Texto e fotos: Ohana Luize
Viver com uma simplicidade profunda, capaz de viajar entre a dor e o encantamento. Com amor aos rios, devoção à São Francisco, apreço pela natureza e fidelidade às palavras da mãe. Com marcas de uma realidade com poucos recursos e muitas memórias, transitando por suas emoções para discutir temas essenciais da vida. Assim é o personagem Francisco, do espetáculo “A vida é o que é”, peça dirigida pelo piauiense Luciano Melo, com elenco composto também por João Pedro Veloso (cantor e compositor) e Iara Patrícia (atriz e assistente de direção).
Na peça, com cerca de uma hora de duração, o público conhece Francisco, interpretado por Luciano, em uma visita às memórias de infância. Ele fala de suas descobertas, reconhece forças e fraquezas, além de experiências intercaladas entre solidão e pequenas alegrias.
Para um espectador teresinense, a identificação com o personagem e a história acontece de forma imediata. A escolha das palavras, a descrição de lugares e hábitos cotidianos, criam a atmosfera de aproximação. No entanto, a narrativa não se restringe ao local e dialoga com todos que estejam dispostos para este convite à reflexão sobre angústias tão comuns da vida.
A fé, simbolizada pela presença constante de uma imagem de São Francisco, representa a postura resiliente do personagem que, para o autor, poderia ser um ideal de vida que todos podem almejar.
“Com Francisco nós falamos da relação da humanidade com a natureza, com a política, com os seus semelhantes, da relação com a mãe e de todas as mulheres que se preocupam com a vida dos seus filhos. Isso com um chamado para as pessoas de que é possível outras formas de olhar e dar sentidos às experiências, por mais banais que sejam”, diz Luciano sobre a criação, que se inspira em pessoas comuns. “Para mim Francisco é até um projeto de vida. Um homem que quero ser”.
Francisco, interpretado por Luciano Melo, em uma visita às memórias de infância, fala de descobertas e reconhece forças e fraquezas, além de experiências intercaladas entre solidão e pequenas alegrias.
O pequeno universo apresentado ao público não é uma prisão para Francisco, pois sua liberdade se mostra na relação de confidências que estabelece com o personagem Anjo. Este pode ser interpretado como um outro eu, como um amigo ou como uma criação da imaginação.
A peça já teve duas temporadas no Laboratório de Artes da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), no campus Torquato Neto (Teresina-PI), além de outras diversas apresentações. São duas interpretações para o personagem Anjo, inicialmente por João Pedro Veloso e, posteriormente, por Iara Patrícia.
Com João, o Anjo carrega um violão, vestes claras, olhar celestial, uma companhia observadora, e a interpretação das canções escritas para a peça. Na atuação de Iara, o Anjo tem tom intimista, uso constante dos movimentos do corpo da atriz para criar conexões com as dores e dilemas de Francisco. Experiências construídas de maneiras distintas, sendo uma boa oportunidade para o público que já conferiu as duas versões.
Cantor e compositor, João Pedro estreou na atuação com o Anjo de “A vida é o que é”. Atualmente se mostra um ator sonhador e que defende a arte da interpretação com a responsabilidade de dialogar e impactar a vida das pessoas. Sobre o personagem ele diz: “hoje vejo que o anjo desenha aquilo que o Francisco imagina o que seria a vida. Ele consegue expandir a mente e vai longe, pensa nas questões da pobreza, das perseguições, naquele espaço limitado, mas que entende os diversos lados da realidade”.
Já Iara assumiu o papel saindo da função de iluminadora para ocupar o palco ao lado de Luciano. “Estou entendendo mais de toda essa linguagem que comunicamos no espetáculo. Assim como as canções, a relação dele com o anjo, e toda essa atmosfera doméstica que temos na peça. Tenho muitas identificações pessoais no espetáculo que tocam em lugares muito bonitos”, revela Iara.
Em todo o espetáculo, cores suaves de tons esverdeados iluminam o cenário. As roupas são em tom de branco e apenas o vestido da mãe é diferente, constantemente iluminado, trazendo a centralidade dela na vida de Francisco. Objetos como estantes, uma grande mesa, plantas e a imagem de São Francisco são elementos fundamentais para que o protagonista vá narrando sua história. Tudo se harmoniza de forma simples, para fazer o público se sentir em casa.
Desafios e engajamento do público local
Fazer teatro e manter o formato de temporadas não é tarefa fácil. Em muitos momentos o grupo se deparou com dificuldades para vender a proposta – não só do ponto de vista comercial, mas para difundir a ideia de frequentar o teatro, de forma gratuita e com artistas locais. Além do investimento pessoal, o grupo conta com um único patrocinador.
Como fazer as pessoas assistirem uma peça de teatro gratuita, mas sem grandes patrocínios e investimento em publicidade? Como fazer essa paixão pela arte resultar em público engajado na proposta? Com o passar dos meses de apresentação, o perfil oficial do espetáculo no Instagram (@avidaeoquee_espetaculo) e o perfil do próprio diretor, Luciano Melo, foram o espaço encontrado para levantar esse debate.
Como fazer as pessoas assistirem uma peça de teatro gratuita e sem investimento em publicidade? Para Luciano Melo, a mídia deveria falar de trabalhos de forma mais detalhada, contando o processo de criação artística, e não apenas divulgar agendas culturais.
Luciano, que retornou aos palcos com esse espetáculo após anos de dedicação exclusiva à docência, relata que a dificuldade faz parte de uma problemática que envolve não apenas o teatro de Teresina e do Piauí. Nestas opiniões, ele manifesta que os espaços de mídia deveriam divulgar trabalhos de forma mais detalhada, contando o que acontece dentro do processo de criação artística e sugere a divulgação das artes para além das agendas culturais. Ele ainda chama a atenção para a necessidade de um teatro acessível e próximo das pessoas, não limitado a espaços tradicionais ou somente no centro da cidade.
“É uma aflição e a gente pensa muito nesse sacrifício todo também. Eu ficava lá no camarim afinando o violão e torcendo para ouvir o barulhinho da porta abrindo. E quando eu ouvia, pronto, eu já sabia que era alguém”, lembra João. Mesmo iniciante nesse universo, ele percebe que o trabalho só se completa na interação com o público e, em muitos momentos, relata que no início a ansiedade tomava conta dos bastidores na incerteza da presença de plateia.
“Nós ainda não tivemos um público em grande quantidade, mas o público que nos assiste é grandioso. Nós conseguimos fazer aquela magia do teatro acontecer com uma pessoa, com dez, vinte… A falta desse público numeroso não é por falta de qualidade estética”, acredita Iara Patrícia.
Continuidade do projeto
Apesar do olhar crítico em relação ao cenário teresinense de incentivo às diversas manifestações artísticas, o grupo planeja novos projetos. Após o encerramento das temporadas na Uespi, as apresentações de “A vida é o que é” seguem em outros espaços conquistados em parceria com escolas e instituições de ensino em Teresina e outras cidades. A agenda é divulgada pelo perfil no Instagram @avidaeoquee_espetaculo.
“Sinto que é preciso que as pessoas entendam o que é teatro. Muitas acham que é uma brincadeira onde alguns atores sobem no palco, se fantasiam e criam alguma coisa. E teatro é muito mais do que isso. O teatro tem toda uma visão de mundo, de sociedade, tem uma visão profunda sobre os seres humanos que estão ali em processo, até transformar a ideia em arte, de transformar tudo isso em beleza”, declara Luciano Melo.
É um chamado para as pessoas de que é possível outras formas de olhar e dar sentidos às experiências, por mais banais que sejam. Para mim, Francisco é até um projeto de vida. Um homem que quero ser”. Luciano Melo
Essa persistência já rendeu reconhecimentos da cultura local. O musical foi vencedor de dois prêmios de melhor ator (Troféu “Em Cena” e “Melhores do Teatro Piauiense”) e o de melhor cenografia (“Melhores do Teatro Piauiense”) em 2023.
Nesse encontro com as dores, crenças, afetos, emoções e sonhos, “A vida é o que é” é um espetáculo com “palavras que doem como um ferro quente” – como diz um trecho do texto original. É como assistir um retrato da vida em cena, seja revisitando memórias com olhar de menino ou voando nas asas de um anjo.
A vida é o que é – Ficha Técnica
Indicação: livre
Autor: Luciano Melo
Direção: Luciano Melo
Assistente de direção: Iara Patrícia
Elenco: Luciano Melo, João Pedro Veloso e Iara Patrícia
Figurino: Luciano Melo e Carla Sena
Cenário: Luciano Melo
Trilha Sonora: João Pedro Velolo e Luciano Melo
Iluminação: Iara Patrícia, Fran Lima
Adereço: Luciano Melo
Fotos de divulgação: Max Wendell e Dyego Lisboa
Instagram: @avidaeoquee_espetaculo
“Francisco, ao longo do espetáculo, dialoga com seu amigo Anjo sobre suas vivências da infância: mãe, escola, colegas, rio, São Francisco, natureza, roda gigante, política, vida, morte. Neste exercício de rememorar, o público é convidado a visitar algumas de suas próprias memórias. Ao longo do espetáculo, Francisco e plateia reinventam suas vidas a partir de uma auto peregrinação por emoções e sentidos construídos ao longo da vida”.
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