André Gonçalves

Talvez a dança seja a manifestação artística/cultural/expressão/whatever mais adequada para se pensar o nosso tempo. Talvez. É de sua natureza – se é que pode existir uma “natureza” para o que quer que seja – a efemeridade. Cada movimento no dançar é transitório e se encerra no exato instante em que surge. Dançar é desafiar a imobilidade e a rigidez. E, como o ato de dançar implica também no desafiar permanente a qualquer estrutura fixa ou forma preestabelecida, desafia-se, ao dançar, mesmo as noções sensíveis de imobilidade e rigidez: dança-se ainda que em total imobilidade, ainda que em silêncio, ainda que sem a fisicalidade de um “corpo dançante”.

Dança-se com algo que também pode ser corpo, mas que não necessariamente o é. A pessoa-que-dança está submetida a intensidades e forças que a transformam contínua e ilimitadamente, e livre de limitações anatômicas, funcionais: cada microperformance gestual (dançar, quem sabe, pode ser pensado como o ato de realizar sucessivas microperformances desierarquizadas durante tempos não muito claramente definidos) é reinvenção do significado de corpo e estabelece nova relação com o espaço. Não existem corpos “perfeitos” e, evidentemente, muito menos os existem para o dançar: existe o dançar. E existe a possibilidade do dançar.

Uma pessoa-que-dança, dança para criar territórios livres e encontrar algo que não sabe bem o que é.

Como estrangeiro do universo pragmaticamente institucionalizado que podemos chamar de “dança”, permito-me pensar na dança (sem aspas) como um território livre de qualquer código limitante. Cada conjunto de microperformances dá vida a entidade(s) própria(s), com seus próprios códigos e fluxos, não necessariamente submetida(s) a alguma narrativa ou forma preestabelecida. Cada entidade própria cria sua própria territorialidade e se desterritorializa instantaneamente, buscando a conquista de novas territorialidades. Talvez “conquista” não seja palavra adequada, dado seu sentido comum de “vitória” ou de “tomar posse”: a dança não vence, nem domina. Digamos, cada entidade própria surgida no dançar transita como flâneur por territórios que se sucedem em desordem. Daí ser impossível o registro, por qualquer meio, do que seja o dançar. Nenhuma câmera é capaz de seu registro ou aprisionamento em um espaço-tempo: qualquer fotografia ou imagem registra o gesto, capta a performance, mas não consegue apreender a dança – ao menos, o que entendo como dança.

Essa entidade deleuzianamente nômade e rizomática é por muitos compreendida a partir do que se convenciona como jogo permanente entre o equilíbrio e o desequilíbrio – o que é uma maneira dialética um tanto anacrônica de tentar dar conta de sua complexidade. Não há no dançar um “jogo” entre equilíbrio e desequilíbrio: há bem mais fluxos, dinâmicas de mudanças constantes, multiplicidades que desafiam e abalam estruturas fixas e categorias rígidas do pensamento tradicional. Verticalidade, horizontalidade, estabilidade tornam-se referenciais variáveis. Em um mundo em que toda e qualquer noção de equilíbrio está sob abalo, provavelmente sem nenhuma possibilidade de estabilização, no dançar o que acontece são antirrepresentações e engajamentos no processo de transformação contínua que parecem constituir o que chamamos de “hoje”. Tal natureza transitória e deliciosamente impermanente ressoa com nossa condição de viver em fluxos constantes. A efemeridade do dançar, assim, em muito reflete a impermanência de tudo, a impossibilidade de qualquer convicção, facilmente perceptível nessa era inundada pela fluidez.

Dança-se para muitas coisas, especialmente para nada. Dança-se para extrair encontros do acaso, no esforço de corpos não necessariamente “corporais” em desenvolver suas vontades de paixões. Encontros extraídos do acaso são raros. Quantas vezes “encontramos” alguém, e não apenas dividimos espaço com alguém? Compartilhamos tempo e mundo com tantos, e tantos com quem não nos encontramos. Encontros são raros, porque encontrar é estar “junto a”. Mas uma pessoa-que-dança, dança para criar territórios livres e encontrar algo que não sabe bem o que é. Há nisso uma potência de encontro que atrai. Uma das forças do dançar é a possibilidade de se encontrar outras pessoas-que-dançam, e por instantes dividir-se o mesmo território que passa a ser co-criado. Nesse momento, breve e fugaz como um gesto, não apenas compartilha-se: junta-se. Junta-se a.

À questão filosófica sobre o que pode um corpo, podemos acrescentar outra camada: se um corpo em “estado de dança” cria territorialidades transitórias, o que podem vários corpos que dançam ao se encontrarem no mesmo espaço-tempo em busca de desenvolver suas vontades de paixão? Provavelmente não teríamos tempo nessa vida para desenvolver satisfatoriamente essa questão. Mas pode-se propor que, quando se junta um (in)determinado número de pessoas-que-dançam, pode-se criar coisas muitíssimo grandiosas. Se essas pessoas-que-dançam são capazes de buscar outras pessoas-que-dançam para dançarem juntas, e juntas tem a possibilidade de flanarem pelas novas territorialidades instáveis que produziram, pode-se até mesmo recriar uma cidade que, até então, só existia em concreto, asfalto, buzina e medo. Mesmo que essa cidade recriada só exista de forma tão efêmera e transitória quanto aquilo que se inventa no dançar.

Talvez o dançar possa ser o que sobra quando a vida saca suas armas e nos mete uma bala no peito.

Teresina é uma dessas cidades, recriada anualmente a partir do juntar de pessoas-que-dançam. Há 10 anos essa cidade cravada no sertão nordestino brasileiro permite que uma nova cidade surja através das brechas e dos rasgos que microperformances repletas de desejo e irregularidades assistemáticas provocam em sua textura áspera. Uma cidade que passa a existir territorializada por sobre a outra cidade, e que é infinitamente mais acolhedora aos movimentos absolutamente perfeitos em suas incertezas e nas impossibilidades trazidas pelas tantas pessoas-que-dançam que se encontram nesse chão instável que, então, se forma. Nessa cidade recriada em torno do dançar todas as pessoas, por instantes que duram séculos, deixam de ser estrangeiras: elas se encontram na linguagem codificada pelos corpos-que-dançam, numa não-linguagem formal, muito mais eloquente e geradora de conexões que qualquer palavra. Nessa cidade todas as pessoas, mesmo as que por algum motivo se sintam incapazes de qualquer movimento físico-motor que pareça com o que é de algum modo cartesianamente definido como “dançar”, tornam-se pessoas-que-dançam. Nessa Teresina recriada outros fluxos se mostram possíveis. E se realizam. Esse lugar co-criado, por onde essas pessoas-que-dançam flanam (e mesmo as que pensam não dançar enquanto dançam sem saber), desafia a imobilidade, a rigidez, as estruturas, sejam as físicas ou as sociais, muito mais pesadas e destruidoras em seus desabamentos cotidianos. Na cidade “real”, física, caminhamos diariamente na ponta dos pés, por sobre pontas de facas. Na cidade reterritorializada e realizada quando se junta as pessoas-que-dançam, as facas estão nos dentes de quem realiza o ato de dançar.

Dança-se com a faca nos dentes porque é isso que se faz quando tudo parece perdido. Dançar com a faca nos dentes é desafiar o empobrecimento institucionalizado e planejado. É mostrar o dedo do meio para poderes que caminham por sobre os restos dos nossos sonhos, é esfregar nossos corpos em outros corpos que desejamos, é abrir um sorriso para o que ainda não veio. É encontrar novas possibilidades de verticalidade e horizontalidade, estabelecer parceria com a desordem, fazer duo com o imprevisível. E é gostar desse território que se desfaz ao final de cada movimento, mesmo os realizados na imobilidade. Dançar com a faca nos dentes é permitir que os fluxos de desejo e delírios sejam interrompidos e recomeçados em nome da continuidade do próprio dançar. Dançar talvez possa ser a manifestação artística/cultural/expressão/whatever mais adequada para se pensar o nosso tempo. Dança-se como se vive: sem sentido, sem objetivo, sem destino. Talvez o dançar possa ser o que sobra quando a vida saca suas armas e nos mete uma bala no peito. Talvez, o dançar possa ser a única solução para recriar cidades perdidas para o insensível, para o concreto.

Que nome bonito: Junta. Que cidade bonita é criada. Que mundo acolhedor essas pessoas-que-dançam nos permitem fazer nosso durante poucos e fugazes dias por ano. É nesses dias que somos. É nesses dias que existimos e desse lugar que somos nativos. Mesmo quem se sinta incapaz de realizar algum ato que as pessoas inchadas de objetividade possam chamar de dançar tem, nesse lugar, o seu lar. Instável e efêmero. Por isso, vivo.

Faca nos dentes, Junta. Faca nos dentes. Por todas, por todes, por todos nós.