Luana Sena

Amar e escrever à máquina

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Diz que fui por aí

Tenho uma amiga que trabalha dois turnos, malha, faz balé, prepara a própria comida e ainda faz a sobrancelha no salão a cada quinze dias. Eu admiro, queria estar: no peso ideal e por dentro das polêmicas do facebook. Meus outros amigos que não trabalham ou estudam (porque ninguém é obrigado), estão por aí acompanhando a agitada vida noturna da cidade, o que, também admito, exige invejável esforço.

Tem essa sensação, que é muito real e cruel, do mestrando ver a vida passando ao seu lado e só observar. Sim, é verdade. E olha que eu só tenho aula três vezes na semana, pago um estágio e faço uns freelas. Minha ex-chefe terminou o mestrado dividindo a rotina com três empregos, dois cachorros e uma dissertação – e estava sempre maquiada, vestido passado e disponível 24h no whatsapp.

Eu não tenho uma meta, sempre estou a um passo de perder os prazos. Mas isso não quer dizer que não me esforce. Assim como eu, meus livros sempre chegam com um mês de atraso às discussões, minhas roupas perderam as expectativas, a sobrancelha saiu da linha e minha bicicleta cansou de esperar o dia em que sairia para passear.

Lembrando um pouco de que sim, um mundo externo existe, de vez em quando vale a pena pegar o carro, cair na estrada, e ver o mundo sob a ótica da embriaguez. É ali, numa bodega de calçada, com meia dúzia de pessoas escolhidas a dedo, que você se dá conta do quanto é pertinente debater a origem semântica do “ó do borogodó” e se o método de almoçar criando barreiras entre os ítens no prato – ou misturar o feijão com o arroz até que não se distinguam – diz algo relevante sobre o jeito de ser de cada um de nós. Dadas as conclusões, pode voltar para casa sentindo-se vivo – como o cão que quase salta a janela ouvindo o vento passar, fechando os olhos, sorrindo.

Tem algo de muito urgente e belo em tudo isso.

No rádio do seu coração

(foto: Mauricio Pokemon)

(foto: Mauricio Pokemon)

Parece hoje, fechar os olhos e lembrar da viola de madeira verde do mau pai, tocando os primeiros acordes de Preta Pretinha. Do alto dos meus quatro ou cinco anos, eu bateria em qualquer um que me dissesse que aquela canção não era nossa.

“Eu sou um pássaro que vivo avoando…”

Anos depois eu captei alguém dizer: “toca aquela do Moraes Moreira”. Aprendi aquele nome – e que, apesar da gente pegar pra si, as músicas tinham dono.

Já adolescente eu me encantei pelos Novos Baianos, os filhos de João. A loucura de morar num sítio com menino e música, gastar a grana do disco com chuteira e bola, morar num ap no Rio com o lendário quarto da bíblia (tudo isso tá aqui nesse doc, que você não deve passar por essa vida sem ver). Eu queria ser da turma deles, sorrir e cantar como Bahia.

(foto: Mauricio Pokemon)

(foto: Mauricio Pokemon)

Assistir Moraes Moreira ontem foi revisitar essas memórias. O som da infância. A trilha sonora da saudade. O show “Anos 70 e hoje” trouxe um repertório pra agradar todas as gerações – de “Mistério do Planeta” (Moraes Moreira / Galvão) a “Flor do desejo” (Fausto Nilo/Moraes Moreira/Pepeu Gomes). Todos os maravilhosos frevos, entre eles o imortalizado por Gal Costa, “Bloco do prazer” (Moraes Moreira/Fausto Nilo), que transformou o Teresina Hall num baile de carnaval. Depois veio “Sintonia” (Morares Moreira) e até homenagem a Teresina com “Cajuína” (Caetano Veloso).

O show é parte de um projeto dos Correios, “Pombo Correio”, que passa por cinco capitais e tem uma contraproposta social: na véspera, Moraes fez uma apresentação fechada na Associação dos Cegos do Piauí (Acep). Além disso, os Correios selecionam cartas de pessoas separadas pela saudade e promovem o reencontro delas no show. Em Teresina, Renata, que mora há dez anos em São Paulo, reencontrou a mãe, Raimunda.

E eu me reencontrei comigo.

Meu passado, minhas histórias.

Estava tudo lá, em cada canção, que são minhas, e até podem ser do Moraes também.

Completamente contente

Deixa eu dizer, antes que a ideia me fuja. Aqui em São Paulo todo mundo anda apressado – é um sobe e desce na estação, um mar de gente me levando e eu começo a correr também embora não saiba exatamente para onde. Até na escada rolante e na esteira eles correm. Me reservo ao direito de ficar parada, sempre no corremão da direita, que é o que me cabe.

O certo é que durante todo o percurso do Bela Vista ao Butantã ele me vinha a cabeça: “Vai com calma, você vai chegar”. Eu tinha vontade de amplificar aquela voz e gritar às pessoas na rua: “Vocês aí, tenham calma!”.

Um sobrado azul num beco acolhedor parecia, ele todo, nos esperar. Ouço um assovio da janela superior, seguido de um xaveco: “Olha que gatinha!”. Mas não era um galanteador qualquer. Era Di Melo, o imorrível.

Conheci seu disco clássico, de 1975, há cerca de um ano. E nunca mais parei de ouvir. Nem acreditei quando conseguimos marcar esse encontro, mediado pela dona Jô, mulher e assessora de Di Melo – inclusive, vale aqui meus mais sinceros elogios a toda simpatia e doçura dessa anfitriã, que passou café e foi comprar bolo de milho cremoso na esquina, pra tudo ficar ainda mais gostoso.

Café com o imorrível Di Melo (foto: Mauricio Pokemon)

Café com o imorrível Di Melo (foto: Mauricio Pokemon)

Quando percebo estou eu falando de mim: do trabalho, da viagem, da vida a dois. Acabou-se a relação repórter fonte. Di Melo já é meu amigo. Já é alguém que eu queria ter conhecido há mil anos, com quem eu queria sentar num bar, com quem eu gostaria de aprender a escrever poemas e canções. De repente a Jô já está mostrando a casa, os quadros na parede, o fusca e o álbum com fotos da Gabi, filha do casal, modelando aos nove anos.

O repórter que não se envolve com a fonte, que não senta pra tomar o café com calma e observa com atenção e também amor o que ela fala, está, de fato, num caminho muito errado. Aliás, vamos aqui derrubar essa palavra “fonte”, se ela estiver limitada a alguém que gera apenas informações. O que mais brota das minhas “fontes”, quando as entrevisto, são boas histórias, olhares cúmplices, identificação, estranhamento e até felizes coincidências. Tá permitido entender a emoção do outro, inclusive, muito em voga.

De cada encontro desses, como o que tive com o Di Melo e a Jô na tarde de ontem, eu levo mais que novidades. Eu me renovo em força, vontade e fé. Por vezes, minha profissão me leva a tais circunstâncias, mas em outras ocasiões eu mesma tento encaixar em pauta tudo aquilo que vivi e aí ambos se misturam deliciosamente em mim. É quase místico. Como se fosse simples relatar o místico. Mas, por quase um segundo, me arrisco a falar, enquanto tudo isso se processa em minha mente, eu me sinto completamente contente.

Do barro do chão

Gravatá, 26 de agosto de 2015. Meia noite.

“Um passo à frente

E você não está mais no mesmo lugar”

(Chico Science)

 

Talvez eu nunca soubesse a grandeza disso tudo. Talvez nunca ouvisse a risada de J.Borges, nunca visse Lula Vassoureiro dançar frevo e fazer máscara de papangu na minha frente, com a habilidade de menino danado que limpa a mão na bermuda.

Eu vi, e estou decidindo ainda o que e como contar pra vocês.

Memorial J.Borges - Bezerros/PE

Memorial J.Borges – Bezerros/PE

Alguns muitos quilômetros de casa e conheço dois patrimônios culturais vivos do Pernambuco, perambulando entre Bezerros, Gravatá e Caruaru – nome sonoro da cidade de vento frio que esconde, discretamente, ondas de baião, xaxado e xote em cada esquina.

É como se deus irradiasse uma forte energia.

casa-museu Mestre Vitalino - Alto do Moura / Caruaru

Casa-museu Mestre Vitalino – Alto do Moura / Caruaru

Foi ali que caminhei pelo Alto do Moura, onde famílias inteiras vivem da arte que vem do barro do chão. Mestre Vitalino, Zé Caboclo, Eudócio e Galdino. As histórias parecem tiradas de um cordel de enredo fantástico – o vigilante que sonhava com figuras esquisitas, pegou um bocado de argila e deu rostos a elas – mas é tudo verdade, é tudo do agreste, é tudo nordeste.

A mistura de fantasia e arte estende-se até o bairro histórico da Várzea, próximo a Recife, onde o “mestre dos sonhos” construiu seu templo sagrado: a oficina Brennand, levantada nas ruínas de uma velha olaria, fundada em 1917. De suspensório, bengala e barba de nuvem, Brennand estava lá. Pôs-se a falar, flutuou nas palavras e contemplou o silêncio. Sumiu tão mágico quanto apareceu.

“Será se isso aqui é inexistente?”, a voz dele ficou no ar.

Na minha mente, canto gregoriano e baião fazem um mashup que só mesmo o Pernambuco, bruto e polido, poderia oferecer.

vem debaixo do barro do chão

vem debaixo do barro do chão

Debochados desvalidos

Sejam todos bem-vindos à República dos Desvalidos! Uma trupe mambembe anuncia a inauguração de mais um conjunto habitacional com pouca nobreza e desassistido de tudo. Ali, como bem nos apresentam os personagens, se vive com o pé na lama. Mas mesmo na lama se acha algum brilho.

Montagem do Grutepe para o texto de 1986 (Foto: Mauricio Pokemon)

Montagem do Grutepe para o texto de 1986 (Foto: Mauricio Pokemon)

A peça teatral parte da busca dos moradores do fictício Itararé por melhorias na comunidade. Todos os personagens do subúrbio estão ali: o bêbado, a lavadeira, a dona de casa, o líder comunitário e a filha que volta de viagem cheia da pose mas também está na miséria. Tudo isso é revelado com muito bom humor e leve pitadas de drama. “Aqui tudo é uma mistura de desgraça com deboche”, diz Joana Maria em uma das cenas.

República é uma peça de José Afonso Lima, dramaturgo piauiense, e estreou pela primeira vez em 1986. Agora, quase 30 anos depois, o texto volta em nova montagem do Grupo de Teatro Pesquisa – Grutepe, com direção de Arimatan Martins e composições de Aurélio Melo – sim, trata-se de uma comédia musical, extremamente bem conduzida pela sonoridade do maestro que volta e meia cai em cena com os atores num misto de improviso e descontração.

O cenário traz soluções simples e de belo efeito visual – o palco às vezes vira rua, praça, inauguração de um centro na comunidade ou mesmo a sala da casa de dona Joana. Lari Sales, Vera Leite, Eliomar Vaz Filho e Fábio Costa já estavam no antigo elenco. Em 2006 entraram Bid Lima e Marcel Julian. A novidade nesta versão está na beata Marta Carvalho, interpretada por Edithe Rosa.

Crítico e cômico, o texto satiriza da religião as políticas habitacionais do governo. “Itararé é um privilégio nacional. Podia ser em qualquer canto do Brasil”, diz um dos personagens pouco antes de entrar em cena uma releitura da lenda mais conhecida – e sempre atual – do nosso folclore: o pescador que mata a mãe por não ter o que comer. Mais uma vez a miséria dando o tom.

Desbocados e bem piauienses, todos os personagens trazem um drama pessoal – destaque para o canto da lavadeira, a mais radiante e alegre personagem, que conta ter perdido o marido e três filhos para o rio em momento comovente. Nessa hora é Lindalva, a jovem meio patricinha da favela que surpreende ensinando a vizinha: “A dor ajuda a alimentar a alma”, diz, consolando. “Se a gente fraquejar é que a coisa desanda de vez”.

FestLuso –
30/08 | Theatro 4 de Setembro | 20h30
(Entrada franca)