IMG_4465Dackson Mikael de Sousa Rodrigues é um rapaz de 24 anos, bailarino e orientador social. Moreno, 1,77 de altura, olhos castanhos e cabelo raspado, veste bermuda e uma camiseta do Mickey. Tem fala mansa e se apresenta tímido ao chegar no estúdio – é fim da tarde de sábado e a sacola que carrega esconde muitos figurinos para uma sessão de fotos que logo começaria . Talvez você o conheça por outro nome: Chandelly Kidman, a drag queen.

Uma brincadeira entre amigos tornou a vida de Dackson badalada nos últimos seis anos. “Eu estava na casa das Five Queens, um grupo de amigos gay muito famoso em Teresina. Elas estavam se montando para ir a boate, chegar juntas, causando, e perguntaram se eu não queria ir”, conta dividindo olhares de cumplicidade com Adriano Abreu, quem o batizou com este nome aquela noite – Chandelly vem mesmo do iogurte e Kidman é uma homenagem a atriz que admira. “Foi a primeira vez que me montei”.

IMG_4469O resultado agradou e desde então foi incorporado a identidade de Dackson. De boate em boate no circuito gay em Teresina, o transformista começou a participar de concursos de drag – o primeiro foi Pantera Gay, em 2012, seguido do Top Drag Brasil, cuja vitória lhe rendeu, no ano seguinte, a ida ao concurso Brazilian Drag, em São Paulo – o maior na categoria. Chandelly desbancou mais de 20 estados brasileiros que mandaram suas representantes. Dublando “Applause”, da Lady Gaga, Chandelly venceu e ficou conhecida pela maneira frenética com que é capaz de “bater cabelo” e “dar estrelinhas” no palco – uma performance ousada e surpreendente para as drags.

O prêmio oferecido era uma viagem a Buenos Aires com acompanhante e tudo pago, mas Dackson preferiu o dinheiro. “Não lembro quanto foi ao todo, mas deu pra ficar bem riquinha”, comenta. Foi o suficiente para investir alto nas produções: há looks da Chandelly que chegam a dois mil reais, somando tecidos, pedrarias, acessórios e sandálias extravagantes. “O que eu queria com os concursos era visibilidade, e nesse mundo ela só é conseguida através dos títulos”, explica.

IMG_4474Funcionou. Após vencer o telefone pouco parou de tocar. O número tímido de amigos no facebook hoje passa dos quatro mil. Os convites para eventos também deram uma guinada: palestras, festas de aniversário, lançamentos, inauguração de lojas. “Hoje faço até presença vip”, diz sorrindo.

O título trouxe uma natural inflação no cachê: afinal, os detalhes na transformação são minuciosos. Adriano é namorado e produtor de Chandelly – é ele que pensa os looks, monta a performance, organiza a agenda, além de ser o maquiador oficial. Os dois se conheceram anos atrás, quando Adriano namorava outro bailarino que, por acaso, era amigo de Dackson. “Mas eu lembro, ainda criança, indo a um passeio de escola visitar a Casa da Cultura. Lá vi um bailarino do cabelo vermelho que me chamou muita atenção. Era o Adriano, mas ele nem deu bola para mim”, conta.

Aos 30 anos, Adriano desmente a história. “Mentira, você não era tão criança assim”, sorriem. “De fato eu não lembro, mas quando Dackson começou a dançar, muita gente me dizia que ele se parecia comigo”, diz o produtor. “Ele começou a frequentar a nossa casa e eu achava ele muito pentelho”, diverte-se lembrando. Quatro anos depois, os dois dividem a relação com José Nascimento – o namorado de Adriano aceitou a situação e os bailarinos vivem hoje o que definem como uma “relação normativa a três”. “É tipo dona Flor e seus dois maridos”, brinca Dackson. “No caso, a dona Flor é o Adriano”.

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A sintonia cresceu, sobretudo, com o trabalho de produzir Chandelly. “No começo eu queria ditar mais as coisas, mas depois eu fui cedendo, confiando mais e buscando inspirações nela mesmo”, conta Adriano. “Eu era muito tradicional”. Chandelly não combina com os padrões. “Usamos pouco volume, tento valorizar o corpo dele”. Seios moderados, lente de contato cristal, os cílios e as unhas são alguns dos elementos postiços. A bunda é item de cobiça e ela provoca: “É natural, pode apertar”.

Enquanto começa a preparar a pele – a maquiagem é a etapa mais demorada do processo e pode levar mais de uma hora entre truques, desenhos e sombras para chegar a feição feminina – Dackson conta que estava insatisfeito com a vida de shows e glamour. “Estava na hora da imagem da montada ocupar outros lugares, ser politicamente ativa”. Em 2015 acompanhou travestido a Marcha para Jesus, evento de cunho evangélico, com um cartaz dizendo: #JesusMeAma. “Foi muito impactante. Não ouvi críticas nem xingamentos, mas senti os olhares de ódio”.

Logo surgiu o convite para ser juíza oficial da 1ª Gaymada Teresina – uma disputa do jogo de queimada que tenta integrar o público LGBTTT e a sociedade de maneira divertida. “Eu achei fabuloso porque é um evento que já acontece em todo o Brasil, ocupando espaços públicos, e que traz um olhar sensível para a nossa causa, luta contra a homofobia”, afirma Dackson.

No início deste ano, a segunda edição do evento deu margem a uma polêmica nas redes sociais: indignada com a centena de drags que ocupou o Parque Potycabana numa tarde de sábado, uma advogada fez comentários e posts ofensivos no facebook. “Triste homem querer ser mulher e mulher querer ser homem”, bufou completando: “Façam o que quiserem mas deixem nossas crianças em paz”. “Ela é louca, eu trabalho com crianças!”, esbraveja Dackson. “Além do mais, equivocada. Eu nunca quis ser mulher”.

O desejo pela figura feminina é meramente visual, explica o transformista. Uma das suas primeiras lembranças, de infância, é rodar no quarto vestindo uma saia verde da mãe, escondido. “Era de lambada, linda”, recorda. Também amava o batom, mas pouco se aventurava a passar com medo de ser surpreendido pela avó.

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Dackson passava o dia com a avó materna, dona Teresa, no bairro Dirceu I, enquanto a mãe, Rosângela, trabalhava como vendedora no centro da cidade. Até os 12 anos, não conhecia o pai. Somente aos 16 ganhou o nome dele no registro – na mesma época ganhou também uma irmã mais nova, fruto de um novo relacionamento de sua mãe.

Frequentou escola pública comandada por freiras durante todo o ensino fundamental. “Eu sempre fui afeminado, mas eu era tão atentado no colégio que eu acho que os meninos pensavam que era um jeito caricato”, tenta explicar o fato de nunca ter sofrido bullying. “Eu também sempre fui muito de enfrentar. Hoje mesmo, as crianças pra quem dou aula no projeto Integrar me imitam e eu digo logo: ‘menino, eu sou viado mesmo’, e aquilo não me intimida de jeito nenhum”.

O projeto, mantido pela ASA (Ação Social Arquidiocesana), leva dança recreativa para crianças de comunidades em situação de risco. Muitos ali não sabem que Dackson é Chandelly, nem tampouco do lado ativista social da figura. Ano passado, ao acompanhar a avó no tratamento de um câncer, Dackson sentiu que podia fazer mais por aqueles pacientes. Junto a Rede Feminina de Combate ao Câncer, desenvolveu o projeto “Chandelly Kid”: uma vez por mês, travestido, ele visita os hospitais levando artistas convidados e uma dose de autoestima para crianças e acompanhantes. “A gente sempre pensa um show mais lúdico, tipo musical, O mágico de Oz, essas coisas, porque eu ficava cheio de dedos desse mundo de glamour para crianças em tratamento”, comenta. “Depois eu fui criando laços e perdendo o tabu”, relata feliz. Em seu facebook há dezenas de fotos de crianças experimentando as exuberantes perucas de Chandelly entre sorrisos. Na última visita, uma surpresa: uma paciente de oito anos pediu para que juntas dançassem Beyoncé.

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Os shows no hospital são em formato diferente daqueles que Chandelly faz na noite. Nas boates, a apresentação segue o estilo teatro revista: são performances de dublagem e dura o tempo de uma música – ela já chegou a cobrar até mil reais por apresentação. Nada mal para o trabalho de garimpo que há por trás da escolha das peças que compõem cada look para cada ocasião. Chandelly tem muitas peças exclusivas, entre roupas com pedrarias bordadas manualmente e acessórios como um colar-gola confeccionado por Adriano só para ela. “Já botaram preço em muitas dessas peças, mas não conseguimos vender”, diz o produtor enquanto mostra alguns dos adereços. Na casa do trio, um dos cômodos é destinado a guardar os figurinos de Chandelly. Coroas, botas, perucas, vestidos e meias lotam o quarto closet, despretensiosamente bagunçado. Chandelly repete roupas? “Para o mundo, não”.

Já com o body estampado em cores vibrantes, Chandelly finalmente desponta do banheiro do estúdio onde iniciaríamos as fotos para esta matéria. Cabelos loiros compridos com mechas laranja, lábios carnudos cor de rosa, não deixa nem a sombra do Dackson que há pouco habitara aquele corpo. Com o traje vem também os gestos, a nova voz e toda a sutileza feminina ao conferir a pintura das unhas.

Adriano ajusta a última das doze tirinhas de strass que compõe a sandália do look enquanto admira o namorado. “Mikael tem muito talento, mas ainda não sabe dominar completamente”, pontua. “Faz parte da personalidade dele, impulsiva. É genioso e mandão, mas tem hora que parece um bebezinho”. Do alto do salto 15 – Dackson calça 41, mas é em um modelo 39 que Chandelly tem que se virar – a drag finalmente aparece sem vestígios do seu lado masculino – bonita, sensual e sem temores, demonstra intimidade com a câmera. Sugere poses e pede música. Beyoncé na caixa e de repente o lugar fica pequeno: a presença de Chandelly preenche todos os espaços. E quando ela se vai, permanece no ar – é que sua marca é também olfativa pois Chandelly usa sempre o mesmo perfume: o Fantasy, de Britney Spears. Doce, a fragrância, tão qual a imagem, nos leva para um mundo de fantasia e sedução.

(Publicado na Revestrés#24)