Um sobrado azul num beco acolhedor parecia, ele todo, nos esperar no bairro Butantã, oeste de São Paulo. Ouço um assovio do alto – pela janela entreaberta o sol da tarde ilumina um rosto risonho: “Olha que gatinha!”. Não é uma cantada qualquer, eu sei. De óculos escuros, boina e vozeirão inconfundível, Di Melo está vivo e faceiro.
O cantor pernambucano leva uma vida discreta na casa em que divide com dona Jô e Gabi, a filha do casal. Simpática, é Jô quem administra a carreira do músico, retomada em bom ritmo nos últimos dois anos. Em 2009, Alan Oliveira e Rubens Pássaro procuraram Di Melo, em separado, com a proposta de realizar um documentário sobre ele. Foi o cantor que juntou os dois, e o documentário em parceria saiu no ano de 2013 – “Di Melo, o imorrível”, tem 25 minutos de duração e está disponível no Youtube.
A ideia de procurar saber como vive um dos maiores nomes da soul music brasileira surgiu quando, naquele ano, uma publicação destacava Di Melo como uma das dez melhores vozes do planeta – mas que, lamentavelmente, tinha morrido num acidente de moto. “Um amigo jornalista me ligou de Londres pra contar que eu tinha morrido e eu disse: pois esqueceram de me avisar”, brinca o cantor na cozinha da casa, onde nos recebe.
Quarenta anos após lançar o LP homônimo, ele finaliza um disco de inéditas, prestes a sair – a parte dura foi escolher 11 entre as mais de 400 canções que mantém em um caderninho. Di Melo gosta da noite como inspiração. Em geral, letra e música vem juntas e misturadas. Tem facilidade para compor em parceria – com alguns mais, outros menos. Só com Geraldo Vandré são 12 canções, nunca gravadas.
Mas onde esteve Di Melo por todo esse tempo? – pergunto sentada à mesa redonda onde a família costuma fazer as refeições. Ao lado da pia, um micro system e pilhas de CD provam que as tarefas domésticas são movidas a música. O cantor responde enquanto nos oferece bolo de milho cremoso, café, suco de acerola. Ele mastiga e conversa com desenvoltura.
“Estive por aí, em movimento. Quem fica parado é poste”, exclama. “Eu sou um andarilho”. Di Melo fala como se fizesse música. Conta que ficou frustrado ao receber somente 11 cruzeiros após o estouro do seu primeiro – e hoje raríssimo – disco nas rádios.
Ele nasceu em Recife há 65 anos e foi lá que começou a fazer artesanato para vender nas feirinhas do Pátio São Pedro. No Recife antigo, ainda rapaz, de viola na mão, tocava nas esquinas para levantar um trocado. Ali topou com Jorge Ben que, reconhecendo algo especial no timbre e no suingue do jovem, lhe pediu um cartão. Foi ele que fez a ponte para que Di Melo fosse empresariado por Roberto Colossi, o bambambam da era jovem guarda.
Quando o empresário morreu, Di Melo passou a tocar na noite – pausa para o pão de queijo. O artista escuta de longe a buzina do vendedor que desce a rua com o pão mais quentinho do bairro. “A Gabi adora esse pãozinho”. E dá-lhe mais café, mais suco, mais pão de queijo.
O autor de “Kilariô” e “A vida em seus métodos diz calma” tocava em uma cantina italiana. “A comida era péssima, mas a diversão era garantida”, relembra. O lucro da noite esvaía-se nela própria. “Foi Gabi que me trouxe a necessidade de fazer algo. Eu olhei pra cara dela quando nasceu, tão bonitinha, e senti que precisava mudar de vida”.
A filha do casal tem oito anos e chega da escola no fim da tarde. Ela faz aula de canto e não nega a quem puxou o talento vocal. Jô, além de assessora e empresária do marido, é dona de casa e mãe dedicada. Ela não acreditou quando em fevereiro de 2005 leu no horóscopo do jornal: “taurina, nesse carnaval você encontrará seu grande amor”. “Sorri e comentei com minhas amigas da loja onde eu trabalhava: só se for lá em casa, porque eu não vou a festa alguma”. A festa foi até ela. Na rua em que morava, no bairro Pinheiros, ela saiu à porta para ver uma batucada que passava. Um sujeito na percussão lhe encarava com piscadelas e beijinhos. “Pensei: é o homem mais feio que já vi na vida”.
Do desdém a primeira vista, vieram os encontros, as saídas, e o casal nunca mais se desgrudou. “Di Melo é desse jeito aí, uma criatura inacreditável”, diz Juvenilza, apelidada carinhosamente de dona Jô. Ela administra a página de Di Melo no facebook e toca a agenda de shows do marido, que tem estado cheia nos últimos tempos.
Aconteceu que o disco clássico de 1975 caiu nas graças de DJs do mundo todo – ele foi descoberto nos sebos e vendido como pão. As faixas mais conhecidas integram coletâneas de soul music internacionais e o disco virou artigo de luxo dos colecionadores – pela raridade, o LP é vendido a 600 euros. Um dos responsáveis por esse boom mercadológico do disco foi sua aparição no clipe de Don’t stop the party, do grupo Black Eyed Peas.
Levaríamos outra matéria inteira para explicar porque Di Melo (EMI/Odeon, 1975) virou um sucesso quase quarenta anos depois do seu lançamento. O cantor lançou outros nove discos depois, mas nenhum alcançou o sucesso do primeiro – com participacões de peso como Heraldo Dumonte (violas e violões), Hermeto Pascoal (flautas e teclados) e Cláudio Beltrame (contrabaixo), virou uma obra-prima da black music brasileira, mas vai muito além: há faixas de tango, jazz, samba-rock, somadas ao timbre incisivo e ao sotaque pernambucano do cantor.
O plano é repetir o sucesso – sobretudo entre os jovens que lotam os shows atuais – do primeiro disco com “Di Melo – imorrível”, que vem aí. Produção independente, gravada no Cazona Estúdio, em Pernambuco. Uma das faixas traz particpação de B. Negão, e Di Melo nos bota para ouvir em primeira mão. As preocupações com a natureza e com a cidade parecem ter acalmado, embora o suingue permaneça. “Mas o Di Melo é mesmo uma pessoa mais calma hoje”, comenta Jô. Seguiu o mantra que ele próprio inventou: a vida em seus métodos diz calma.
A entrevista chega ao fim porque a dupla partiria algumas horas mais tarde para Belém onde, no dia seguinte, Di Melo se apresentaria na festa “Black Soul Samba”, no Açaí Biruta. Nos despedimos, não sem antes conhecermos a casa – tomada de quadros e obras de arte que Di Melo coleciona, troca e vende. “Nunca me achei com nada que não se relacionasse a arte”. No quarto, sem cerimônias, ele começa a fazer a mala, tirando da cômoda várias camisetas com estampas divertidas, convenientes ao armário de um adolescente. “O Di Melo é uma criança”, avisa Jô. Ela contém os gastos excessivos do marido – vaidoso e impressionado com perfumes, naquela tarde mesmo havia deixado mil reais numa loja de fragâncias importadas.
Ele autografa nosso disco – na terceira prensagem, o épico LP pode ser adquirido por 250 com o casal – antes de nos despedirmos, desejando um “feliz tudo o tempo todo”. E mais, diz a dedicatória: “se emprestar, jamais voltará”.