Por Samária Andrade. Fotos das manifestações: Regis Falcão. Fotos de Assis Brasil: Maurício Pokemon.
Jornalistas costumam contar o tempo pelos fatos. Assim é que hoje vários posts de amigos jornalistas de Teresina, ajudados pela memória do Facebook, lembram os quatro anos do movimento contra o aumento das passagens de transportes públicos na capital do Piauí. Naquele 6 de janeiro, dia de Reis, as manifestações, que ganhavam fôlego de movimentos idênticos por quase todo o Brasil, chegavam a seu dia mais intenso, com queima de ônibus e derrubada da decoração natalina (nada mais adequado ao dia de Reis).
Naquele dia e naquele horário estávamos numa casa silenciosa e tranquila no bairro Parque Piauí fazendo a primeira entrevista da Revestrés. Sua majestade, o escritor Assis Brasil, havia voltado a morar em Teresina e nos contava de seus feitos e números impressionantes: trabalhou nos maiores jornais do Brasil, foi professor de comunicação da UFRJ, lançou 132 livros (para efeito de comparação, Jorge Amado publicou 45 títulos), teve mais de um milhão de livros vendidos (somando-se todos os títulos) e possuía apenas um copo na casa onde morava sozinho, com suas duas máquinas de escrever.
Conversamos com ele por cerca de três horas, revezamos o copo para tomar cajuína, esquecemos um pouco do mundo lá fora, que só bateu na nossa cara quando, à noite, voltando da entrevista, chegamos à avenida Frei Serafim. O cenário parecia de um filme hollywoodiano após uma catástrofe: carcaça de ônibus queimada, decoração natalina no chão, fiação de poste derrubada, avenida no escuro. Um silêncio estranho, após dias marcados por ações truculentas de policiais contra estudantes.
Absorvemos um pouco daquele silêncio e fomos conversar sobre a entrevista que acabávamos de fazer. Estávamos pondo em prática um jeito de entrevistar que era uma conversa: se estendia e tentava deixar o entrevistado à vontade. Como parte da proposta da entrevista, levamos junto alguém estranho ao grupo da revista (naquela ocasião, o produtor cultural Jorginho Medeiros). Nós mesmos éramos estranhos uns aos outros. Não sabíamos como funcionávamos ao certo. Ou se funcionaríamos juntos. Vibramos com algumas perguntas que fizemos, acusamos algumas interrupções e comentamos o que não deveria se repetir nas próximas entrevistas. Mas o mais grave: fomos para um conversa de cerca de três horas sem um único gravador! Acreditem: usamos vários celulares, todos muito menos eficientes que os de hoje.
Naquele dia parecia haver em todo canto certa desolação. Mas havia também esperança: havíamos perdido o dia mais quente do movimento estudantil – lamentamos como jornalistas e como simpatizantes da causa. Em compensação havíamos participado de uma conversa única. Que desdobramentos podem acontecer depois que uma manifestação chega àquele ponto? O que fazer com tantas falas de entrevista repartidas em vários celulares? Existe remendo para os dramas dessa vida?
Quatro anos depois estamos tentando marcar a entrevista de número 23 e já temos gravador. Ufa! Quatro anos depois acompanhamos notícias de Assis Brasil, agora com 84 anos, incansável: vai a eventos, continua escrevendo, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Piauí, andou adoentado, mudou de bairro, não sabemos se continua com um copo apenas. Quatro anos depois, o prefeito àquela época agora é senador da República. Quatro anos depois, a cidade continua a reclamar do serviço de transporte público que acaba de aprovar um novo reajuste, dessa vez sem incluir os estudantes. Quatro anos depois é dia de Reis novamente, e a decoração de natal de Teresina, mais bonita que os “fantasmões” daquele tempo, reserva uma ironia: fala de patrimônio arquitetônico-histórico e de uso do espaço público. Vamos discutir?