assinada pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tornando obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Escola de Ensino Básico do Brasil. Anos posteriores à abertura política de 1978, deu-se o início ao ingresso de autores/as negras no MNU-Movimento Negro Unificado, Negrícia etc., incluo-me entre os ingressos no MNU/Brasília, em 1984. Essa experiência me levou a tomar consciência do papel social como autor negro, embora, antes disso, os versos do Canto sem viola (1982/1983) já contassem minha história, dos meus pais, tias, avós negros e amigos da rua do Ouro, hoje rua Fernando Marques, em Floriano (PI). O fato é que os autores negros tomaram mais consciência e o compromisso de interferir na realidade a favor da população negra, narrando e cantando suas “escrevivências”, termo postulado por Conceição Evaristo para significar as experiências pessoais e coletivas vivenciadas por autoras e autores negros, o que difere em vários aspectos da autobiografia dos autores brancos.

Poesia é o que sou, o que sinto, o que penso e vivo no mundo. Não sei o que seria da humanidade sem a poesia e os poetas

O que você lembra dos primeiros passos na leitura e na escrita?

Falar de escrita sem antes me reportar à tradição oral, como as histórias contadas sob a luz do luar da minha antiga rua do Ouro, hoje rua Fernando Marques, na periferia de Floriano, seria um grande equívoco da minha parte. Fui iniciado pelos contadores/as de contos e fábulas orais de matriz africana e indígena, as narrativas de experiências vividas, contadas por pessoas mais velhas, como meus pais, tias e amigos. Além das cantigas de roda, de ninar, de bumba meu boi, macumba, reisado, Casimiro Coco, repentes, versos de cordel, canções do rádio, filmes sobre a mitologia grega e romana, dramas circenses, entre outros, foram esses os primeiros contatos com a cultura literária. Quando menino, enquanto puxava o fole para esquentar o ferro, na oficina de ferreiro do meu pai, ele me contou que “os americanos” tinham ido à Lua e, desde então, haviam estabelecido relações comerciais de compra e venda com os habitantes da Lua. Isso antes de o primeiro homem pisar na Lua. Mas foi, de fato, na REVISTA NORDESTE que tive os primeiros contatos com a poesia de autores letrados. Sou órfão de mãe desde os 6 anos. Meu pai era um amante dos livros, embora tenha cursado apenas o terceiro ano primário. Lembro da pequena quantidade de livros na estante da minha casa, como a Bíblia Sagrada, ilustrada; a Coleção da Gramática Ilustrada da Língua Portuguesa, de Alpheu Tersariol; o romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Dos 17 aos 20 anos, ainda em Floriano, li Machado de Assis, José de Alencar, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Gonçalves Dias, Cecília Meireles, João de Deus, cordéis, gibis e livros de faroeste. No mesmo período, comecei a recitar os meus poemas nos eventos da escola e publicá-los no Jornal Tribuna do Sul, em Floriano. De 1976 a 1979, cursei Letras no CEUB/Brasília. Nesse período, estreei no teatro como ator no papel de Severino, personagem principal de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Tornei-me um leitor voraz de poesia, romance, conto e teatro. Li de Homero a Pound, passando por Sousândrade, concretistas, tropicalistas e Beat Generation, sem falar de Solano Trindade e Luiz Gama, bem como dos meus autores contemporâneos, os chamados “poetas marginais” dos anos 1980 (denominação que repudio). Em 1983, publiquei os livros Canto sem viola e Poemas de Nordeste. Junto com os poetas jovens Alex Fraga, Altair, Gutemberg, Guimarães Rocha, entre outros, criamos o Movimento dos Escritores Independentes de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, quando oxigenamos a literatura daquela cidade. Organizamos a Antologia dos poetas independentes do MS. Realizamos a Primeira Noite de Poesia, no Paço Municipal de Campo Grande/MS, com show musical e a presença de um grande público. Fizemos uma grande Caminhada de Poesias em homenagem ao poeta Manoel de Barros, de quem me tornei amigo e tomei lições de poesia. Tornei-me ativista dos movimentos de preservação do Pantanal contra a matança indiscriminada de jacarés e a poluição dos rios. Escrevi poemas de denúncia contra a morte do líder indígena Marçal de Souza (Tupã Y), motivado pela grilagem de terra feita pelos ruralistas do agronegócio.

O rio Parnaíba é tema recorrente em quase todos os poetas piauienses. De que maneira ele aparece em sua obra?

“O que fizeram das águas do rio Piauí,/O que fizeram de mim,/Nesta noite de alecrim” (Canto sem viola, 1982). Floriano é situada num estuário. Ali as águas de 26 riachos desembocam direto ou indiretamente no rio Parnaíba. O meu imaginário infantil emergiu das águas dos riachos da minha cidade, os quais fazem parte das experiências e descobertas da infância, como o riacho do Cacimbão, que passava detrás do fundo do quintal da minha casa, os riachos Irapuá, Meladão, Veredinha, entre outros, onde aprendi a nadar. Já os riachos da Onça e do Gato entram no poema pelas imagens do leito poluído e o mau cheiro dos esgotos, lançados pelos sobrados e hospitais do centro da cidade: “riacho da onça grunia/as vísceras do sobrado” (Poemartelos, 1986). Nossa casa ficava no alto da cidade, no morro, à distância de 1,5km do rio Parnaíba. O meu pai proibiu, terminantemente, a mim e ao meu irmão, Vitorino, que tomássemos banho no rio, por razão dos constantes afogamentos de crianças e adolescentes. Minha experiência corporal e afetiva com o Parnaíba dá-se, em particular, entre 17 e 18 anos, quando, aos domingos, ou à noite, pescava para completar as refeições de algum dia da semana. Anos mais tarde, quando retornei de Brasília, o rio Parnaíba ocupou, de vez, o meu imaginário poético. Mas os tempos eram outros, de espaço de diversão e deleite, pertencimento identitário, motivo de preocupação pelo assoreamento do seu leito. No entanto, o Canto sem viola, meu livro de estreia, narra episódio de aparecimento do Cabeça-de-cuia no rio Parnaíba. No Poemartelos, o rio é testemunha e cúmplice da travessia de casais enamorados que fogem para se casarem na outra margem do rio, na cidade do Barão de Grajaú (MA), sob a anuência do Padre José. O rio é também lugar de infortúnio, onde, especialmente, mulheres pobres e negras penitenciam na miséria das casas de prostituição. Em O contra-lei, o rio é cantado em dimensões lírica e metafísica: “à margem da imagem/é o rio correndo dentro de mim/atravesso a cidade,/onde não sou mais/nem o começo,/nem o fim”.

Que os jovens poetas negros contem sua própria história. Escrevam a partir das experiências vivenciadas por eles, elas e das experiências coletivas, protagonizadas pelo sujeito negro como seus pais, tias, irmãos.

Os autores negros têm merecido, a exemplo de Carolina Maria de Jesus e Lima Barreto, o reconhecimento necessário no Brasil?

Antes, quero me reportar aos CADERNOS NEGROS, o mais importante e longevo periódico da literatura afro-brasileira contemporânea, fundado em 1978. Desde então, tem sido publicado todos os anos, ininterruptamente. Quanto a Carolina Maria de Jesus e Lima Barreto, esses autores não têm ainda o merecido reconhecimento. Quarto de despejo (1960) foi o maior sucesso da época, com a venda de 80 mil exemplares durante um pequeno espaço de tempo, além de sua tradução em 13 línguas diferentes. Apesar do sucesso, no final de sua vida, Carolina tornou a ficar muito pobre e a catar papel para sobreviver. O que, certamente, não ocorreria, caso fosse branca, pois, sem dúvida, lhe teriam ofertado uma coluna literária em jornais impressos famosos da época. Algo semelhante ocorrera a Lima Barreto, que morreu muito pobre, vitimado pelo racismo e pela falta de oportunidade, inegavelmente, a causa principal de sua depressão e do mergulho no alcoolismo. Lima é lembrado pela crítica oficial apenas como autor Pré-Modernista, negligenciando-se o talento do romancista, contista e cronista perspicaz da vida urbana da sociedade carioca dos primeiros anos do século XX. Cruz e Souza também não foi poupado do racismo à brasileira, ao ser impedido de assumir o posto de Juiz, por ser negro, na sua cidade natal. As grandes editoras nacionais, excetuando-se algum caso especial, ainda têm reservas no que tange à publicação da obra de autores/as negras. Contudo, nos últimos dez anos, observa-se o reconhecimento de obras da literatura negra no Brasil, motivado, especialmente, pela crítica literária afrodescendente procedente dos estudos investigativos dos núcleos de pesquisa afro e programas de pós-graduação de várias universidades brasileiras. Autores negros de sucesso em sua época, posteriormente silenciados, como os citados acima, e novos nomes, como Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Itamar Vieira, Jefferson Tenório, entre outros, têm se projetado nacional e internacionalmente para um número considerável de leitores. Contudo, o reconhecimento dos autores e autoras negras brasileiras continua sendo um ideal a ser conquistado.

Qual dos seus livros expressa, de forma satisfatória, as inquietações políticas, sociais e estéticas que permeiam sua existência?

A parte I do Canto sem viola já anuncia alguns temas, cantares e estéticas da minha poesia atual. Mas foi o Poemartelos a explosão inicial notabilizada pelas inquietações do projeto político, social e estético da minha experiência poética. Escrevi a grande parte deste livro em apenas uma noite. Foi como um vulcão saindo da minha cabeça ‒ sons de martelos contra o ferro na bigorna, memórias das vozes da oficina de ferreiro do mestre Aluízio Ferreira, o meu pai; os sons das histórias e cantigas das minhas tias e da oficina de flandreira de tia Aleluia. Aquela velocidade e os ritmos da fala tomaram conta da minha escrita oral como uma teia de aranha, uma espiral de poetar e contação de histórias vividas e inventadas, que atravessaram os caminhos da infância e entraram porta adentro naquela noite/madrugada adentro num quarto de Hotel, em Manaus. Lugar esse que me pareceu ser mais uma nave do que um quarto de dormir. O contra-lei (1994) foi outro momento de conquista para o poeta performar, do poema de versos curtos e longos tão musicais por sons onomatopaicos que, segundo Rubeni Miranda, eram mais musicais do que a própria música e, por isso, difíceis de serem musicados. Enfim, versos de reivindicações políticas e sociais, muitos dos quais se tornaram letras de rap na década de 1990, quando fui MC, junto com Gomes Brasil, da banda Os contra-lei. Esse livro foi intenso e vital para ganhar as ruas, praças, rodoviárias, estação de metrô, escolas e universidades, portando megafone, uma capa preta, o parangolé da bandeira do Brasil. Nasceu à proporção que ia lendo a Mitologia dos Orixás, a teoria do Big Bang, O livro de gênesis, O livro do apocalipse, As mil e uma noites, relendo Sousândrade, Os Lusíadas etc. O livro América negra (2004) foi o grande salto para a negritude. Os poemas cantam, particularmente, a história da resistência negra, da diáspora africana, da ancestralidade, da mitologia dos orixás, embora as obras anteriores tratem das experiências e estéticas da poesia negra. Por último, o livro América negra & outros poemas afro-brasileiros (2014) é o livro que traduz o ponto mais alto dos temas, princípios filosóficos e estética da negritude na minha poesia.

Faça a poesia saltar do papel. Escreva uma poesia para ser falada, com palavras sonorizadas. Faça o que for possível para a poesia ser ouvida, cantada, sentida, aplaudida ou mesmo vaiada.

Que sensações você experimentou ao ser homenageado na Balada Literária 2019, evento cultural da maior importância no país?

Só sei dizer que foi bom demais. Foi mais do que emocionante. Algo deslumbrante, uma epifania de experiências e sentimentos, que somente a Balada poderia me proporcionar. Reencontrei amigos. Conheci nomes e grupos de poetas da nova geração de autores brasileiros. A Balada me recolocou no itinerário das performances poéticas das cidades Oeiras, Floriano, Paranaíba, Teresina e São Paulo. Foi uma verdadeira maratona de performances e cenas literárias e poéticas. Vivenciei momentos que marcaram minha vida de escritor e homem comum.

Aos jovens que desejam ser poetas, os negros em especial, que sugestões você daria?

Em primeiro lugar, que contem sua própria história. Escrevam a partir das experiências vivenciadas por eles/elas e das experiências coletivas, protagonizadas pelo sujeito negro como seus pais, tias, irmãos, pessoas do grupo étnico-racial e dos ancestrais. Peço que leiam os Cadernos Negros (publicação mais longeva da literatura brasileira contemporânea) e autores como, entre outros, Ana Maria Gonçalves, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Cruz e Sousa, Cuti, Geni Guimarães, Itamar Vieira Júnior, Jefferson Tenório, Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis, Salgado Maranhão, Tânia Lima. Reescrevam tantas vezes quanto for necessário para pegar o ritmo da fala e/ou o cantar/olar na batida dos tambores. A literatura escrita por autores negros requer música e oralidade, do jeito da fala, das vozes, motivos temáticos e cantares da nossa ancestralidade. A história pessoal e da comunidade negra é o trunfo mais prolífero e promissor de boa literatura, porque é nosso lugar de pertencimento e experiências vividas e compartilhadas. Tony Morrison, romancista negra dos EUA, Prêmio Nobel de Literatura, afirmou, certa feita, que a literatura negra está, intrinsecamente, ligada à música e às narrativas contadas oralmente pelas pessoas mais velhas da nossa família. Intuitivamente, essa estratégia é comum, de cantar e contar, à poesia do livro Canto sem viola (1983), meu livro de estreia. Isso me tornou mais consciente da minha história e do meu estar/agir no mundo enquanto poeta. Façamos também da herança griot, dos contos e das canções de matriz africana, o lúmpen da nossa poesia. Recomendo ainda o estudo da História do negro no Brasil, a Diáspora negra nas Américas e a História da África. Enfim, não há pessoa mais indicada para contar a sua história e a dos ancestrais negros, senão o próprio negro. Cada poeta tem sua própria experiência de vida e poesia.

Outra sugestão importante: faça a poesia saltar do papel. Escreva uma poesia para ser falada, com palavras sonorizadas. Faça o que for possível para a poesia ser ouvida, cantada, sentida, aplaudida ou mesmo vaiada. Em outras palavras, não há limites para o poeta, nem do ponto de vista temático, nem estético. As duas coisas andam juntas, de mãos dadas, lado a lado – unha e carne. Essas foram algumas das dicas do e para o poeta-performance que me tornei, falando poemas com megafone nas ruas, praças, rodoviárias, escolas, em tudo que era canto. Sem faltar ainda cara pintada, blusão ou casaco colorido (depois capa preta), parangolé da bandeira do Brasil (quando ainda era proibido vestir a bandeira do Brasil). Hoje, infelizmente, virou uma selvageria cheia de ódio saindo pelas ventas. Se possível, recite poesia acompanhada (ou não) por instrumentos musicais. Digo isso também porque se o poeta não souber tocar um instrumento ou não tiver um músico que o acompanhe, ele poderá emitir fonemas onomatopaicos, repetir versos e palavras no início, no meio e/ou no final de cada verso, conforme o imperativo exigido pelo poema para ser falado, gritado, guturalizado ou cantado.

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A toalha de Tereza

Por José Vanderlei Carneiro

“O prazer do texto é esse momento em que meu corpo

vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem

as mesmas ideias que eu.” – Roland Barthes.

O que me faz sentir? Uma narração, uma descrição, … uma poética? Uma percepção antropológica do feminino? Uma didática biocêntrica de ensino? Ou simplesmente um texto, uma toalha, uma tela, um tecido para a mesa do jantar, uma renda sobre o altar, uma peça de pano para acariciar os corpos, … um toque pequeno de sensibilidade no ritual único dos humanos que é o Encontro; um instante em que posso soltar meu grito em silêncio: eu estou aqui!

Para sentir é preciso mobilizar os sonhos, os desejos, as feridas, os traumas, as histórias de vida. Sem encantamento e sem angústia profunda não teremos acesso ao transcendente. Eu posso! Eu sinto!

Eu que não sou afeito a nenhuma filiação ideológica, escola filosófica, movimento literário, corrente de pensamento erudito… mergulho por deleite nas entranhas do texto, do toile. Deixo-me embriagar pela sua boniteza móvel, lisa, leve, delicada, receptiva, acolhedora; fios mágicos, tímidos, férteis, dançantes; provocando os corpos a feitiçarias, pois educa o olhar, afaga a alma, desperta o físico ao que pensar; tudo simbólico, real, existencial… Eu existo!

Parafraseando o filósofo, a toalha nos dá o que falar. A fala surge da provocação do sentir, do caminho, do diálogo, da vida, das narrativas sobre a vida ou a vida que é exatamente o que narramos. Isso é precisamente uma dialética do amor. “Necessitamos de um ato mágico, de um exorcismo”, de uma experiência de amor, de um movimento de tornar-se e de aprender-se a ser o que somos. Somos capazes de nos abrir ao inesperado, de gostar de aprender, de gostar de ter prazer em ensinar, de gostar de amar o conhecimento… toda razão só deve ser levada a sério se estiver molhada de prazer. Para sentir é preciso mobilizar os sonhos, os desejos, as feridas, os traumas, as histórias de vida. Sem encantamento e sem angústia profunda não teremos acesso ao transcendente. Eu posso! Eu sinto!

Estou necessitado de arte. Arte de ver e de perceber a beleza na simplicidade das coisas, nas surpresas do cotidiano, nos incômodos da realidade, nas relações e nas miopias dos sistemas de controle dos sentidos.

Estou necessitado de arte. Arte de ver e de perceber a beleza na simplicidade das coisas, nas surpresas do cotidiano, nos incômodos da realidade, nas relações e nas miopias dos sistemas de controle dos sentidos. Preciso ver os sentidos nas curvas dos voos da vida e dos livros: “Olhar para além da superfície com olhar de fazer amor com o mundo”. Mas também arte de ouvir: “saber ouvir é a arte de saber fazer silêncio”, de “acordar os ouvidos…”, “de escutar os sons do mundo, os sons da alma”. Preciso de uma escuta sensível que rompe com toda e qualquer metodologia anti-humanista, pois abre-se a roda para compartilhar os saberes diversos, falas de lugares diferentes, de pessoas com marcas simbólicas salientes e com propósitos múltiplos.

Ver e ouvir textos, tecidos, são formas poéticas de evoluir o conhecimento como música e dança, como leitura e aprendizagem que se traduzem como ato político e consciência humanizada. Sou pertencente originariamente do “líquido amniótico” e depois das formações cósmicas (natureza, espécies, seres outros) e ainda pertencente ao outro e outro.

Também arte de ouvir: “saber ouvir é a arte de saber fazer silêncio”, de “acordar os ouvidos…”, “de escutar os sons do mundo, os sons da alma”. Preciso de uma escuta sensível que rompe com toda e qualquer metodologia anti-humanista.

Com efeito, a toalha de Tereza me conduz para uma elaboração dos nossos afetos, dos nossos vínculos originários: o cuidado, o respeito e a presença amorosa – vínculos universais. Preciso acordar deste sono e despertar os sonhos que fortalecem os nossos laços inspiradores da convivência: a justiça e a paz. Pois, como escreve Leonardo Boff, existe “Brasas sob cinzas”. O exercício que me resta é soprar o tempo, suavemente, para desvendar a beleza da vida. Do ventre eu sou, assim, minha tarefa é deixar que a pulsão da vida me provoque a imaginação. “… Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas. Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza, um mundo livre aos poemas”.

Em suma, estou pronto para começar este texto: no primeiro dia ela chega com um sorriso espontâneo, com uma tolha litúrgica e um jarro de flores, prepara a sala, coloca um livro sobre a mesa, que não abre, não neste dia, e nos convida ao Encontro…

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José Vanderlei Carneiro é doutor em Linguística pela Universidade Federal do Ceará – UFC e tem pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS. É professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Piauí (PPGFIL/UFPI).  

 

 

A poesia e um gole de cerveja

“Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção”. De cara, o primeiro verso de Coração Selvagem, canção do cantor e compositor cearense Antônio Carlos Belchior, dá o tom da coisa toda. Trata-se de um verdadeiro mestre da intertextualidade. Nascido em Sobral, Ceará, no ano de 1946, Belchior é dono de uma das mais belas obras da Música Popular Brasileira. Abandonou o curso de Medicina, residiu em um convento de freis capuchinhos, dedicou-se às artes plásticas e introduziu como poucos os elementos da literatura em suas composições, até sumir dos palcos e dos holofotes em seus últimos anos de vida, dedicando-se à tradução da Divina Comédia, de Dante Alighieri.

De Edgar Allan Poe a Caetano Veloso, a obra do autor de Como nossos pais tem poesia de fio a pavio. Há denúncia da complexidade da vida urbana em todas as partes, e lampejos de saudade da pacata vida rural. Belchior se utilizou dos meios oferecidos pela indústria fonográfica se safando, principalmente nos primeiros álbuns, das exigências mercadológicas. A lista de poetas citados por ele vai de Gonçalves Dias e sua Canção do exílio, mencionada na música Retórica sentimental, do álbum Era uma vez um homem e o seu tempo, passando pelo poeta espanhol Federico García Lorca, na canção Conheço o meu lugar, até chegar a Bob Dylan (o estilo trovador de Dylan), Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa.

A lista é longa. Belchior flertou com o cinema, com o teatro e com diversas manifestações culturais. No álbum Melodrama (1987) ele faz um verdadeiro desfile de grandes nomes como Jean-Jacques Rousseau, Pablo Picasso, Marcel Duchamp, Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire. E o que dizer do poema Ouvir estrelas, do poeta parnasiano Olavo Bilac? (Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso/Eu vos direi no entanto/Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não/Eu canto). De maneira direta, Belchior toma de empréstimo o título da obra mais famosa do filósofo Erasmo de Roterdã (Elogio da Loucura, de 1988).

Como ele bem diz quando se comunica com o manifesto antropófago de Oswald de Andrade, “eu sou um antropófago urbano/Um canibal delicado na selva da cidade/Mais dia, menos dia… eu como você”. Na sua bela canção, A palo seco, é nítida a referência ao poeta João Cabral de Melo Neto.

Ficam aqui minhas lembranças das incontáveis vezes em que sai em meu carro pela BR-343, aparentemente solitário, mas apenas “aparentemente”, diga-se de passagem, já que o imaginário musical, poético e social de Belchior jamais me abandou, mesmo quando eu tive medo de “abrir a porta que dá pro sertão da minha solidão”.

E tudo isso por causa de uma lição singular que o mestre me ensinou: “Eu quero corpo./Tenho pressa de viver”.

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Nathan Sousa é poeta, ficcionista e dramaturgo.

Paulo Leminski, leitor do sertão

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“Não há mais tempo. O tempo acabou.”

Paulo Leminski

Manoel Ricardo de Lima, que assina a coluna trabalhos no subsolo, propõe numa série de 5 textos, uma releitura do trabalho e do pensamento selvagem do poeta Paulo Leminski [1944-1989] no ano em que se completam 35 anos de sua morte. A série parte da ideia de um Paulo Leminski, leitor. O texto que abre a série é Paulo Leminski, leitor do sertão.

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Agora, em 2024, completam-se 35 anos da morte de Paulo Leminski, morto em 07 de junho de 1989. Depois de Drummond – que recusou por 3 ou 4 vezes entrar para a vida imortal numa tetraplégica academia nacional de letras que só piora a cada ano, um malogro imaginado por Machado de Assis que, irônico e propositalmente e para rir de nós no inferno, nos legou esse deboche definitivo, a última de suas negativas –, é certamente Leminski o único a quem ainda se poderia, no Brasil, de todos os modos, nomear poeta. Como Ismael, o contador das histórias do leviatã, poeta não é quem diz “chamo-me”, mas quem imagina um espectro que vem do chão, sem metafísica, dizendo “chamam-me”. E que, mesmo assim, ouvindo o chamado, diz não, o tempo inteiro.

3 anos antes de morrer, em 1986, num seminário organizado por Adauto Novaes, através da Funarte, no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Curitiba, “Os sentidos da paixão”, ele participa com uma conversa deliberada, Poesia: a paixão da linguagem, retomando, essencialmente, o que apresentara como proposição em dois textos daquele mesmo ano: “sertões anti-euclidianos” e “grande ser, tão veredas”. O mais interessante é que faz uso de pequenos comentários ao que, natural e ordinariamente, se conhece como “prosa” para falar do que, também ordinária e naturalmente, imagina-se como “poesia”. Mas o ponto de insurgência aí nem é essa relação precária já levada a cabo tantas vezes, prosa/poesia, mas sim uma imaginação laceradora do pensamento que se lança através das figurações do sertão, como experiência, o que Leminski não parece ter tido – senão através do biografema que faz do corpo preto, esquálido e morto de Cruz e Sousa num vagão de trem entre cavalos –, e, depois, como imagem rarefeita, o mais perto possível de uma imaginação revolucionária ao ler esses livros impensados.

Depois de Drummond – que recusou por 3 ou 4 vezes entrar para a vida imortal numa tetraplégica academia nacional de letras – é certamente Leminski o único a quem ainda se poderia, no Brasil, nomear poeta.

Ao mesmo tempo, Leminski, este muito bom leitor do sertão sabia que é impossível tocar esses dois personagens-escritores tão díspares e esses livros também tão díspares, Os sertões, de Euclides da Cunha, 1900; e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, 1956; sem tocar num ponto do que afirma em direção a um si mesmo que advém daquilo que lia e, muito mais, de como lia aquilo que lia: “o pensamento que alimenta e abastece uma experiência criativa tem que ser um pensamento selvagem, não pode ser canalizado por programas, por roteiros, tem que ser mais ou menos nos caminhos da paixão [pela linguagem].” Daí que nos lembre, muitas vezes, o quanto Glauber Rocha é um exemplo que persegue como exímio leitor do sertão, não só porque devorou os livros de José de Alencar, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e, numa outra ponta, de Guimarães Rosa, mas porque, principalmente, para ler este último, escreveu ele mesmo um romance, o genial Riverão Sussuarana, publicado em 1978, numa convocação do  Bloom, de James Joyce, e de um Riobaldo amalgamado em êxtase com Diadorim. A figura de Glauber, do pensamento de Glauber, é uma constatação efusiva de uma materialidade imanente da paixão, porque Leminski insiste na ideia de que o que está na moda é a palavra paixão, não a paixão.

A recuperação das ideias de que “nenhum livro / teve sobre a cultura brasileira letrada / o impacto de “os sertões” e de que se está diante de um “cordel de guerra / de um homero anônimo / onde a crueza das ideias e expressões / se expressa em bárbara ortografia” se expandem até o vórtice destrutivo, porque se aproxima do materialismo histórico sugerido pela anacronia heliotrópica de Walter Benjamin, de uma ancestralidade imprevista; para Leminski “dele descendem / “macunaíma” / “vidas secas” / “o tempo e o vento” / toda nossa prosa regionalista / até o sertão máximo / “grande sertão: veredas” / onde o gênio de guimarães rosa / dá ao sertão uma dimensão cósmica / num texto rico como os de Joyce / encerrando com chave de ouro / o ciclo mais fecundo da literatura brasileira.” Leminski o lê como se fosse um delicado haicai, A TERRA / O HOMEM / A LUTA, ou tal como o “abc de incredulidade”, texto popular recolhido por Euclides num de seus cadernos, e remonta o gesto de sua própria e incondicional formação zen-marxista-trótskista, ao nos lembrar que a literatura, se imaginada para um impossível, poderia penetrar as massas ou quiçá uma classe popular como força social, o que é muito próximo do que Benjamin também sugeriu como “utopia irrecusável”.

O gesto de leitura de Paulo Leminski é tão inespecífico e movediço que contraria a si mesmo ao dizer que entende que “os textos mais subversivos” de Rosa estão reunidos em Primeiras estórias, “com toda a sorte de violações em relação aos sinais de trânsito da linguagem, não só da linguagem literária mas até da linguagem enquanto veículo de comunicação entre os falantes da língua portuguesa.” Daí que afirme também que se o grande romance de um ocidente suposto tiver sido escrito em basco, ele não há; e que escrever em português e ficar calado, “mundialmente falando”, dá no mesmo: “é mais que basco, mas é muito menos que o espanhol”. E que se há “um caráter jagunçal” na literatura de Rosa é, exatamente, porque ele vibra numa aposta entre a forma e o conteúdo para a construção de um terceiro, “uma força da língua”, quando o escritor não é algoz nem vítima da língua, mas aquele que se lança à escritura com todos os movimentos do corpo em direção à paixão pela língua, pelas línguas. E projeta categórico que Rosa “jagunceia [a língua] por precisão”, tanto que os seus textos vertidos para o alemão, inglês, francês ou italiano perdem, exatamente, diz ele, “o caráter jagunçal da linguagem”. O que acontece com Joseph Conrad, o polaco Józef Korzeniówski, que vai da Polônia para a Inglaterra e, segundo ele, “se britaniza” para tentar gritar na língua do capitalismo colonizador mais violento do século 20. Conrad que, por sua vez, muito bem lido por Belchior, genial cantor das coisas do porão e de um sertão condenatório e outro exímio leitor de Euclides, Rosa e Glauber, aparece com força na canção Coração selvagem e num truque final de uma sobreposição de línguas que todo sertanejo inventa: “Meu bem, meu bem, meu bem / Que outros cantores chamam baby”.

Leminski se perguntava quem, nesse país, lê e, mais ainda, quem no Brasil consegue perceber como lê o que imagina ler. No meio disso não se pode esquecer da grana imperiosa das corporações do mundo editorial para a inserção desse ou daquele livro, o que produz a inexistência de tantos outros, muitas vezes mais interessantes, mais políticos e mais pertinentes.

Jacques Derrida, no seu mínimo e denso Paixões, texto de 1993, diz que amar alguma coisa na literatura é amar um lugar do segredo, algo como “não há paixão sem segredo, este segredo, mas não há segredo sem paixão. Em lugar do segredo: aí, entretanto, onde tudo está dito e o resto nada mais é senão o resto, nem mesmo literatura.” A ideia de que a literatura previa, como sentido e paixão da linguagem, DIZER TUDO, DIZER A TUDO, quando ela é uma paixão sem martírio, para Leminski, já era. Termina na farda, numa conformação, no uniforme, este mesmo que alguns dizedores do sertão, como João Cabral, de família escravocrata, senhora de engenhos, e Guimarães Rosa, mesmo que tenha optado pela vida entre vaqueiros, não tenham conseguido recusar, porque diante da mercadoria nada se recusa, ela é mais rápida, indômita, violenta, legalizadora e legisladora, anula e encerra toda e qualquer paixão. E aí, nem adianta, segundo Leminski, entrar no universo dos José Lins do Rêgo ou das Rachel de Queiroz, esta última uma legítima apoiadora do golpe militar de 1964; nos sobrariam apenas os livros fortes e as tomadas de posição de Graciliano Ramos até o cárcere e depois, liberto, abandonado pela polícia aos trapos e farrafos na esquina do Largo dos Leões com rua Alfredo Chaves, no Humaitá, Rio de Janeiro, porque era o único nome de rua que lembrava e conseguia dizer sem parar. Ironicamente, o endereço da casa de Dona Naná e José Lins.

Um direito da literatura à morte, sem fuga e sem tempo, é que faria do escritor, o poeta, alguém tomado de coragem e fascinado pelo perigo. Mas “os tempos estão difíceis”, diz Leminski, e o poeta já era, acabou. No seu caso, se não tinha a experiência convicta do sertão, a que só é se com o corpo lançado ao espaço como deriva e vulto, justamente como a empenha o poeta, estudioso das coisas da terra e leitor diferido de Rosa, Carlos Augusto Lima, ao menos não foi um signatário efêmero como Mário de Andrade que, na sua travessia pelo Nordeste e pelo Norte, registra risonho um lapso que diz tudo: “Esqueci do Piauí!” E isso está tão posto e imposto que, por exemplo, até os dias de hoje, “não há” nenhuma literatura brasileira produzida nos anos 1970 que não tenha sido escrita apenas entre a praia de Ipanema e a instituição “esses poetas”. A denúncia ao “mal contado” é de que “boa parte da nossa ficção é contabilidade”, de que “o mal é de família” e de que “comparada com o nosso naturalismo pedestre e fotogênico, a ficção latino-americana parece uma literatura que enlouqueceu”. Por isso, Leminski declara que “a última grande fábula brasileira é a de Grande sertão: veredas, […] de lá pra cá nossos ficcionistas se debatem entre naturalismo e a máquina fotográfica.” E é este pequeno “de lá pra cá” que demonstra a ideia imposta de “acarinhar o leitor” e da “forma de sucesso garantida” também numa poesia que é mera “prosa empilhada em versinhos, como está cheio o Brasil”.

Numa mesma modulação, sempre se perguntava quem, nesse país, lê e, mais ainda, quem no Brasil consegue perceber como lê o que imagina ler. E isto numa disposição para remover o imutável: “analfabetismo, alto custo do livro, falta de bibliotecas públicas, falta de preparo, de educação do gosto, de interesse e de procura” e “é a transformação em mercadoria que dá à obra de arte a ilusão de ser ‘livre’.” No meio disso, dessa anestesia, não se pode esquecer da grana imperiosa das corporações do mundo editorial para a inserção desse ou daquele livro, especificamente, o que provoca e produz a inexistência de tantos e tantos outros, muitas vezes muito mais interessantes, mais políticos e mais pertinentes, sem compromissos com uma agenda da hora ou com um vocabulário usual e mímico e nenhuma invenção imaginativa. Não há mais nada que não seja do plano do capital e da violência do que o capital determina em sua dimensão indômita, até – repare-se a ironia – no que deve ou não ser censurado, porque sempre é para tudo apenas o que está à vista imposto por essa mesma violência.

O projeto de leitura do sertão proposto por Paulo Leminski é, por vezes, maravilhosamente anárquico, anarquivista e selvagem; sem uniforme, completamente informe, porque ou se implica hermeticamente o corpo ferido e alegre num contágio com a terra ou é só novela das 7. E isso tem a ver com aquilo que Herberto Helder, que imaginava um Rimbaud impossível porque só seria o que é se for um discípulo ancestral de Godard, chamava de “gramática profunda”, e essa gramática é o princípio e o precipício do que se lê como política e gesto para a composição heliotrópica de uma comunidade: “a transformação mais insignificante de todas”. No entanto, Leminski, corajoso e subversivo como sempre, provocava naqueles idos de 1986: “qual a linguagem que não se escreve? qual é a linguagem em que a poesia nunca chega?” e “não há mais lugar para a paixão, porque a paixão é o desejo projetado para a frente. Não há mais nada lá na frente, apenas o apocalipse. Não há mais frente.” Acertou na mosca.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.