Eryk Rocha não tá a fim de te explicar nada. Seu documentário, escolhido como o melhor na seleção oficial do Festival de Cannes em maio é um filme-homenagem ao movimento que discutiu um novo rumo para o cinema nacional nos anos 50.
Fernanda Montenegro em cena do filme ‘A Falecida’, um dos destaques do documentário ‘Cinema Novo’
Não é um filme para principiantes. Foge do didatismo e os depoimentos que relatam a produção da época, são, talvez, da própria época – não há distanciamento que permita uma reflexão histórica, mas há, sim, um olhar muito crítico. Glauber Rocha, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos (e às vezes, a esse grupo de juntava Vinícius de Moraes e, na França, até Edgar Morin) estão lá debatendo suas próprias produções sem nenhum romantismo.
Para mim o doc é uma espécie de bricolagem – sendo que não estamos falando de amadorismo, mas sim de alguém que de tão familiarizado com o assunto, se permitiu romper, inclusive, com o recorte temporal do Cinema Novo. É um filme para falar de outros filmes, e ele faz isso utilizando menos a linguagem documental e mais a montagem de recortes de cenas, trilhas e falas selecionadas em mais de 500 horas de material (foram nove meses de montagem e três da edição de som, em um projeto iniciado quase dez anos atrás, revelou o diretor).
Cinema Novo é um brinde aqueles que conseguiram enxergar o Brasil em seu contexto de país subdesenvolvido– sem disfarce, sem artifícios. Isso está na pele dos retirantes, na luz natural, na discussão das questões ligadas a nossa realidade. “O Cinema Novo procurou tratar dos problemas do povo, mas não alcançou o sucesso popular”, diz Cacá Diegues, constatando que o movimento foi vítima de seu próprio alvo. Ele observa a sua época, ou quem sabe, a nossa.
Engana-se quem pensa que um repórter deve ser, antes de mais nada, alguém que sabe o caminho a seguir. Obviamente preparar-se rende boa economia de tempo durante um percurso – esteja você conduzindo um carro, um navio, ou só um texto mesmo. De vez em quando, perder-se no mar de informações pode ser perigoso e totalmente útil.
“Quando eu não tiver curiosidade pela vida, é melhor não viver mais”
Não é de hoje o meu preconceito com pautas. Tenho mesmo é um histórico de discriminação e cara feia para muitos assuntos. Na reunião de pauta (e na vida), talvez eu seja sempre aquela no canto, reclamando de tudo. Uma hora, talvez, eu melhore. Mas por enquanto eu vou aceitando e pegando cada ideia com goladas de resignação.
Foi assim que eu acabei indo pesquisar sobre o maior paisagista moderno do século XX, no mundo, o Burle Marx. De quem eu algum dia ouvi, levemente, falar. Fiz meu primeiro contato com alguém – consegui um número. Liguei, queria tudo pra ontem, ela iria viajar. Não sei se foi minha voz triste de um lado ou a presteza do outro, conseguiu me encaixar na agenda. Uma horinha, uma aula, um livro e uma repórter feliz.
Depois vieram outras – “olha eu tenho alguns minutos no fim da tarde antes de uma palestra – e antes deu pegar um voo”. Foi o suficiente. Corri, me perdi, ganhei outro livro. “Fulana também é especialista no assunto, ela pode se juntar a nós”, e a roda foi crescendo, o coração acelerando.
Mais um nome, um telefone, um email, uma sugestão. “Mas por que isso é tão importante?”, a pergunta que inverteu a lógica do eu-pergunto-você-responde. Até agora, a mim parece mais sensato responder: porque, talvez, ninguém nunca tenha perguntado.
Volto a falar com a primeira fonte. “Consegui essa foto!” – mostro no Whatsapp. Era quase meia-noite e estávamos, nós duas, arrepiadas com uma imagem.
Consigo mais três telefones. “Minha mãe falava direto com ele!” – agora me sinto mais íntima, mais perto da história. O quebra-cabeça vai fechando, vai ficando incrível, vai ficando intenso.
Aqui estou no que chamo de lipoaspiração do texto – tira as gordurinhas, corta todo o excesso – e ainda me corrói a ideia de não ter o título perfeito. Não tem fórmula, não tem regra: apenas quando for o certo, você saberá. É sensitivo, quase como os jardins que ele fazia. Vejo mais um vídeo, leio mais um treco passando a vista e opa, “por que eu ia pulando essa linha?”, penso me recriminando. Ali está. Foi a Tarsila do Amaral que disse, mas tenho certeza de que ela não iria contrapor essa homenagem.
É a última hora do dia 4 de outubro, não por acaso, o dia do paisagista, quando finalmente boto o último ponto. Conclui o raciocínio, mais uma história que se fecha, um amor a menos – ou quem sabe a mais – nessa vida.
Realmente, Burle Marx, é preciso curiosidade pra viver.
Passei três dias explicando essa história, mas ok, eu não me canso: Max Brooker saiu da Califórnia de moto e está ha dois anos e meio viajando pela América do Sul. Como essas coisas cósmicas, inexplicáveis, veio parar aqui. E estava sábado, uma da tarde, no Paulim Panelada.
Ele é skatista, e os skatistas são uma espécie de seita, uns maçons sobre shapes, que se reconhecem e ajudam em qualquer parte do mundo. E foi assim que nossa casa virou um hostel. Tudo que sabíamos de Max é que precisava de um lugar para dormir uns dias e que andava de skate. E isso pareceu o bastante.
Oferecemos uma rede na varanda, ducha fria, toalha e cobertor – até parece que alguém precisa desse item por aqui, mas é cortez oferecer. Ele fala um portunhol super aperfeiçoado para quem começou o intensivão ha 4 meses, quando cruzou a fronteira com o Uruguai. As primeiras palavras que se lembra de ter dito foi “banheiro” e “fome”. Naipe sobrevivência.
Eu nunca vou saber ao certo mas não me importo em apostar como os dias de Max por aqui foram mais enriquecedores para mim que para ele. Fizemos cuscuz e ele comia dizendo “muito bom”, surpresíssimo com as pessoas que banham o cuscuz de café e o devoram assim, encharcado. Fomos a um barzinho e, além de nossos amigos, ele também foi apresentado a cachaça Lira.
Enquanto ele confundia a pronúncia de Aracaju com acarajé, nossos empecilhos linguísticos eram muito mais complexos. Eu não conseguia não me sentir estúpida tentando arranhar qualquer frase simples em inglês. No sábado, enquanto ele mostrava no mapa para meu pai os mais de 14 países pelos quais passou, eu preparava tapiocas que não ficaram tão boas mas que ele curtiu e quis saber do que era e como era feito. Confesso que recorri ao Google.
Nesse dia o passeio foi longo: depois da panelada, conheceu o Encontro dos Rios e provou manjubinha frita no Flutuante – disse que era melhor que os grilos que provou no Chile. Fazia 36 graus e quando fizemos a conversão de celsius para farenheit ele quase desmaiou: “Uau!”. A máxima em San Francisco é 25 e as pessoas nem vão trabalhar passando mal, me contou. Ah, vale aqui uma nota para o fato de que eu nunca tinha ido ao Flutuante. Nunca, em 26 anos de Teresina. De repente, Max estava apresentando minha cidade para mim mesmo.
Também teve parada no picolé Amazonas, no Mafuá, onde ele torceu o nariz para bacuri mas adorou o sabor coalhada (menos quando soube que era leite azedo). Mas, entre todas as paradas, elencou o Abraham juice como o the best place. Apontou as teias de aranha nas garrafas de bebidas esquecidas nas prateleiras e disse: “Style”.
Max não era assim alguém exatamente difícil de agradar. As respostas que mais repete em português são “tranquilo” e “de boa”. Reparei que não usa relógio e, na maioria das vezes, saia de casa sem celular. Não havia pressa em partir, nem tampouco o compromisso de ficar. Eu olhava a sua moto estacionada e só via liberdade.
Teve algum momento em que me cansei de perguntar sobre os EUA – acho que foi entre ele sentar no sofá e me mostrar uma porção de fotos dos lugares por onde passou. Chile, Panamá, México, Venezuela, etc. Fogueiras, barraca, estrada, estrada, estrada de novo – a imagem da moto no centro de uma estrada de terra a perder de vista era sua preferida, me confessou: “És como se nunca tivesse un fim”. Novos velhos amigos, cachaça, picos de skate, cachoeiras, montanhas, favelas. Estrada de novo. Foi quando percebi a fluidez de uma nacionalidade. Encontros são mais que carimbos no passaporte e Max há um bom tempo deixou de pertencer a um lugar para ser o mais perto do conceito de cidadão do mundo que eu já conheci.
Max quis saber como era feita a castanha que compramos no semáforo, perguntou porque os prédios por aqui são azuleijados (?) e me explicou porque carambola chama-se starfruit in english. Talvez tenha sido pouco tempo, talvez acreditamos que esse tempo podia parar quando vimos o sol nascer na piscina, discutindo a ocupação da América pelo homem pré-histórico (“Do you know Niede Guidon?”). Ele parecia tão curtido.
É estranho pensar que não sabemos se um dia nos veremos de novo – ignorando o fato de que sequer imaginei um dia conhece-lo. E, de repente, agora, a ideia de perde-lo soa triste. Max adora fotografia e por todos os cantos dessa casa tem uma câmera, o que torna muito patético pensar que não tiramos sequer uma foto. Mas não chego a lamentar, porque fotos não conseguiriam reproduzir o seu sotaque nem sequer trariam o jeito esquisito de franzir o olho esquerdo quando se enrolava pra dizer algo até ceder: “Ah, non sei”.
As 3 da tarde ele partiu sem olhar pra trás.
Preciso urgentemente escrever algo que responda o que é cultura e estou seriamente pensando em mandar esse texto.
É aquela velha história: um dia você está aqui, e amanhã tudo muda de novo. Que coisa esquisita pensar que mudar o curso tem sido a constante dos meus últimos anos. E daí que rumo aos 30 eu resolvi virar essa pessoa impulsiva. Comprando passagem de véspera, disposta a acordar sem destino, mudando de fila no caixa do supermercado.
Tudo é tão arriscado e eu sei disso, mas ainda preciso aprender a lidar com um monte de sensações. Fracasso, insegurança, saudade – tudo é natural da perda, diz minha analista. Mas o que exatamente estou perdendo? Eu o abandonei, ou apenas deixei ir para onde quer que fosse? Qual a diferença exata entre não querer mais ou não querer agora? O que separa um pra sempre de um pelo tempo que durar?
Passa rápido, alguém dirá, tentando convencer-me da efemeridade de qualquer coisa menos importante para ele do que pra mim. Rápido é bom, mas pode ser ruim também. Eu não entendo, há cinco dias minha medida de tempo era um trator passando em cima de mim e me soterrando com as segundas-feiras mais difíceis de toda a história das segundas feiras. Hoje, abri mão do relógio. E tô boba que ninguém reparou ainda mas, congelamos na terça.
O que mudou, vocês sabem, foram vários nadas. Tirando o fato de que finalmente retirei minhas Piauí do plástico, organizei livros na prateleira por tamanho, fui numa loja de discos as três da tarde. Quem sabe nada disso fosse urgente. Quem sabe fosse crucial para eu estar existindo agora.
Pensei em viajar – talvez tenha tentado convencer alguém – mas todo mundo segue ocupado demais vivendo a vida para a qual eu acabara de pedir licença. Um dia cercada de gente e certeza, noutro sozinha, inventando as dúvidas.
As tardes estão quentes demais para fazer sexo, mas talvez seja bom quase morrer para sentir-se vivo.
Conheci Chandelly produzindo a Revestrés#24. Minto. Conheci primeiro o Dackson numa noite qualquer no Campo e disse “quero, por favor, ver você montado”.
Ele não ficou eufórico, disse apenas um “vamos marcar”. Trocamos telefones. Marcamos e desmarcamos várias vezes. Até que um dia rolou isso.
Na última semana, todo dia Montaria aparecia na minha timeline. Eu tinha que sair da toca para ver isso, mas talvez não pudesse. Até que o amigo Áureo Júnior escreveu: “Hoje vi Dackson montando Chandelly, vi Chandelly montando Dackson. Vi também um animal montado no homem que virava o bicho e vi uma bicha montada na mulher virada num homem…”.
Eu tinha que dar um jeito.
Fui no último dia de apresentação do espetáculo financiado pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna. Um anfiteatro improvisado numa das salas da Escola Estadual de Dança Lenir Argento. Chandelly recebia o público intimista, distribuindo um souvenir. Tirava fotos e cumprimentava amigos. Às 20h15 agradeceu a produção, destacou a presença de sua mãe na plateia e recomendou desligar os celulares. Bom espetáculo a todos.
E então, meus amigos, aconteceu o transe. Na sala iluminada somente por luz negra não conseguimos definir quem aparece nu. Dackson, Mikael, Chandelly está lá completamente seguro e despido de qualquer pudor.
A narração de sua trajetória é engraçada e comovente. Parece que estamos interrogando-o num papo informal, e, descontraído e a sua maneira, enquanto mostra total domínio e habilidade com o corpo, a voz do artista vai levantando questões que passam pelo preconceito, aceitação, bullying, homossexualidade, poliamor, didáticas questionáveis (a professora que tampou sua boca com fita adesiva), democracia (a metáfora quase infantil é ótima) e legitimação da arte (“o governo apoiando um viado”).
Depois o autocontrole parece sumir e Dackson é então dominado por outro ser, que surge na confusão entre a música, o neon e o jogo de luz e sombra proporcionado pela solução simples e de efeito fantástico da produção de Adriano (“ele é a alma da Chandelly”). O artista nos encara e a linguagem já é dispensável para entendermos as sensações.
Destaque para o corpo escultural da(s) criatura(s), completamente perfeito em qualquer instância momentânea que pretende ocupar: homem, gay, drag, mulher. Não há sobras, não há déficit. É um corpo belo em movimento pleno e preciso.
O espetáculo acaba e estamos, todos, emocionados.
Fiquem de olho em Chandelly.
Fiquem muito de olho em Chandelly.