Por Samária Andrade
Quando vocês vão fazer uma matéria com a gente? Perguntou-nos mais de uma vez o Chagas Júnior, criador do movimento coletivo Salve Rainha. Não era uma cobrança. Era uma pergunta.
E achamos que era suficiente o que estávamos a fazer. Uma vez fizemos uma matéria sobre o abandono do prédio da Fundação do Humor, ocupado então temporariamente pelo movimento do Salve Rainha com exposições, feira de produtos, música. A matéria mesmo era o abandono do prédio. Eles estavam por alí, dando um destino ao local – foi o que interpretamos – mas também a eles mesmos. Depois procuramos Júnior e o ouvimos, entre outros tantos entrevistados, na matéria que produzimos sobre consumo de cultura em Teresina. Mais recentemente convidamos Júnior para a seção 10 Dicas. Ele deveria indicar o que anda lendo, ouvindo, vendo. Temos um bem querer danado por esse espaço pois ele é inteiramente de quem convidamos a deixar suas impressões digitais conosco, em geral sem qualquer pitaco ou edição nossa. É nessa seção que aprendemos um pouco mais com quem convidamos.
Anos antes, quando a Revestrés ainda nem existia, eu estive na banca de conclusão de curso do Júnior, no CEUT. Ele apresentou uma revista de cultura que se chamava Grude. Depois, em outros tempos, ficamos sabendo que aquele rapaz esperto, que trabalhou como fotógrafo no Jornal Meio Norte, agora estava fazendo umas festas diferentes na cidade. A Luana e o Maurício foram os primeiros a ver de perto o que andava acontecendo. “Olha, tá dando gente. É interessante”, disseram.
O movimento que o Júnior fazia foi crescendo, foi virando movimento. Outras pessoas já se juntavam e formavam uma turma cheia de charme, animada, que arregaçava as mangas ora no centro da cidade, numa rua de calçadão, ora ocupando o prédio deixado para trás pela Câmara de Vereadores, ora embaixo da ponte da Frei Serafim. “Quem disse que Teresina não tem nada para se fazer no domingo à noite?” – Ouvimos Júnior afirmar mais de uma vez. Bonito, expressivo, um sorriso como cartão de visitas, um turbante na cabeça, uma saia comprida a lhe cobrir as pernas, um abraço demorado, uma vontade danada de juntar mais gente.
Mas o que é mesmo que vocês estão fazendo, Júnior? “Um café sobrenatural”. E o que é mesmo o Salve Rainha? “Uma tecnologia social”. As perguntas tinham o interesse de avaliar se se fazia daquela vontade, pauta – ainda que pauta, para nós, sambe nos critérios de noticiabilidade. E íamos frequentando, e participando, e vendo aquilo se formar, transformar. E quem era de foto, foto colava; e quem era de texto, anotava; e até quem não era de carinho, abraçava. E as perguntas estavam conosco: como tratar isso que está aí? Já estava maduro o suficiente, era pauta o suficiente, era cultura o suficiente? Era febril, tinha saúde forte, se sustentaria? O discurso correspondia, já foi testado pelo tempo? Era como se se pudesse ir ticando alguns critérios. Mas a nossa fonte tinha pressa. E mais: não podia nos avisar assim tão claramente. Entre um piscar de olhos e um sorriso, quase nos alertava: “Façam logo essa matéria”.
Na reunião de pauta da edição 25, talvez tenhamos chegado coletivamente ao nome de Júnior para a seção 10 Dicas. Ele nos respondeu rápido. Mais que profundas, suas dicas vieram generosas, gentis. Na hora não compreendemos bem.
Paradoxalmente a morte dá sentido aos eventos que vamos fragmentando ao longo disso que chamamos vida. Júnior era lindo, sorridente, talvez não fosse suficientemente dramático. Júnior incluía, incentivava, sugeria, tinha coragem. Júnior tinha pressa.
Perguntamos se podíamos editar suas dicas. Talvez seria preciso cortar algo para caber na página, para caber na diagramação, para caber no jornalismo. Ele respondeu: fiquem à vontade, confio em vocês. A generosidade dele não cabia na pessoa. Por fim, não editamos. Aumentamos sua única página inicial para duas. Quando a revista sair da gráfica, Júnior já partiu. Tinha virado pauta, sem pedir nem precisar sugerir. E o jornalismo, que se debate pelo impacto ou pelo profundo ou pelo urgente, enfim descobre: nada há de maior impacto ou mais profundo ou mais urgente que a gentileza de ser.