Blog da Redação

Bastidores, curiosidades e coisas legais

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Jornalismo e a hiprocrisia necessária

Por Samária Andrade

Nós dissemos que essa coluna iria falar de bastidores da produção de jornalismo (do nosso jornalismo na Revestrés, pelo menos). E aí que ontem eu quase não durmo me perguntando: até onde se vai para que se fale, mas não se fale a ponto de perder o encanto? Para que se diga, mas não se perca a aura? Para que se partilhe, mas isso não lhe torne frágil, vulnerável? Até onde se pode revelar? Essa pergunta vale para se pensar do jornalismo às relações de trabalho e amorosas, bem como todas as instituições nesse momento de falência da representatividade.

Há quem defenda: para que se mantenha o “funcionamento das instituições” é preciso que muita coisa nunca seja revelada, que permaneça oculta, que possa ser negada. Por isso a política é feita na base do on stage/backstage.

Eugéne Enriquez diz que sem ilusão, sem crença, sem idealização, sem disfarces, sem hipocrisia, a vida social (e a vida psíquica, consequentemente) seria impossível.

Imagine você um mundo entregue à transparência, onde cada qual saberia o que o outro pensa em seu foro interior. Onde você soubesse o que seu entrevistado pensa, enquanto lhe responde outra coisa. O entrevistado soubesse o que passa em sua cabeça, enquanto anota o que ele diz. Você soubesse o que seus alunos pensam, enquanto você acha que está dando uma aula de arrasar. Seus alunos soubessem o que está registrado em seu pensamento quando você escreve “precisa revisar”. A gente soubesse o que passa na cabeça das pessoas que assistem a missa, que participam da reunião, que escutam o promotor dando entrevista, que fingem que acreditam. Seria suportável esse mundo se todos nós estivéssemos, juntos, nos bastidores?

É provável que estejamos longe de saber o impacto real, sobre o mundo, das revelações de Snowden e Assange, quando a crise é mais política que econômica. É possível que ainda não compreendamos o que acontece de fato quando Mídia Ninja e Jornalistas Livres acusam: “assim não é jornalismo”, ou assumem: “a mídia corporativa não é neutra, nem nós”.

Nem tudo o que você descobre sobre alguém precisa ser dito, precisa virar matéria – nos disse, do alto de sua experiência, Zuenir Ventura, em entrevista para Revestrés. E agora, com esses tempos em que se corre para a internet e se publica?

Se não existe sociedade sem idealização das instituições, como defende Enriquez, o que acontece quando não mais idealizamos a política, a justiça, o jornalismo?

A Sociologia Clínica trabalha o conceito “conhecimento equivocado”. E se o que andamos aprendendo ou repetindo ou respeitando sobre as instituições são “conhecimentos equivocados”? Talvez tenha chegado a hora de remexer nesses conhecimentos. Para fazer isso teremos que chegar nos bastidores de nossas atividades.

O que nos aparece institucionalizado quer manter a aparência de que é soberano, intocável, de que controla o jogo. Para isso conta com a nossa crença. Ou pelo menos, com nosso silêncio. Por ironia, as instituições aparentemente mais sólidas são igualmente frágeis, muitas vezes até mais frágeis: pela incapacidade de estarem dispostas a ver o que já se anuncia.

Para Nietzsche, o desconhecimento acaba por levar ao abismo aqueles que pensam que melhor controlam uma situação.

Se revelar os bastidores pode nos encher de dúvidas, por outro lado não há morte mais segura do que querer preservar algo que já não se controla. E um corpo social – seja o político, a justiça, a família, o jornalismo – não pode fugir das perguntas. Deve procurar respostas aos questionamentos, sob pena de desaparecer. O que você verbaliza publicamente não consegue sufocar o que recalca. O que você não fala, continua a existir.

De um ano imperdoável

Por André Gonçalves

Então chegamos, teoricamente, à última edição de 2016. Sim, teoricamente porque, aparentemente, 2016 é um ano que não vai terminar nunca.
Um ano de perdas, de receios, de sustos, de incômodos, de incertezas. Perdemos algumas esperanças, ilusões e, entre tantas ausências que vamos sentindo a cada dia, a ausência de Ferreira Gullar, um de nossos grandiosíssimos poetas, que tivemos o privilégio de ter em nossas páginas, em uma das entrevistas mais marcantes que fizemos. Uma de nossas lembranças é a cadeira de balanço onde o poeta lia seus jornais, livros e revistas, à luz do sol do Rio de Janeiro. É essa cadeira que está aí embaixo. Vazia. Como uma homenagem nossa à sua tão presente falta. Vai, Gullar. Mas, olha, você está aqui. Os poetas sempre estão por toda parte.
Como a poesia, apesar de tudo, nunca nos deixa sós, decidimos fechar – ou tentar fazê-lo – esse ano tão complexo ouvindo, claro, um poeta. Conversamos e trouxemos para nossas páginas um poeta que todo mundo no Brasil conhece, mesmo que não saiba. Climério Ferreira, poeta, letrista, compositor, parceiro de Dominguinhos, o Cli dos Cli-Cle-Clô, um piauiense que vive há anos em Brasília, mas para quem o mundo acontece mesmo é ali, no interior de sua terra. Climério Ferreira mostra que a vida pode ser um tanto delicada e simples. E bonita.
Nesse ano onde tanto se fala de crise em tudo que há, fomos saber um pouco sobre o cenário da dança e como bailarinos, coreógrafos, companhias, Brasil afora, estão convivendo e sobrevivendo em um cenário que é de desmonte: com verbas e apoios sumindo a cada dia, a dança resiste e enfrenta as dificuldades. A reportagem toca em coisas sensíveis e vale a leitura.
De Paris, chega o sucesso de Flávia Coelho. Saindo do Maranhão para conquistar a Europa, a música de Flávia Cleva a batida do reaggae para a moçada francesa, misturando sons, ritmos e querendo mais do que ser artista: quer ser 26 personalidades diferentes, uma para cada estado brasileiro. No ensaio, os autorretratos de Jaqueline Hoofendy, que são pequenos universos onde nos misturamos à artista e ficamos em dúvida se quem está ali é ela ou somos nós.
E Revestrés tem ainda, nessa edição #28, o poeta, compositor, filósofo e intelectual Antonio Cicero; a arte de W.G. mudando a paisagem da Vila Jeru, em Teresina; o Doutor Tatá, de Amarante, que vive com e pela poesia de Da Costa e Silva. E ainda a crônica de Rogério Newton, artigos, a gastronomia com uma galinha de encher os olhos e a boca, dicas de livros e música e muito mais.
Se é que 2016, esse ano que nunca perdoaremos, vai chegar ao fim, que seja com nós nos misturando a essa gente que produz e acredita tanto no que faz que nos ajuda a seguir em frente, sempre.
E, se 2017 chega com alguma certeza, será a de que continuaremos assim: acreditando na poesia, na arte, na literatura, na cultura, na vida. Com o que dela vier. Um tanto de Revestrés.

O que eu aprendi sobre jornalismo cultural vendo “Cinema Novo” *

(ou minimanual de autoajuda para jornalistas culturais)

Por Samária Andrade

– Faça você algo ou não, o tempo passa. Faça.

– O que você fizer, que julgar importante, interessante, relevante, vai precisar de outras pessoas que, como você, julgem aquilo importante, interessante, relevante; ainda que, para a maioria, pouco importe. Encontre as pessoas que se importem. E entenda: elas vão pensar diferente e agir de modo diverso, mas terão algum link que vai fazê-las vibrar quase parecido.

– Muita gente vai esquecer rapidamente ou vai ignorar, ainda em curso, o que você faz cheio de esforço. Não é hora para pretensões. Continue fazendo.

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– A história é cíclica. Insista.

– O jornalismo cultural às vezes sofre transtornos mentais: diz o que não está havendo, não vê o que acontece, delira, perde o sentido de realidade. Mantenha o espírito crítico e exercite a autocrítica.

– A política às vezes vem e páh: arrasta a cultura. No final, o que sobra e ergue a cabeça é a cultura. Persista.

– O cinema novo, como o jornalismo cultural, não precisava de herois, precisava só de gente interessada em contar histórias. Histórias que pudessem ser contadas até com as mesmas palavras, mas com entalhes e encaixes novos. Desenferruje o olhar. Afaste a preguiça da abordagem.

– Duvidar do que se faz não é só parte do caminho, eu diria que é nossa obrigação, se essa palavra não me soasse tão chata. Duvide. Mas não deixe que o duvidar substitua a esperança. Sem esperança você não ficará motivado a fazer quase nada. E quase tudo o que você vai fazer depende de esforço.

– Fazer algo em que se acredita continua a ser das forças mais potentes, contagiosas e permanentes. Continue a acreditar.

*Documentário 2016, direção de Eryk Rocha

Essa gente que fala o que quer

(Por André Gonçalves no editorial da Revestrés#27)

Um pouquinho mais e essa edição de Revestrés poderia ser uma homenagem à língua. Não à língua portuguesa, mas à língua que, sem papas, solta verdades às vezes inconvenientes, frequentemente necessárias e, aqui e ali, que resultam em algum tropeção conceitual e alguma saia-justa. Estamos já na edição #27 e continuamos acreditando que essa possibilidade, a de dar voz a quem tem o que falar – e fala mesmo, doa a quem doer – quando o assunto é cultura ou está ali no entorno dessa palavra, é um dos motivos de existirmos.

Então, fizemos uma entrevista que há tempos estávamos querendo fazer e, finalmente, deu certo. Na capa e, em várias páginas, Cineas Santos solta o vozeirão e, com sua áspera delicadeza e sertaneja sofisticação, fala um bocado sobre Teresina, sobre cultura, sobre literatura, sobre memória e sobre o pagar o preço por falar o que quer, quando quer e se quiser. Às vezes amado e outras tantas contestado, Cineas é voz presente em momentos vários da produção cultural do estado. E fala disso.

capa

                                            Revestrés#27

Outra pessoa que fala o que tem vontade e mexe com emoções, para o bem ou nem tanto, também está nessa edição: Lourdes Melo, personagem marcante nas eleições no Piauí. Nem tanto pela quantidade de votos mas, especialmente, pela um tanto controversa – e barulhenta! – militância: já jogou ovo em deputado, apareceu amordaçada em programas eleitorais e, por baixo da aparente dureza do discurso, é afeita a delicadezas como a pintura.

Na reportagem, Revestrés foi dar um passeio no mundo da música sertaneja – que deixou de ser caipira e agora é “universitária” – e traz personagens do mundo desse estilo musical que vem se reinventando e segue arrastando multidões.

E tem mais: fomos saber como estão as obras de Burle Marx em Teresina. Considerado por muitos o maior paisagista do mundo no século 20, realizou por aqui três projetos. E pouca gente sabe disso.

Atentos à polêmica que se instalou quando artistas vieram à nossa cidade e fizeram um show se despindo de quase tudo, levantamos alguns pontos sobre a nudez e a arte: quem haverá de decidir os limites do corpo na arte? Um pouco dessa discussão sobre o nu como transgressão, então, veio parar aqui.

E, como sempre, tem ainda mais para você. A crônica do Rogério Newton, ensaio fotográfico, notas, dicas, gastronomia Revestrés e muito mais.

Esperamos que você goste. E, principalmente, que você não tenha papas na língua para nos mandar sugestões, críticas e – melhor parte – um bocadinho de elogios ao que gostar.

Lute como uma mulher

(Por Samária Andrade)

Zoraide lamentou não ter flores. Eu me ofereci pra dividir com ela as que comprei na noite anterior. Era uma forma de retribuir a carona até a Esplanada dos Ministérios no dia do depoimento da presidenta Dilma, aquele que durou 14 horas.

Zoraide não aparenta a idade que tem: 74 anos. Dirige loucamente, estaciona mal, tem pressa de chegar perto do congresso, embora peça sorrindo: “meninas, andem mais devagar, eu tô velha”. Mas quem era aquela mulher com quem conseguimos carona e oferecemos companhia de protesto?

Zoraide foi presa pela ditadura militar em 1970, em Minas Gerais, mesmo período de Dilma. Seu marido, considerado “guerrilheiro” pelo regime, havia fugido. Com filha pequena e imaginando-se fora de perigo, Zoraide ficou. Militares bateram em sua porta e a levaram. Zoraide passou dois anos presa, foi torturada, desencontrou-se do marido e reencontrou um amor do passado que, estudando para ser padre, achou de mais valia deixar o seminário e visitar Zoraide na prisão. Estão juntos até hoje.

Zoraide não gosta de lembrar essas histórias, diz que chora ao ouvir algumas músicas e acha que leva marcas que não vão cicatrizar.

Mas Zoraide quis ir pra rua. Em frente ao Congresso, rever amigos, muitos a cumprimentam. Não é uma estranha na paisagem. Quando, no discurso, Dilma embarga a voz, eu e minha amiga choramos. Zoraide resiste.

Não conseguimos entregar as flores. Há policiamento e não nos deixam aproximar do Senado, o que vai obrigar Zoraide a um longo percurso de volta até o carro.

Na carona de volta, ao descer do carro, deixo parte das flores no banco de trás. Não digo a Zoraide, mas as flores são para ela. Espero que as tenha encontrado e compreendido.

Obrigada, Zoraide. Quando reencontrá-la quero lhe abraçar e falar: nós vamos resistir!