Sergia A.

Do caminho

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Alongamento

O menino se formou dentro dela, sem que ela desse conta do movimento incessante de suas células.

Eram tão recentes as descobertas do amor. Eram tantos os medos e os cuidados. Era tempo de viver a revolução do mundo pequeno dos acanhados sonhos: primeiro emprego e estudos distantes de um fim. Letras adiadas para tempo bom. Uma casa para dois com cara de um. Uma cama, um banheiro sem muitos para dividir. As prateleiras do supermercado brilhantes de alegrias desconhecidas que cabiam num auxílio refeição. Os hormônios percorrendo os vasos do corpo. Derramando-se no vermelho dos frascos do laboratório. Como interromper o rio que brotava dos olhos diante da palavra no papel?

O menino nadava dentro dela.

Azedava o estômago. Repugnava os cheiros ao redor da mesa de reunião. Olheiras e palidez no espelho em que as amigas mediam a cintura e retocavam o batom. Promoções se desfazendo por não harmonizarem com a licença e as incertezas do futuro que já não se escondia na amplidão dos vestidos. O olhar invejoso para o planejamento de férias e voos. A ela caberia o direito de dias a mais na rotina de amamentação que os manuais ensinavam. O pensar acelerava as batidas do coração diante de um calendário que esticava sua pele. O amor beijava a testa e apalpava o movimento das células intrometidas em corpo que não era seu. Não sentia e era livre para admirar e exibir aos outros o feito fora de si. Como obra contratada, paga, da qual se espera a perfeição.

O menino chutava dentro dela.

Empurrava as costelas. Restringia o pulmão para que ela recebesse sentada o pio dos pássaros e a barra do dia que se insinuava na persiana. O amor arranjava-lhe travesseiros e cobertores e ressonava tranquilamente ao seu lado. Contava os sonhos no amanhecer. Haveria de galgar cada um dos degraus e chegar ao topo. No porta-retratos o riso adocicado das conquistas. Quando o tempo lhe desse tempo correria atrás da bicicleta no parque. O amor cantava para ninar suas dores. Afinal tudo passa.

O menino saiu de dentro dela, no exato tempo da expulsão.

Faminto, sugou o seio sem piedade. O leite escorreu aos borbotões fazendo luzir as dobrinhas do menino que a todos encantava. Ela há muito perdera o saudável hábito de dormir. Já não lhe fazia falta. Tanto o que fazer quando as minúsculas pálpebras do menino pesavam e a obrigavam a respirar. Fazia. Fazia sem pensar se era noite ou dia. O amor partiu repetindo que o tempo era prado para correria de cavalos selados. Poeira soprada e no susto o menino se esticava.

O menino se alongou fora dela.

O colo vazio abriu vaga para acomodação das letras. Era tanto para viver que já não cabia na vida que lhe restava. Derramava-se pelas bordas das linhas onde as palavras se penduravam em suave balanço por puro desejo de recuperar a dilação.

***

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos (Editora Quimera, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana (Editora EDUFPI/Avant Garde, 2018); Conexões Atlânticas (Editora Infinita, Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras (ABR Editora, Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos (Patuá, São Paulo, 2018), Vale do Sossego (Editora Reformatório, 2022).

Imagem: fotografia da autora, com colagem sob Licença Pixabay Free

Crônica para uma rua de Gaza

 

 

(Parafraseando o poeta Manoel Ciríaco)

Todo mundo tem uma rua, disse o poeta. Não me reconheço na rua onde moro. Trago comigo outra por onde revivo a infância, como na composição de Torquato. E fiquei a pensar sobre ruas e versos provocativos. De tão belos, bem mereciam um exercício de imitação. Sim, cabe a nós, que não somos tantos, repetir pra aprender, já dizia outro poeta.

Foi então que me chegaram imagens do fotógrafo Palestino Motaz Azaiza. Ao vivo da minha rua, ele dizia. Pronto. Confirmava o dito do poeta e era tudo que eu precisava para o meu exercício. A literatura me permite ser outro. Por um momento sou Manoel e Motaz caminhando por suas ruas. É por elas que nossas vidas também passam.

Antes de sete de outubro, eu costumava ir à feira escolhendo o percurso mais longo. Só para registrar fatos pitorescos e o rosto da minha gente. Triste, apreensivo, confiante, cheio de fé, me fazendo voltar pra casa contente com o azeite, o arroz, vegetais e o corte de cordeiro que minha mãe esperava para preparar Maqloube. E ali mesmo naquela rua, horas depois, uma porta se abria aos amigos ansiosos por sentir os aromas do vapor e o resultado
perfeito na virada da forma.

Enquanto um rapaz carrega nos braços uma garotinha que retirou dos entulhos, e dezenas de mães enlutadas pegam suas trouxas e descem a rua sem rumo, eu sinto vergonha de apenas documentar.

Hoje um estrondo me acordou mais cedo e me fez caminhar em meio a escombros e gritos, fotografando a nuvem de fumaça que invadiu o azul e expulsou os pássaros da minha rua. E a angústia dos vizinhos apressados pra salvar o que restou. Imagino que os homens de terno, farda e estrelas, que se reúnem agora em HaKirya, não percebam a
impureza do ar soprado pelo Mediterrâneo. Os números do avanço da ocupação saltitando em suas mentes.

Enquanto um rapaz carrega nos braços uma garotinha que retirou dos entulhos, e dezenas de mães enlutadas pegam suas trouxas e descem a rua sem rumo, eu sinto vergonha de apenas documentar. Penso nos homens protegidos do frio na 405 FDR Drive, tomando decisões sem se dar conta de que o direito de defesa alegado pelo agressor significa a morte: das pessoas, da rua, da cidade, da memória de um povo.

Ando sobre os destroços da minha rua não mais para mantê-la dentro de mim embalada pelo som das ondas logo ali, ou lembrar do Jordão libertando almas além dos muros que nos aprisionam.  Nem mesmo para registrar os semblantes devastados que fazem a limpeza em busca de redenção.

Meu andar atordoado é apenas pra dizer que aqui existiu uma rua onde pais e filhos andavam de bicicleta sob a sombra das oliveiras sobreviventes de guerras anteriores. Mais adiante, uma praça em que meninos e meninas descobriam o amor. E depois um templo, que não apenas consagrava os encontros, mas também contava a história do controverso São Porfírio, que não gostava de pagãos. No entanto, pouco antes da explosão que o
destruiu, suas cúpulas foram abrigo para cristãos e muçulmanos e ateus. Em meio à guerra, os deuses não reconhecem religião ainda que os homens usem seus nomes como disfarce de sua ambição e arrogância.

***

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos (Editora Quimera, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana (Editora EDUFPI/Avant Garde, 2018); Conexões Atlânticas (Editora Infinita, Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras (ABR Editora, Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos (Patuá, São Paulo, 2018), Vale do Sossego (Editora Reformatório, 2022).

Era para se chegar à primavera

 

Abro um livro nesta manhã do décimo quinto dia e encontro num verso de Wislawa
Szymborska, traduzido por Regina Przybycien, a validação de um sentimento que cresce
dentro de mim e que preciso deixar transbordar. Tomo-o de empréstimo para o título.

Escrevo por necessidade. Escrever é minha forma de organizar o caos, interno e externo.
Sim, também o externo porque é através da mente que a realidade encontra significado.
Wislawa, que só conheci após a primeira tradução no Brasil em 2011, tem o poder de
despertar em mim a vontade de escrever. Talvez, porque as profundas reflexões sugeridas
por suas palavras me desestabilizem, toquem sorrateiramente em meu frágil equilíbrio e me
obriguem a olhar para o escuro. Aquele lugar que meus olhos teimam em se desviar. E para
retornar à luz é preciso escrever.

O poema Ocaso do Século (1987) traz uma sequência de ideias, em tom de lamento por trás
da ironia, sobre a expectativa do que seria o século XX para a humanidade e como de fato
se revelou. Um balanço acentuado pelo desencanto, fazendo uso do efeito chiaroscuro – do
que faz rir e do que entristece – que é marca dos seus poemas. Para mim, é impossível ler e
não enxergar o início da terceira década do século XXI como o aprofundamento do
desencanto de que trata o eu lírico às vésperas da virada.

Estou saindo de duas semanas de isolamento, ainda com olfato e paladar alterados.
Estranho levantar-me, fazer um café e não ser despertada pelo cheiro. Mais estranho, lidar
com o amargo residual que as papilas guardam como sabor único. Como se os sentidos
tivessem sido apagados do meu cérebro racional para me fazer sentir no corpo o estar no
mundo neste instante.

Não escapei, apesar das vacinas e de todos os cuidados que me fizeram chegar até aqui sem
ser infectada num país que ostenta um dos piores índices de casos e mortes por covid. Não
precisei de hospital, tampouco me pareceu leve como dizem os risos triunfantes nas redes
sociais depois de cinco dias de um teste positivo. Sabia, desde o início, que pertencia ao
grupo dos vulneráveis. Assim como soube desde os primeiros embates sobre o controle da
pandemia que ela se tornaria isso que estamos vendo: mais que uma infecção causada por
um vírus, uma exposição assustadora de todos os males da sociedade do século XXI. A

sociedade que valorizou absurdamente o individualismo, o cada um por si, o sistema que
não pode parar, em detrimento do senso de coletividade ou do respeito pelo outro.

Como poderia ser diferente?

Depois de um tempo de sonho com o avanço do processo civilizatório, reaprendemos a
aplaudir os que esbanjam convivendo lado a lado com os que reviram o lixo pra saciar a
fome. Na era digital, continuamos aceitando que uma minoria seja dona da riqueza
acumulada pela exploração da maioria. A miséria continua natural. A mesma miséria que
abalou o alicerce da sociedade industrial e fez nascer a ideia de bem-estar social. Somos
cúmplices de um sistema que destrói o planeta, apesar de conhecer cientificamente seus
limites em nos oferecer o básico: água e ar. Seria diferente com relação a uma doença
perigosa apenas pra porção descartável dessa engrenagem?

Ainda que não tenha me faltado afeto e atenção, foi aterrorizante ver meu corpo entre os
descartáveis. Observar o descaso de um lugar de privilégio, analisar dados, criticar, achar
que estou fazendo a minha parte é uma coisa. Outra é ser um número entre os invisíveis, os
desprezados, os que não fazem falta.

A finitude é inevitável. Sou consciente e este não é o ponto. O assombroso é saber que
nosso tempo foi um tempo em que a humanidade não apenas deixou de cumprir as
promessas da lógica evolutiva, mas escolheu regredir. Saber que virão outras crises
econômicas, sanitárias e ambientais cujas soluções passam por uma mudança radical no
modo de vida, sendo levada a crer que essa mudança não virá em socorro de nossa
descendência. Saber que já não se vislumbram os sonhos coletivos de futuro, pois colonizar
outro planeta é a aposta fantasiosa da minoria que enriqueceu com a destruição da Terra e
considera isso um merecimento.

Se as utopias saíram de moda, como continuar vivendo?

O poema fecha a última estrofe afirmando não há perguntas mais urgentes/do que as perguntas
ingênuas. A única esperança é que outras linhas se preencham com cândidos pontos de
interrogação.

Rita e Maria: acaso e ideias ao vento

 

Já disse por aqui uma vez que o acaso está sempre a me oferecer algo bom. No mínimo, boas histórias. Desta vez não foi diferente.

No último dia sete de junho, enquanto eu me preparava para assistir a uma palestra da escritora Maria Valéria Rezende, recebi uma mensagem da organização do evento. Pediam-me para substituir a professora responsável pela mediação. Passado o susto, perguntei a mim mesma: devo agradecer ou ter um ataque cardíaco?

Parece que minha pulsão é pela vida. Catei os livros. Juntei na cabeça tudo que a memória guardava sobre a autora e sua obra e agradeci.

Maria e Rita se dedicam, cada uma a sua maneira, à educação libertadora.

Dias antes, quando observei na programação que a presença de Maria coincidia, data e horário, com ninguém menos que Rita von Hunty, não tive dúvidas. Apesar da curiosidade pelo fenômeno Rita, escolhi ver e ouvir Maria. Inscrição feita, coube ao destino ampliar a minha visão e escuta.

Não me tome, o leitor, por uma pessoa afeita à crença de que cavalo selado passa uma vez e que é preciso se aventurar saltando em cima.  Sou mesmo um bichinho lento, sem grande propensão a saltos, que se acomoda em livros e escritórios. Meus encontros se dão, antes, nas páginas. Por outro lado, o destino é o destino. Não dá pra dizer não a fortes batidas na porta. Arrumei coragem e fui.

Mas não é desse acaso que quero falar. Vamos direto ao ponto. Quero me ater à energia paulofreiriana que contagiou a noite por puro acaso, até onde me consta.

No auditório principal, com lugares disputados por jovens, em sua maioria, a festejada drag queen apresentava pontos importantes sobre cultura e marxismo. Rita é professora e atriz. Bom conteúdo, aliado a performances bem montadas e atrativas para olhos de hoje, levou o canal Tempero Drag no YouTube a ostentar mais de um milhão de inscritos. Guilherme Terreri Lima Pereira, a pessoa por trás de Rita, afirma que criou a personagem para discutir a questão de gênero. No seu entender, gênero é uma forma de opressão social. Uma construção, nos termos de Simone de Beauvoir. Por isso ele se monta de Dona Rita. No seu discurso, obviamente, não podiam faltar as agressões a que são submetidos os corpos subalternizados e a pedagogia da autonomia.

No auditório menor, com cadeiras ocupadas por fiéis conhecedores da obra, Maria Valéria contagiava a todos com a firmeza da voz e a simplicidade das histórias vividas e recontadas por sua memória. Desde sua vivência entre grandes poetas na infância, sua saída de Santos na década de 1960, suas leituras de O Capital em francês e de Os Sermões de Pe. Antônio Vieira em Latim, sua descoberta de que não queria viver em um aquário, seu encontro com Paulo Freire, seu trabalho de alfabetização pela pedagogia freiriana no sertão nordestino em plena ditadura militar, a sequência em outros países da América Latina, até as premiações literárias no século XXI (Jabuti, Prêmio São Paulo de Literatura, Casa de las Américas).

Vários contrapontos poderiam ser levantados. Maturidade versus Juventude (Maria, 80 anos – Rita, 31 anos); Teoria versus Práxis (Maria fez, tem a ação em educação popular em seu currículo – Rita estuda a teoria, e tem prática em ensino, mas não um contato semelhante no contexto de miséria); Tentativa de Adequação versus Completa Adaptação ao mundo midiático em que vivemos (Maria escreve contos e romances, divulga em redes, tem uma loja virtual e faz lives eventualmente – Rita é profissional do mundo virtual, e o presencial é consequência). No entanto o que me motiva a escrever este texto é o ponto de conexão entre as duas e a coincidência de estarem no mesmo território, separadas por alguns metros de distância, discutindo o mesmo tema (pelo menos por alguns instantes), no ano em que podemos dar uma chance à transformação da realidade.

Ao abraçar Maria na despedida, no vão aberto entre os auditórios, uma brisa leve soprava a brasinha que dentro de mim aquece o verbo esperançar.

Nada mais freiriano do que este encontro entre as ideias e a práxis e o diálogo. Por isso não há aqui julgamentos. As duas personagens se dedicam, cada uma a sua maneira, à educação libertadora. O que há é apenas a constatação de que, na sociedade fluida e de vidas midiáticas, valorizamos menos quem traz no corpo físico as marcas da prática cultivada e fortalecida em uma longa experiência de troca e aprendizagem, mesmo teorizando sobre.

Cuidemos aqui do amadurecimento construído nas interações humanas, por um sentimento de justiça. Maria segue ensinando e aprendendo e tendo como ferramenta principal o diálogo. Perguntada sobre o seu despertar tardio para a escrita de ficção, ela respondeu que escrever ficção é uma forma de dar continuidade à educação popular. Uma forma de questionar a realidade ou provocar no leitor indagações. Ao ficcionar a realidade dos invisíveis estaria dizendo: olhe, isto existe. O que você pensa a respeito?

Crédito de imagens: fotos de divulgação em redes sociais.

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Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (2018); Conexões Atlânticas, Infinita (2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (2018).

A normalização da morte como medida

 

 

 

Por ocasião do fechamento da editora Cosac-Naify, eu aproveitei a liquidação e adquiri títulos cujos preços de suas magníficas edições me impediam até então.  Entre eles, alguns infantis como a tradução de O pato, a morte e a tulipa de Wolf  Erlbruch. Ao ler fiquei tão assustada que escondi na parte alta da estante, bem distante dos livros que minhas netas costumavam acessar à vontade.

O livro é belo, em desenhos e textos. A ilustração é do próprio autor e os diálogos entre o pato e a morte são construídos em linguagem simples, direta e muito rica. No entanto, considerei desafiador demais para minha capacidade de responder às perguntas que brotariam. Não conseguia ver a morte com a naturalidade que o livro apresenta. Tampouco teria coragem de conversar com as crianças sobre o tema sem uma provocação que me obrigasse. Melhor deixar esse assunto para os pais. Essa é uma das coisas boas de ser avó.

Então, qual a razão da escolha desse livro? O assunto me atrai e me assombra. É frequente no que escrevo e por isso também frequente nas minhas pesquisas. Um dia desses, lendo uma psiquiatra especialista no ramo, encontrei uma explicação para o meu pavor e negação de sua naturalidade. Dizia ela que para o inconsciente é impossível imaginar um fim real. O inconsciente tende a nos impulsionar para a vida. O fim é visto como algo externo e é por isso considerado uma intervenção maligna, um acontecimento medonho. Fiquei satisfeita e aliviada por alguns
instantes. A minha negação da morte, ou visão da morte como algo trágico, nasce do meu desejo de viver.

 

Em 2020, o livro desceu para as prateleiras mais baixas. Estamos há dois anos convivendo diariamente com o tema. Não que antes não morressem pessoas todos os dias. É que a pandemia jogou a morte na roda sem subterfúgios.  Não deu para retirar as crianças da sala.

Para mim, a compreensão filosófica da morte como um fato puro tal qual o nascimento – o ciclo da vida na natureza – que está como pano de fundo do O pato é racionalmente palatável. É um norte, é uma justificativa para o aprimoramento do nosso estar no mundo. É o que dá sentido e brilho à vida. No entanto, emocionalmente não é tão simples assim quando temos aqueles olhinhos brilhantes e cheios de vida diante de nós perguntando: você vai morrer? Nunca mais vou falar com você? Eu vou morrer?

Mas o ponto em que eu queria chegar, quando imaginei este texto, está ainda aqui latejando na minha cabeça, tentando encontrar uma forma no papel enquanto as ideias pipocam no meu cérebro. Uma coisa é entender a morte como parte de um ciclo natural da existência de todas as coisas e não se apavorar diante dela. Outra é ter a normalização da morte como medida para ações de descuido com a vida humana.

Chegamos à marca oficial de 640 mil mortes por uma doença evitável. Evitável porque conhecemos o mecanismo de transmissão e o que precisa ser feito para interromper. O que fazer em parte depende de políticas públicas e em grande parte depende da atitude individual. Temos um governo que declaradamente alimenta o encanto pela morte: na defesa da tortura e da eliminação dos que pensam diferente, no armamento da população civil, na defesa da truculência policial, na liberação de agrotóxicos, na agressão ao meio-ambiente e povos originários, na exposição das pessoas a uma epidemia com a justificativa de que só morrem os que têm que morrer. Esse último é um discurso perversamente interiorizado pela maioria da população, mesmo os que discordam das demais políticas nefastas. Ficamos no mato sem cachorro.

Neste pico da terceira onda, todas as noites vamos pra cama com a notícia da morte de mais de mil pessoas por uma doença evitável. Evitável, é preciso repetir. Paradoxalmente, o que mais se ouve é o discurso de que é preciso viver, de que é tempo demais pra ficar parado com medo da morte. Como se esse pensar individualista absorvesse tortuosamente o entendimento filosófico sobre a realidade finita do homem e fechasse os olhos para as portas abertas a algo maior: a morte do outro, o fortalecimento de um agente mortífero, a extinção. Portanto, um pensamento suicida em que a arma pode ser um vírus ou outras causas que ameaçam a vida humana e cujo antídoto depende do pensar coletivamente e do repensar o viver, que será exigido mais cedo ou mais tarde.

Ficou pesado, né? Hora do ponto final. Uso a descrição de fim do mundo de Ailton Krenak – uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder – para perguntar: não valeria a pena adiar o fim?

***

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018).